Paralelismo alma e corpo

Não podemos falar de um paralelismo entre alma e corpo, simplesmente porque o paralelo é uma categoria só da extensão.

Crise do capitalismo

Vivemos um momento de crise do capitalismo. O que isso quer dizer, porém, não se sabe ao certo. De fato, a expressão 'crise do capitalismo' tem um duplo significado:

(1) 'Crise' pode dizer a decadência ou a transformação do capitalismo. Que o capitalismo está em crise. Que a crise, portanto, é algo que afeta desde fora o capitalismo. Afetando-o e promovendo um movimento ou uma mudança. A crise nesse caso é o sinal de um fora.

(2) O outro significado da mesma expressão diz que a crise, que vivemos, pertence ao capitalismo. A crise, nesse caso, é uma operação do próprio capitalismo. Não significa uma decadência ou transformação do capitalismo, mas um ajuste e talvez um aprofundamento. Nesse caso, a crise é imanente ao capitalismo, crise é sinal de um dentro.

Tendo a compreender a crise atual do capitalismo no segundo sentido.

Vivemos um momento de tensão nas placas tectônicas de formação de nossa subjetividade. Nesse abalo, o capitalismo se aprofunda, penetra mais fundo em nossa matéria. No nosso esforço de compreensão da crise, nos compreendemos cada vez mais como objetos sujeitos ao capitalismo.

As categorias de entendimento que utilizamos, para apreender a crise do capitalismo, são categorias econômicas, disponibilizadas pelas ciências econômicas.

Para entendermos a crise que vivemos, usamos, uma vez mais, e mais proundamente, as categorias econômicas. É, mais uma vez, o pensar econômico, próprio ao capitalismo, que emerge triunfalmente para explicar a crise do capitalismo. O capitalismo explica-se a si mesmo. A crise se explica a partir do próprio capitalismo.

A nossa subjetividade e o nosso governo são pensados com categorias de entendimento econômicas. A grade de inteligibilidade disposta para elaborarmos um discurso sobre nós mesmos, nessa crise, é uma grade econômica.

Não pensamos a crise de governamentalidade a partir de um modo de objetivação, de produção de objetos do entendimento, exterior à lógica econômica, que é a lógica econômica do capitalismo. Explicamos e entendemos a crise a partir das ciências econômicas, pelas quais nos compreendemos a nós mesmos como sujeitos econômicos assujeitados ao capitalismo.

Capitalismo como governamentalidade

O capitalismo é mais do que só um sistema econômico, é uma forma de governamentalidade. Isto é, o capitalismo é a articulação de um modo específico de subjetivação com um modo de assujeitamento correspondente.

O capitalismo se acompanha também do surgimento das ciências econômicas, e transforma-se com elas. As ciências econômicas são o modo de objetivação do capitalismo. Elas disponibilizam os objetos que permitem tanto a prática governamental, como a compreensão que temos de nós mesmos.

No capitalismo, nossa subjetividade, a relação de entendimento e movimento, a relação anímica e corporal, que estabelecemos com nós mesmos, tem sempre uma referência ao capital. E é isso que torna o governo capitalista possível. Estabelecemos a compreensão que temos de nós mesmos numa fábrica, em torno da máquina, na ida ao banco, em torno de um terminal eletrônico, no agros monocultural, em torno da produtividade do transgênico, na leitura do caderno de economia de um cotidiano, em torno dos títulos que indicam os percentuais das taxas de juros.

Compreendemo-nos como sujeitos do mercado e de um mercado do capital. E o governo, por um lado, faz de tudo para favorecer essa auto-compreensão, pois, por outro, é essa auto-compreensão que possibilita as ações de governo.

2009

Em 2009, bons encontros para todos nós.

Fazer bons encontros é encaixar-se favoravelmente. Forma-se, assim, na cidade, um aglomerado de encaixes transfigurador.

Um homem sem passado nem futuro

Se o que fiz é o que me faz ser o que sou, devido à novidade do que faço, sou um homem quase sem passado e, portanto, quase sem ser. Se o que sou é o que ainda posso fazer, devido à proximidade da minha invalidez ou morte, sou um homem quase sem futuro. Não fiz, nem poderei fazer muito, para ser alguma coisa, mas também não sou nada, por isso, sou pura presença. Isso é cortante, mas maravilhoso.

Soterramentos

A memória dos que vivem à sombra dos monumentos, no processo de seu recalque, é encoberta por camadas e camadas de terra e de imagens da monumentalização.

Um soterramento material, dos corpos de sombra sob à terra, se segue a outro, na memória.

Logo nos esquecemos dos soterrados. A nossa memória deles logo é soterrada pelas imagens da reconstrução do monumento e, conseqüentemente, pela reconstrução da sua sombra.

Quando uma parte do monumento soçobra, seus restos encobrem aqueles que vivem à sua sombra. O grito deles, por um momento, sai da sombra e da terra, para logo calar-se, sob a terra, e na memória.

Enquanto a catástrofe não for definitiva, ainda não é aquele ponto da narrativa, que finalmente aponta para o seu desfecho. Por isso, dito propriamente, ainda não é catástrofe. É apenas um ajuste do monumento às suas novas condições e, talvez, um aprofundamento dos seus alicerces, para que possa se erguer mais alto.

Ação e puro movimento

Agimos na intenção de um bem, ou segundo um princípio. Essa é a diferença entre uma teleologia, que se envolve com a investigação desse bem que é fim da ação, e uma deontologia, que investiga princípios da ação aos quais devemos aderir independentemente de qualquer fim.

Mas também nos movemos sem pensar, inconscientemente, necessariamente, como uma pedra que rola montanha abaixo, isto é, guiados simplesmente pelas leis da natureza, enquanto elas não estão sobredeterminadas pelos princípios ou pelos fins que concebemos conscientemente.

Uma ação humana é sempre também um movimento puro, determinado por leis de produção de acontecimentos, das quais somos inconscientes, leis que nos excedem sempre, que são sempre, como um todo, inapreensíveis para nós, mesmo para um olhar retrospectivo. A ação nunca deixa de ser um movimento puro, mas nem todo movimento puro do ser humano é uma ação.

Um movimento puro é também uma ação, quando sobredeterminado por uma lei de produção subjetiva de eventos, ou seja, quando a lei subjetiva da ação coincide com a lei sobrehumana de produção de acontecimentos.

Que uma lei humana seja subjetiva não quer dizer que ela não seja objetiva, positiva, intersubjetiva ou clara para todos. Uma ação humana é sobredeterminada por uma lei humana, quando o agente entende estar determinado ao agir por uma lei posta por ele mesmo ou por um outro.

Pois não é exatamente a lei que é subjetiva, mas a sobredeterminação do agente ao agir.

A soberania absoluta

A soberania eterna é o lápis do qual se desenha, na duração, o desenho da politia. Deus, o Rei, o Povo e, finalmente, o Indivíduo são os soberanos dos diferentes impérios. Deus e a teocracia. O Rei e a monarquia. O Povo e a república. O Indivíduo e a democracia liberal, invenção do Ocidente. No seu sentido mais radical, "cortar a cabeça do Rei" significa romper com a idéia de absoluto.

Para não ser poesia

Para não ser poesia, a profecia precisa acompanhar-se de sinais claros e distintos; a filosofia, de fundamentos claros e distintos.

A verdade absurda

A verdade absurda não se deixa apreender em conceitos. Por isso, a filosofia precisa lidar, até o limite de sua possibilidade, com a vagueza polissêmica da palavra (ou com a linguagem sem semântica). Precisa ir até onde pode, até ali, logo antes de transgredir-se como poesia ou profecia.

[...] o espírito de um mundo sem espírito [...]

Por que nossa época é desespiritualizada?

Primeiro, porque – se contrapomos o corpo ao espírito – vivemos entre corpos e submetidos a eles. Mas, também, porque não temos um conceito de verdade capaz de se estabelecer como um ponto de fuga.

Se estamos num mundo que perdeu a fé em uma verdade absurda, e a verdade absurda é necessária como alvo norteador de uma transformação de si, então, ou não nos transformamos, ou nos transformamos sem orientação, sem alvo, sem norte, isto é, derivamos.

Nossa verdade é a verdade das sensações corporais. É verdadeiro aquilo de que podemos fazer ou reduzir a uma experiência do corpo. É verdadeiro o que, pragmaticamente, funciona, em meio aos corpos, promovendo suas existências. Verdadeiro e real, para nós outros, é o que se insere na performance econômica.

O jogo adequado de necessidades e satisfações, o jogo racionalizado de trocas de bens, visando o uso por nossos corpos e o uso de nossos corpos, é o nosso critério de atitude realista e não absurda.

O que é o sujeito?

Quando nos referimos a seres humanos, uma singularidade agente (simples ou composta, concreta ou abstrata) é dita sujeito de três modos:

(1) sujeito é a forma que toma uma singularidade, quando está inserida numa relação de assujeitamento que é critério para sua ação.

(2) é a forma que toma uma singularidade, quando age de maneira determinada pela compreensão que tem de si mesma.

(3) é o ser humano singular do qual se fala algo de objetivo.

Um exemplo: _O ser humano é um indivíduo empreendedor.

‘Ser humano’ é uma singularidade simples e abstrata, (3) objeto de uma ciência econômica, (2) que age segundo aquilo que considera ser o mais eficaz para a constituição do seu capital próprio, e (1) que vive numa sociedade neoliberal de mercado.

Outro exemplo: _Ana porta o véu.

‘Ana’ é o nome de uma singularidade simples e concreta, (3) da qual se fala algo que poderia e deveria ser constatado por qualquer um; (2) que porta o véu porque se considera muçulmana; (1) porque vive num país islâmico.

Os sentidos de (1, 2 e 3) podem coincidir, em uma espécie de sobredeterminação do sujeito, e ser pertinentes a Ana, enquanto sujeito que porta o véu. Ou podem não coincidir: Ana (3) efetivamente porta o véu, (1) porque vive sob a injunção da lei de Deus, mas (2) não se considera muçulmana. Ou ainda: (1) porque vive em uma república laica, e (2) porta o véu como sinal de resistência.

Sujeito corpo e corpo sujeito

Eu penso perspectivamente (no sentido latino de sentire, ser da opinião; pensar, mas a partir de um ponto de vista, no interior de uma perspectiva) que o sujeito da modernidade é o sujeito de um corpo. O corpo é aquilo a partir do que o ser humano se compreende como sujeito. Como tal, como origem local da subjetivação, o corpo, enquanto se torna objeto desse sujeito, é também o campo onde o sujeito inscreve a sua ação. Pelo corpo e no corpo vivo do ser humano, configuram-se os arranjos complexos das práticas discursivas da saúde, da sexualidade, da raça, da segurança, da economia política.

Reflexões apressadas

A estética moderna não pretende mais alcançar um significado para além dela mesma, isto é, um significado espiritual. É estética da estética. O próprio objeto da estética é o meio que a possibilita: o corpo e suas sensações – a estética da estética permanece nisso, do corpo para o corpo, no corpo e pelo corpo.

Felicitas










Por que estariam tão felizes, afinal?
Por um único segundo, teriam esquecido-se do fogo do inferno?

Contribuição ao estudo do comportamento animal - II

Às vezes a ciência descobre truísmos. Como a que anuncia a BBC: 'Carinho' pode aliviar a dor, diz pesquisa. _ Meu gato, quando lhe faço carinho, come até ração velha.

À volta

O que há à minha volta? _ Por acaso você já se perguntou sobre o que há à sua volta?

Pois o que vejo por aí?

No meu caso: um monte de livros, alguns sobre o Irã. Meu Deus, o Irã. A última revolução significativa. Da série de três _ a primeira que não acontece na Europa. Mas a Rússia não é a Europa, não é? Jihad-shahadad. Na França, Napoleão. Na Rússia, Stalin. No Irã, Khomeini. Decididamente _ não fazer a revolução. Não, não fazer a revolução. Foucault pergunta: _ inútil revoltar-se? Sim, Foucault, inútil revoltar-se. Simplesmente viver, viver até a morte, não dar essa morte em louvação senão a Deus. Cuidado de si. Helenisticamente, diante do império, cuidar de si. Impossibilidade da política, Foucault? Impossíbilidade da política? Essa é a nossa questão.
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Contribuição ao estudo do comportamento animal

Meu gato tem realizado performances. O que quero dizer com "performances"? Quero dizer que não se trata de um hábito seu. Do nada, ele descobriu essa coisa. Faz alguns dias. É muito provável que deixe de fazê-lo em breve. Essa coisa que é: _ele abre as tampas dos ralos do apartamento. Na varanda, no banheiro, na área de serviço, no outro banheiro. Aqui, ali, não todos ao mesmo tempo. Ele de vez em quando os destampa, um, outro, surpreendentemente. Parece que por brincadeira. A tampa fica ali, ao lado do buraco, desfuncionalizada. Chamo isso de performance porque, como disse, ele nunca foi de fazer isso. Isso é uma ação, uma invenção, uma intervenção no tempo, uma interferência dissonante, é voluntário, transforma, chama a atenção, exige uma reação. Isso me comove de pronto, não consigo deixar o ralo sem tampa. Vou lá e tampo o ralo aberto, profundo, garganta telúrica capaz de engolir o mundo, janela para o além. O gato me faz interagir com ele. A tampa do ralo e o ralo, como intermediários dessa interação. Uma intermediação. Não acontece o tempo todo. Não é uma fixação. Só quando ele decide, segundo sua lógica. Desarranjando, produzindo singularidades que rompem o encadeamento funcional das coisas umas nas outras, ele produz história. História animal.

19

O engajamento do leitor tem vários graus possíveis: ler sem compreender; ler somente o que compreende; e, quando se dispõe a se transformar com a leitura, então, buscar ler o que não compreende.

Pequeno serviço público (ao menos um) - dois

Do Tao-tö-king, XI. De Lao-tseu.
___________________________

Trinta raios convergem ao meio,
mas é o vazio mediano que
confere ao veículo sua função.

Modela-se a argila para fazer vazos,
mas é do vazio interno
que depende seu uso.

Uma casa é perfurada de
portas e janelas,
ainda é o vazio que
permite o uso da casa.

Assim "o que é" constitui
a possibilidade de toda coisa;
"o que não é"
constitui sua função.


Traduzido por mim da tradução francesa: LAO-TSEU, –; TCHOUANG-TSEU, –; LIE-TSEU, –. Philosophes taoïstes. Bibliothèque de la Pléiade. Trad. Liou Kia-hway e Benedykt Grynpas. Paris: Gallimard, 1980. 782 p.

Há quem afirme o absurdo de uma filosofia independente da grega.
Mas como interpretar este texto oriental, a não ser filosoficamente?

Quando eu for nada

Quando eu estiver acabado, só poderei prestar serviços públicos. Quando eu estiver acabado, somente então começarei a servir para alguma coisa.

Pequeno serviço público (ao menos um)

Segue minha tradução para o português de uma tradução para o francês de um fragmento em alemão de Walter Benjamin.

***
Fragmento teológico-político
Walter Benjamin (1921)

[p. 263] Só o messias, ele mesmo, perfaz todo devir histórico, nesse sentido que só ele redime, perfaz, cria a relação desse devir com o próprio elemento messiânico. Por isso, nenhuma realidade histórica pode, por si mesma, querer se referir ao plano messiânico. Por isso, o reino de Deus não é o telos da dinamis histórica; ele não pode ser posto como alvo. Historicamente ele não é um alvo, ele é um termo. Por isso, a ordem do [p. 264] profano não pode ser construída sobre a idéia do reino de Deus; por isso, a teocracia não tem um sentido político, mas somente um sentido religioso. O maior mérito de O espírito da utopia [1918], de [Ernst] Bloch é ter recusado vigorosamente toda significação política à teocracia.

A ordem do profano deve se edificar sobre a idéia da felicidade. A relação desta ordem com o elemento messiânico é um dos ensinamentos essenciais da filosofia da história. Esta relação condiciona, com efeito, uma concepção mística da história, cujo problema pode-se expor em uma imagem. Se a gente representa por uma flecha o alvo para o qual se exerce a dinamis do profano, por uma outra flecha a direção da intensidade messiânica, seguramente, a busca da felicidade da humanidade livre tende a se afastar dessa orientação messiânica; mas, assim como uma força pode, por sua trajetória, favorecer a ação de uma outra força sobre uma trajetória oposta, assim também a ordem do profano pode favorecer o advento do reino messiânico. Se o profano, então, não é uma categoria deste reino, ele é uma categoria, e entre as mais pertinentes, da sua aproximação imperceptível. Pois, na felicidade, tudo que é terrestre aspira a seu aniquilamento, mas é somente na felicidade que este aniquilamento lhe é prometido. – Mesmo sendo verdade que a intensidade messiânica imediata do coração, de cada indivíduo no seu interior, se adquire através da infelicidade, no sentido do sofrimento. Ao movimento espiritual da restitutio in integrum [restabelecimento no todo inteiro], que conduz à imortalidade, corresponde uma restitutio secular que conduz à [p. 265] eternidade de um aniquilamento, e o ritmo dessa realidade secular eternamente evanescente, evanescente na sua totalidade, evanescente na sua totalidade espacial, mas também temporal, o ritmo dessa natureza messiânica é a felicidade. Pois messiânica é a natureza, por seu eterno e total evanescer.

Buscar esse evanescer, mesmo para esses planos do homem que são natureza, tal é tarefa da política mundial, cujo método se deve chamar niilismo.


BENJAMIN, Walter. Fragment théologico-politique. In: Oeuvres I. Paris: Gallimard, 2000. Pp. 263-265.
Publicado somente em 1955, este texto foi redigido, segundo Gershom Scholem, em 1920-21, contemporâneo, portanto, de Crítica da violência: “[...] estas páginas não contêm ainda qualquer relação com as concepções marxistas. Elas se situam no terreno de um anarquismo metafísico [...]”.

O que é isso, o estado pós-neotênico?

Certos animais reproduzem-se somente em estado de larva. Sendo que seu desenvolvimento posterior, seu amadurecimento, não tem qualquer função reprodutiva.

Conheci esse fenômeno, a neotenia, através da obra do naturalista Levi. “Em suma – escreve Dr. Levi –, é como se uma lagarta, uma fêmea, copulasse com outra lagarta, fosse fecundada e depositasse seus ovos antes de se tornar borboleta”*.

Esse tornar-se borboleta, essa metamorfose, acontece apenas com um número reduzido de larvas, provavelmente com as que alcançam uma existência prolongada. A maioria permanece no estado embrionário, mas sexuado, até a morte. Dr. Levi esclarece que com a larva em cativeiro, no laboratório, não se consegue estabelecer as condições dessa transformação.

A transformação da larva em um ser colorido, harmônico, hábil, enfim, mais perfeito (pelo menos para os padrões estéticos humanos) não favorece em nada a reprodução da espécie. A borboleta assexuada do estado pós-neotênico é um ente totalmente gratuito do ponto de vista da espécie ou biológico, e por isso constitui uma aberração à luz da lei da seleção natural.

Procuro pensar que relação se pode estabelecer entre a neotenia e a passagem de Bashar a Ensan. Aparentemente, há alguma, mas qual? À primeira vista, Bashar seria a larva reprodutora; Ensan, a borboleta pós-neotênica – um milagre desligado da natureza biológica e cíclica. Mas no alcance do Ensaniat, Ithar e Thar são os operadores. Enquanto a metamorfose da larva não exige a sua morte, mas sua transformação viva.

O shi'ísmo de Shariati oferecia o shahadat (o martírio) como operador da passagem ao sublime pós-natural e transcendente. O estado pós-neotênico, por outro lado, é alcançado ainda em vida, na imanência.

Se há um estado pós-neotênico da espécie humana, em que se constitui? Seria um estado de superação de sua condição biológica e biopolítica? Pode o ser humano alcançar uma dimensão sublime em vida? Poderíamos chamar esse estado sublime de espiritualidade? Seria esse o übermensch, o para além do humano de Nietzsche?

O pós-neotênico humano: um ser vivo mais perfeito, para o qual a morte deixou de ser uma barreira, porque realizou sua sublimidade ainda em vida.

(*) LEVI, Primo. Borboleta angélica. In: 71 contos. Trad. Maurício Santana Dias . São Paulo: Companhia das Letras, 2005. P. 57.

Cladonia Rapida

É improvável que a bactéria Alcyon Alba tenha qualquer parentesco com o líquen Cladonia Rapida descrito pelo botanista Levi, em breve artigo científico de 1966, retomado em uma coletânea recente de seus escritos.

Vulgarmente conhecido como o “líquen dos automóveis”, Cladonia Rapida, segundo Levi, encontra terreno fértil nas “estruturas externas e internas dos veículos”, levando em curto intervalo à sua inutilização, em geral, devido à “grimpagem aguda e simultânea dos quatro cilindros”. Levi relata um caso isolado de contaminação humana pelo líquen. No tocante à Alcyon Alba, não há nenhum caso conhecido de contágio humano.

LEVI, Primo. Cladonia Rapida. In: 71 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Pp. 61-64.

Dispositivo do futebol

O dispositivo é uma espécie de armadilha. Não é preciso denunciar, todos somos conscientes: _o futebol é um dispositivo armado em torno da bola. Mas é preciso ir a um estádio para perceber todo o efeito-plasma que este dispositivo envolve.

Apesar de todo mundo saber do jogo sem bola, fora dos gramados – as negociações, os contratos, os poderes, o uso político, o uso publicitário, o interesse da mídia, os observatórios capilares de talentos, a apreensão da atenção de vasta multidão, o nacionalismo, a internacionalização –, mesmo assim há aderência. Pois o futebol afeta e, apesar da consciência racionalizante que entende o que há por baixo de tudo isso, nos deixamos levar.

O futebol afeta, e a explicação para isso não pode ser mais simples: _afeta porque somos entes cuja potência é por natureza afetiva. Negar a afecção seria como negar a potência que somos. E o futebol nos carrega porque somos entes de imaginação. A imaginação justifica o dispositivo que a consciência condena ao inferno.

A imaginação salva o dispositivo porque, num determinado momento desse jogo, tudo é como é, o que está por cima e aparente é real. O jogador joga, o torcedor torce, o jogo vale, os times competem, realmente. Sob os holofotes, torcida, campo, técnico, banco, comentador, espectador, camisa, cor, sangue, glória, a realidade se plasma em torno da bola.

E o que fazer da consciência? A razão, que corrói o maléfico dispositivo, ameaça porém corroer também nossa natureza afetiva. Ficamos, de certo modo, presos entre esse niilismo da razão consciente e essa jaula da imaginação.

Entre um real vazio e uma imaginação cheia, fica a pergunta: _há alguma realidade que não seja imaginária? Algum modo de ser por fora de qualquer dispositivo?

Regnum dei

Com a verdade, saímos entusiasticamente do reino da contingência para o reino da necessidade (regnum dei). Nesse entusiasmo, porém, brilha a idolatria.

A verdade, como deus, está sob 70.000 véus de luz e de trevas. A cada ciclo de luz e iluminação, a cada ciclo de obscurecimento e trevas, um véu é removido. E cada um desses ciclos envolve séculos de labor intelectual humano. Então, faça-se o cálculo: a verdade não é para hoje.

Por isso, bradam os geômetras: _estamos condenados à liberdade! Estamos condenados à imaginação!

As regras de leitura

A informaçãoBLOG, em certo sentido, se lê de trás para frente.

Uma sintaxe estendida regula a articulação, não só das palavras e das suas posições num sintagma, mas também das proposições e até mesmo dos parágrafos.

Uma inversão pensável da sintaxe usual poderia ter como regra: _ apresentar primeiro a conclusão e só depois as premissas. Numa tal sintaxe, estaríamos mais aptos a compreender que a ação política não é uma decisão que se segue a um processo deliberativo, mas que, inversamente, são as justificativas que se seguem à ação.

Embora apareça, na nossa sintaxe, em primeiro lugar, Deus não é – como disse Nietzsche – uma causa primeira. Não está no início de tudo, mas é algo que a humanidade só alcançou depois de muito tempo e elaboração. Não é uma premissa, mas uma conclusão.

Spinoza também alertou para as nossas inversões freqüentes, que tomamos os efeitos como causas, os fins como princípios.

É regra da sintaxe da informaçãoBLOG: _o que aparece primeiro é o que foi escrito por último.

Libera ingenia

Os espíritos-livres (libera ingenia) não são como poderíamos esperar que fossem. Seu caráter e suas disposições são diferentes daquelas que as circunstâncias parecem induzir, num determinado momento, numa determinada sociedade. Mostram-se como um efeito sem causa.

Sua liberdade fica sinalizada por uma certa excentricidade do sujeito, o que causa um certo desconforto, às vezes neles mesmos, às vezes no meio social envolvente.

De fato, os espíritos-livres não se enxergam. Quer dizer, são incapazes de enxergarem-se com os olhos dos outros. A imagem que têm de si mesmos é sempre diferente, para melhor ou para pior, da imagem que os outros fazem deles. Esse desencontro é um problema de identidade. E esse problema de identidade é a sua liberdade.

Num momento de rebelião consciente, o espírito-livre pode dizer: _ "Eu não sou isso que vocês dizem que eu sou". Mas sua liberdade nem sempre se manifesta como rebeldia.

18

A dupla-negação traz de volta o que foi negado (¬¬A=A). Outra coisa é o duplo-engano, não traz de volta nada, só nos leva ainda mais ao indefinido.

Ithar: o passo de Bashar para Ensan

Quando andamos na opacidade da neblina absoluta, um passo à frente pode nos colocar no limiar de um precipício abissal...

Segundo Shari'ati, Ithar tem a mesma raiz que Thar (sangue)*.

A libertação completa das determinações naturais do ser humano só é atingida quando o indivíduo se libera da ipseidade, do seu si próprio, do seu ego. Apenas mediante Ithar, pela religião e pelo amor, o indivíduo alcança o nível supremo de Ensan, e ultrapassa a sua última prisão, que é o Eu.

Segundo Shari'ati, não há outra via para o Ensaniat (a realização da essência humana como perpétuo vir-a-ser na direção da infinitude) do que Ithar.

Ithar, que nos coloca definitivamente acima da bestialidade de Bashar, está além da lógica e da racionalidade. Ithar é o amor religioso pelo outro que culmina no sacrifício de si (e disso vem sua remissão ao sangue). Ithar é a "generosidade excessiva" em vista do outro, mediante o auto-sacrifício – a entrega dos pertences, eventualmente da vida. Ithar é amar o próximo mais do que a si mesmo.

Ithar não é o amor a deus, mas ao próximo. Corresponde só a dimensão política (e não à teológica) do imperativo judaico-católico de amar a deus acima de tudo e o próximo como a si mesmo.

Entretanto, se não me engano, Ithar não é Jihad. Não se trata de Jihad, da guerra justa ao opressor. Mas da guerra contra a opressão do Eu, que nos mantém no estado de Bashar. Ithar, e não Jihad, seria a conseqüência última da espiritualidade shiita. Ou seria isso um abuso de linguagem?

Ithar e Jihad podem estar conectados, mas não estão necessariamente. Talvez Ithar (se Ithar é o amor universal) até mesmo exclua a escolha da Jihad. Mas então talvez já não se trate do Islã shiita.


(*) SHARIATI, Ali. Modern man and his prisons. In: SHARIATI, Ali. Man and Islam. North Halendon: Islamic Publications International, 1981. P.62.

Bashar e Ensan

No Qur’an, há dois termos para designar o ser humano: Bashar e Ensan*. Bashar é o ente humano dado, o animal biológico. Ensan, o que na humanidade remete à poesia, à filosofia, à religião. Bashar é o ente humano biológico que se reproduz indefinidamente, preso à sua própria definição. Ensan é o sendo humano, aquilo que no ser humano é não um ente definido desde sempre e para sempre, mas um vir a ser. Bashar é, no ser humano, o determinado. Ensan, o indeterminado, o aberto, o indefinível.

Se Hannah Arendt aceitasse essa dupla dimensão humana do Qur’an, ela diria que no humano Bashar labora, enquanto Ensan age. Bashar é o econômico, o condicionado, e Ensan, o político, o incondicionado, o livre.

Em Nietzsche, a questão do eterno retorno aplica-se não só a Bashar, o ente que reproduz indefinidamente a si mesmo, preso que é à sua definição auto-reprodutora, mas também a Ensan. De modo que, para Nietzsche, a própria ação volta a se repetir num ciclo contínuo e eterno (como se, num certo momento do disco vinil, um arranhão fizesse com que a agulha desse um salto para trás e repetisse a mesma música novamente).

Segundo Foucault – que diz que o ser humano moderno é o ser biopolítico: “o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”–, para o ser humano, acontece que Ensan interfere politicamente sobre Bashar. O humano moderno é o animal que age sobre si mesmo, e cuja ação é tal que transforma a sua própria determinação biológica. Exemplos dessa ação política de Ensan sobre Bashar seriam a vacinação, a iatrogenia, a eugenia, as políticas de natalidade, a bomba atômica, a genética, a sexualização do corpo, a redução dos mistérios da humanidade à sua vida econômica.

Temos então três possibilidades da relação entre Bashar e Ensan. (1) a corânica, que é, nesses termos, a mesma que a de Arendt – em que a duas dimensões são independentes uma da outra. (2) a de Nietzsche, em que Ensan emula Bashar, e praticamente não se distingue do seu mecanismo. E finalmente (3), a de Foucault, em que Ensan se funda sobre Bashar, e é por ela determinada; o que torna o ser humano unidimensional**.

(*) Conferir:
SHARI’ATI, Ali. Modern man and his prisons. In: SHARI’ATI, Ali. Man and Islam. North Halendon: Islamic Publications International, 1981. Pp. 46-62.
(**) Outras referências:
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 [1958].
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 [1882]. Aforismo 341.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 15 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.

Encruzilhada

Num mesmo plano, caminhos diferentes, quando retos, acabam sempre se cruzando.

Descartes, todo mundo sabe, diz: – antes de termos certeza, não afirmemos nada. Esse é o grau zero da liberdade humana – o poder imenso de nossa vontade nos permite não dizer sim a nada, a respeito do que ainda não temos uma demonstração absolutamente convincente.

Sobre uma outra reta, Khomeini fala outra coisa. Nada nos obriga a dizer não àquilo cujo erro ainda não foi comprovado. Deveríamos suspender nossa descrença, e considerar as coisas afirmadas como possíveis até que tenhamos uma prova absoluta da sua impossibilidade. Esse é, para Khomeini, o primeiro passo da fé.

O plano comum aos dois é a vontade humana livre. Neste plano, seja com Descartes, seja com Khomeini, por caminhos diferentes, chegamos ao mesmo lugar: essa cruzada em que suspendemos nossas crenças e nossas descrenças. Um lugar de liberdade, onde todo o duvidoso ainda é possível e ainda não é necessário.

O grau zero da liberdade e o primeiro passo da fé são o ponto de cruzamento de Khomeini com Descartes. A partir daí, podemos seguir caminhos diferentes.

17

A verdade ilude e seduz, como um deus que só se mostra sob 70.000 véus de escuridão ou de luz.

16

A verdade é como um deus vitorioso, que só se afirma único quando se impõe acima de todos os outros.

15

O que a escola nos ensina? Ensina-nos a temer dizer a verdade. Porque a verdade é sempre outra coisa daquilo que a gente diz.

O evento natural de Spinoza

Na física, quando isolamos um evento, um sistema de partículas, temos a intenção de nos despreocuparmos com aquilo que se passa no seu interior.

Isso é possível, porque o determinismo na física diz que as variações de estado (massa, energia, posição, velocidade) de um sistema de partículas são determinadas apenas pelas interações (afecções) desse sistema com o que está à sua volta. Um sistema isolado persevera em seu ser, em seu estado, apesar de todas as mudanças que possamos perceber no nível de suas parcelas. Como um todo, o sistema isolado não muda, e permaneceria indefinidamente sem mudanças, enquanto permanecesse isolado. Num evento isolado, as variações internas locais são compensadas por variações internas opostas em um outro local do sistema. Trata-se do estado ideal de homeostasia. Um evento isolado das influências do meio envolvente é, em si mesmo, homeostático.

Um indivíduo, para Spinoza, é um evento (ele chama de conatus) que, por sua própria natureza, se esforça em manter-se em seu ser. O ser individual, em Spinoza, é, por assim dizer, um evento natural. Uma certa configuração de parcelas ama a si mesma tal como é, e deseja manter-se em seu estado. Esse desejo é o indivíduo. Quando esse desejo termina, o indivíduo se desagrega.

Spinoza se insere no que foi dito no segundo parágrafo, enquanto afirma que as causas da desagregação de um indivíduo são sempre exteriores a ele. É impossível um desejo que deseje seu próprio fim. Mas o evento em Spinoza jamais é isolável (aliás, na física, esse isolamento é apenas pensável). Ele diz explicitamente: não podemos conceber o evento humano como um imperium in imperio, como um evento isolado do meio envolvente. O evento é uma membrana, não um cortina de ferro.

Por um lado, o indivíduo é um evento natural, sua determinação não é arbitrária. Por outro, porém, seu arranjo interior é inseparável do arranjo das coisas nos seu exterior.

Vejamos algumas proposições da Ética de Spinoza*, a partir das quais podemos reconstituir o que foi dito:

E2P13Pos1: “O corpo humano compõem-se de muitos indivíduos (de natureza diferente), cada um dos quais é também altamente composto”. Spinoza não diz porém, como parece sugerir Pascal, pelo menos não aqui, que o corpo humano compõe, numa proporção acima da que percebemos, um outro indivíduo.

E3P4: “Nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior”.

A famosa E3P6: “Cada coisa esforça-se (conatur), tanto enquanto está em si, por perseverar em seu ser”. E3P8: “O esforço (conatus) pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser não envolve nenhum tempo finito, mas um tempo indefinido”. E3P7: “O conatus [...] nada mais é do que a sua essência atual”.

E finalmente E3defaff1: “O desejo é a própria essência do homem [...]” ou E3P9S.

(*)SPINOZA, Benedictus de. Ethica-Ética: edição bilingüe latim-português. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007 [1675].

O evento em Pascal

Vale a pena, pelo simples prazer, nesse contexto, um pequeno passeio por Pascal. Nos seus Pensamentos*, lá pelas tantas da seção 69, ele vem refletindo nesse evento meio-termo que somos.

“Dois infinitos, meio termo”. Com uma leitura muita apressada nada se entende. Com uma muito lenta, tampouco. Adiante, comentando “in vino veritas”, ele nota que sem vinho não se encontra a verdade, mas também não se encontra com vinho em demasia. (Parênteses: em que medida poderíamos definir uma leitura como um evento?)

Mas o que me parece mais atraente é que Pascal estende, na seção 72, essa mesma reflexão a uma lêndea... (é possível que ele a observe com uma lente de aumento) “que, na pequenez de seu corpo, contém partes incomparavelmente menores, pernas com articulações, veias nessas pernas, sangue nessas veias [...]; dividindo-se estas últimas coisas esgotar-se-ão as capacidades de concepção do homem, e estaremos, portanto, ante o último objeto a que possa chegar o nosso discurso”. Isto que seria o átomo, o indivisível. Mas o indivisível é apenas uma concepção humana. “Quero mostrar-lhe, porém, dentro dela [da menor coisa da natureza] um novo abismo. [...] Aí existe uma infinidade de universos, cada qual com seu firmamento, seus planetas, sua terra em iguais proporções às do mundo visível; e nessa terra há animais e neles essas lêndeas, em que voltará a encontrar o que nas primeiras observou”.

O ser humano está suspenso entre dois infinitos, um envolvente, o do enorme, outro envolvido, o do ínfimo. Não há um patamar inferior indivisível que pare o processo para o ínfimo aquém. Assim como não há um inadicionável que suspenda o processo para o enorme além.

O evento do indivíduo humano é uma faixa nesse continuum sem termos. No limite (se isso de alguma forma não constituir uma blasfêmia), reencontraríamos indivíduos humanos, como reencontramos as lêndeas, noutras faixas para baixo e para cima na escala das proporções. Um homem talvez faça parte de um outro homem muito maior que ele. Mas não necessariamente. Pode ser que um homem faça parte de uma caneta. Essa caneta de uma gigantesca árvore. Essa árvore de uma mulher enorme.

Para Pascal, o evento é uma espécie de sintonia, à qual se ajusta a percepção humana. Nossa percepção está em sintonia como uma faixa de eventos. Dentro dessa faixa, as coisas estão em proporção e são perceptíveis. Isso não impede que a proporção se encontre em outras faixas, para cima ou para baixo do infinito espectro dos eventos.

(*) PASCAL, Blaise. Pensamentos. Trad. Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988 [1670].

O evento-membrana

O evento isola um estado de coisas. Como é arbitrário, poderíamos isolar subconjuntos desse evento. E esses subconjuntos também seriam eventos. O evento é uma membrana lógica, não uma entidade.

Dependendo da escolha, um indivíduo humano, num certo intervalo de tempo, é um evento. Seu coração é outro evento. Uma célula do coração, outro. Numa outra direção, o quarto onde esse indivíduo se encontra é um evento. A família em que vive. Um grupo de amigos. A sociedade. A cidade. O continente. O planeta. A galáxia.

O evento-membrana envolve um recorte espacial e temporal; é uma parcela de história. Qualquer parcela pode ser arbitrariamente isolada, num evento, do infinito que a cerca. Mas o infinito mesmo não pode ser isolado. O infinito não pode ser um evento, pois não é uma parcela de si mesmo.

Nosso mundo vivido e natural nos parece feito de eventos, de parcelas recortadas do infinito, em complexas relações umas com as outras. Então, uma questão surge: – se os eventos são lógicos e arbitrários, o recorte do mundo em eventos depende de um sujeito? Somos nós, individualmente, enquanto somos um eu, que recortamos o mundo? Esse não seria um atributo divino, o poder eventualizar o mundo infinito? Ou será a linguagem que efetua, em nosso lugar, essa eventualização do mundo?

É preciso cuidado com as questões, se elas nos interrompem em armadilhas e labirintos. As questões surgem de uma fonte em si mesma questionável: a vontade de verdade – e aqui (isso é uma informaçãoBLOG) não nos comprometemos com ela.

Determinismo

Na verdade, abri o livro de Hawking por outro motivo. Interessam-me as suas exposições sobre o determinismo (um avatar moderno de Ananke, a deusa grega da necessidade).
Pareceu-me que Hawking confunde 2 coisas:
  1. A possibilidade teórica de conhecermos o passado e o futuro.
  2. E o determinismo.
O que chamo de determinismo é a idéia de que todo evento do mundo é determinado a ser assim tal como é porque todo evento (um estado de coisas isolado no espaço e no tempo, formado por um sistema de partículas em movimento) é ligado de modo unívoco a tudo o que lhe afetou, seu passado próprio.

Mesmo admitindo o determinismo (e que conheçamos as equações que descrevem os movimentos de tudo), isso não implica que possamos conhecer o passado ou o futuro. (Pois como Hawking afirma uma parte da informação passada é engolida por buracos negros, e parte da futura será engolida.)

Sobre o determinismo geográfico, ver aqui.

Encobrimentos

Continuamos sobre o tema da Fortuna. O que se segue é apenas um desvio, uma voltinha, para nos familiarizarmos com a paisagem antes de retornarmos à estrada principal.

Stephen Hawking começa assim seu livro de divulgação científica: “Albert Einstein, o descobridor das duas teorias da relatividade...”*.

Não sei dizer se é um problema de tradução – e isso aqui não tem importância –, mas me chamou a atenção o uso da palavra ‘descobridor’. Descobrir é retirar a coberta que encobre alguma coisa, que por esse ato de descobrimento se revela tal como é de verdade. Descobrir é desvelar, retirar o véu que encobria e turvava a visão.

Por isso, há aqueles que reclamam que não houve propriamente um Descobrimento do Brasil. Porque o Brasil não jazia sob a travessia do Atlântico. De fato, o Brasil não foi descoberto, mas ‘Brasil’ é o nome dessa viagem secular pela qual os portugueses encobriram o sem-nome. Seria mais adequado falar de Encobrimento do Brasil e mais bonito, de Invenção do Brasil. 500 anos de Invenção do Brasil.

Da mesma forma, eu não diria que Einsten descobriu a teoria da relatividade, mas que a inventou a partir de uma interpretação criativa de fenômenos escolares (isto é, fenômenos ad hoc, que envolvem um longo ciclo histórico fechado sobre si mesmo, e que os lógicos chamam de ‘petição de princípio’). A teoria da relatividade não é uma descoberta, mas uma coberta. Quem sabe, começar assim o livro de Hawking: “Albert Einstein encobriu o sem-nome do mundo com as duas teorias da relatividade...”?

*HAWKING, Stephen. O universo numa casca de noz. Trad. Ivo Korytowski. São Paulo: Mandarim, 2001.

O diabo e a Fortuna

O monoteísmo interpreta os acontecimentos como desdobramentos de uma só força, de um único princípio. O politeísmo, por sua vez, como o confronto no mundo de diferentes forças ou princípios.

Por isso, no monoteísmo puro, o diabo tem que ser necessariamente um desdobramento da própria divindade. Ele não possui uma força própria. Ele não é um princípio independente, mas é como uma figura que torna possível, no cosmos, a deliberação, o diálogo de deus consigo mesmo, a consciência dialógica divina. O diabo está junto à origem da dialética, quando o um se faz dois, ao negar-se a si mesmo.

A deliberação divina implica uma espécie de hesitação, uma suspensão momentânea do juízo de deus. Nada se passa. Ou tudo se passa como se o tempo parasse, como se os eventos não soubessem como acontecer, enquanto deus reflete em sua consciência.

Para manter-se estritamente monista, e não tornar-se maniqueísta, vinculando o devir ao jogo de dois princípios, um bom e outro mau, o monoteísmo precisa entender o deus que se confronta ao diabo como um subdeus. Haveria um deus que se desdobra em dois, em sua consciência dialógica, em subdeus e diabo.

Deus, como vontade, faria acontecer no mundo, conforme sua escolha entre o que lhe dispõem o subdeus e o diabo. Se deus escolhesse sempre e necessariamente conforme o que lhe dispõe o subdeus, então deus e subdeus seriam o mesmo, e o diabo apenas um apêndice.

Contudo, é um absurdo considerar a possibilidade da equivalência entre deus e subdeus. A equivalência do princípio supremo com um princípio subalterno é contraditória com a suma essência do deus único. Se deus é incomparável, não pode guiar sua escolha pelo critério de um ser inferior. Então, para manter sua supremacia absoluta sobre o cosmos, é preciso que, de vez em quando, o sumo e único deus escolha arbitrariamente segundo o lhe dispõe o diabo, que afinal de contas é apenas um aspecto da própria divindade.

Assim, do mesmo modo que a cosmologia politeísta, que submete o devir ao resultado incerto do conflito das forças primárias, a cosmologia monoteísta do diálogo entre deus e o diabo resulta num cosmos que se abre para a contingência (que no politeísmo grego é uma deusa: Tyche; e no romano, justamente, é a Fortuna).

No politeísmo, o confronto entre os deuses, entre as forças cósmicas que regem os acontecimentos no devir, terá sempre um resultado incerto, ligado às circunstâncias mesmas desse confronto. O primeiro princípio, na Teogonia de Hesíodo, é Caos (v. 116). Se não é o único primeiro princípio, pelo menos permeia tudo, desde sempre. Caos é o princípio sem princípio do cosmos. O que desarticula e reconfigura perpetuamente os outros princípios-força. Caos estabelece no cosmos o reino da contingência.

Se o resultado do conflito entre os deuses fosse necessário, se houvesse um destino pré-estabelecido de algum modo, o embate de forças seria regido por um princípio transcendente, que estaria acima das forças em jogo, uma força maior, um deus maior. E então estaríamos falando do mais puro monoteísmo. Se existe Ananke, a deusa grega da necessidade (que não aparece na Teogonia de Hesíodo) que torna trágica até mesmo a vida dos deuses do Olimpo submetidos a ela, então estamos falando de um princípio maior e acima de todos os subdeuses.

A Fortuna

A Fortuna é a ingerência arbitrária do divino no curso do mundo. O que seria determinante para que as circunstâncias fossem favoráveis ou desfavoráveis para algum indivíduo em particular. Um mundo sem a Fortuna é um mundo em que os deuses não interferem a favor ou contra ninguém.

Sigamos a trilha do puro monoteísmo. No início de tudo, ou desde sempre, a divindade estabeleceu as leis dos acontecimentos, os princípios eternos segundo os quais tudo no mundo vem a ser.

Isso não significa necessariamente que, depois disso, a humanidade foi abandonada. Não somos forçados a dizer que a divindade, ao criar as leis fixas dos acontecimentos, deixa o mundo e a humanidade entregues ao mecanismo de suas leis. Podemos dizer que os deuses estão presentes, se considerarmos a divindade como sendo a própria lei divina.

Considerada leis do devir, a divindade é ao mesmo tempo causa de tudo que acontece. O mundo não é o mundo do abandono , mas é pleno da presença divina, é imanentemente divino.

Aos bem-sucedidos

Aqueles que acreditam na Fortuna avaliam um indivíduo bem sucedido, dependendo das circunstâncias, seja como uma pessoa “eleita por deus”, seja como alguém que “vendeu sua alma ao diabo”.

Aqueles que não acreditam usam as mesmas expressões, mas apenas como metáforas das qualidades pessoais, virtuosas ou viciosas, que atribuem àquele indivíduo.

Isso nos introduz ao tema da Fortuna.

14

As observações negativas a respeito de uma pessoa de sucesso – mesmo as bem justificadas – são facilmente consideradas reações motivadas pela inveja.

O fogo do inferno

Temos as descrições de Dante. Mas Dante passa por elas fisicamente incólume. Temos as de Joyce*. Ainda mais sensíveis, a meu ver. Tudo sentimos, embora nada vejamos, pois o inferno são trevas. “Colocai o vosso dedo por um momento na chama de uma vela e sentireis a dor do fogo. Mas o nosso fogo terreno foi criado por Deus para benefício do homem, para manter nele a centelha de vida e para ajudá-lo nas artes úteis, ao passo que o fogo do inferno é de uma outra qualidade e foi criado por Deus para torturar e punir o pecador sem arrependimento”*.

Ou seja, o fogo da vela não é propriamente o fogo inferno, e o fogo do inferno não é propriamente o fogo da vela. O fogo do inferno não é fogo, ou só o é de modo eminente. Sobre o modo eminente de ser, há um belo áudio de Deleuze.

Para o “ImamKhomeini, é a fé no inferno (e, então, não a fé em Deus) que nos faz buscar o caminho de Deus, sem pecado. “É possível que alguém considere verossímil a existência do fogo do inferno e a eventualidade de nele queimar eternamente, e ainda assim ofender a Deus?”**.

Spinoza lida com o inferno de uma outra maneira. Spinoza reconhece que, sem a crença em um Deus onividente, onipresente e onipotente, não há por que o vulgo não tomar o caminho do pecado. “III. {é um dogma da fé} Ele estar presente em todo lugar, ou tudo Lhe estar exposto: {pois} se acreditassem esconder-Lhe as coisas, ou fosse ignorado Ele tudo ver, {então} da eqüidade da Sua justiça, que tudo governa, seria duvidado ou ignorado” ***.

Mas aquele que evita o pecado tendo em vista o mal, que sobre si incidiria caso pecasse, não está livre. Aquele que age bem de modo a evitar o mal, a punição, o fogo do inferno, permanece escravo, porque age negativamente. Só aquele que age bem pelo amor do bem {ou pela fé em Deus} é livre ****. Um modo de dizer que a liberdade negativa (de agir enquanto não há uma interdição) não é uma verdadeira liberdade. Ou a liberdade é agir para evitar o mal, mas apenas de modo eminente. A verdadeira liberdade é agir por amor ao bem, embora isso, praticamente, nos seja inacessível, inapreensível, incognoscível.

Aliás, e talvez tenha alguma coisa a ver com tudo isso, Ch. Dickens fala de uma centelha de vida: "Ninguém tem a mínima consideração pelo homem {o canalha Riderhood}: com todos eles, ele tem sido objeto de repúdio, suspeita e aversão {ninguém se importaria se fosse queimar no inferno}; mas a centelha de vida dentro dele é curiosamente separável dele mesmo, e eles têm profundo interesse nisso, provavelmente porque aquilo é vida, e eles {como Riderhood} estão vivos e devem morrer" (citado por Agambem, que cita Deleuze, que cita Dickens...).

Para resumir, eu diria: o fogo do inferno é eminentemente, e de modo inverso, o que a centelha da vida é propriamente.

Agora, para compreendermos Spinoza, é preciso captar, se for possível, o modo de ser EMINENTE como IMANENTE. O modo eminente de Deus, para Spinoza, não é transcendente. Deus e o modo eminente de ser não estão além-mundo. Assim como o fogo do inferno não está, ou não estaria.

(*) JOYCE, James. Retrato do artista quando jovem. Trad. José Geraldo vieira. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001 [1914]. Cap. III, pp. 134 ss.
(**) KHOMEINI, Ruhullah. Islam and Revolution: Writings and Declarations of Imam Khomeini (1941-1980). Trad. Hamid Algar. North Haledon: Mizan Press, 1981. P. 354.
(***) SPINOZA, Benedictus de. Tractatus theologico-politicus. Hamburgi: apud Henricum Künraht, 1670. Cap. XIV, p. 163.
(****) Ibid. Cap. IV, p. 52.

Antes e depois



Fonte: site BBC.

Olho aberto e, logo, fechado, com a cabeça um pouco inclinada para o lado. Somos mortais.

O fotógrafo talvez fale em antes e depois. Se tudo permanece como está, não há propriamente um depois.

Alguém morreu

Quando aprendo que alguém morreu, uma pergunta logo aparece na ponta da minha língua, como um reflexo. – Mas morreu de quê?

Muitas vezes, por pudor, que é um pouco de vergonha e de respeito misturados, seguro a pergunta ali onde a percebo, e a engulo, para que passe por onde tem que passar, até sair do meu corpo. Afinal, que relevância tem a pergunta? Pensando bem, o móbil da pergunta talvez seja o desejo de saber o que devo absolutamente fazer para evitar ter um destino semelhante ao daquele que morreu. Não é curiosidade. É um comportamento atávico. É insistência.

Então, eu digo para esse bicho que sou. – Não é a vida que importa, mas o que ela escreve.

13

A morte é como um cão indolente, deitado à beira da rua. Nos vê passar de um lado para o outro. Apenas nos acompanha do olhar. E um dia, zac... Mas, afinal, o que me dá de pensar na morte?

Sobras do almoço

Talvez o característico da filosofia não seja a unidade de objetos, conceitos, métodos, mas a atitude. E qual seria essa atitude? Talvez, a de alguém que, ao aproximar-se, questiona-se profundamente: “Afinal, o que é isso?”

Essa aproximação do filósofo, na verdade, é um distanciamento. O filósofo aproxima-se, distanciando-se. Não pode se fundir com aquilo do que se aproxima. Precisa estabelecer e guardar entre si e seu objeto uma distância. Mesmo que essa não seja uma distância realmente possível – por exemplo, quando o filósofo se questiona sobre a existência, sendo ele mesmo um existente. Ou quando se questiona sobre o ser humano, sendo ele mesmo um humano. De todo modo, ele se aproxima e se distancia para poder ver o que é visível para todos. A pretensão do filósofo não é ver o que ninguém vê, mas dizer algo sobre o que é visível para todos nós. Para nós que estamos tão perto, tão imersos nesse visível, que experimentamos esse visível numa proximidade tal, que não dizemos mais nada sobre ele.

A atitude do filósofo seria basicamente essa:

Estabelecer, em relação a algo de que se aproxima, uma distância, uma abertura, e preencher, e cobrir essa distância com uma fala, uma expressão, um saber, que não simplesmente repita, ou complemente, mas inove a percepção, a visão, que temos desse algo.

O problema da filosofia é que esse algo de que se aproxima não pré-existe à abordagem do filósofo, mas se configura e toma forma junto com o seu pensamento e discurso. Freqüentemente, então, o objeto da Filosofia não lhe precede.

Os problemas filosóficos são como as sobras do almoço dos filósofos.

12

A finitude absoluta é a finitude sem fim.

Em si e para si

Recebi um e-mail com uma advertência que me deixou perplexo. Segundo a mensagem, três passos (pequenos comandos) podem salvar uma vida. É que não se reconhece de pronto uma vítima de AVC (acidente vascular cerebral). Uma pessoa pode ter um pequeno desmaio, uma pequena queda, levantar-se, continuar aparentemente normal, como se nada houvesse ocorrido, e mais tarde, subitamente, morrer.

Mas um AVC causa danos imediatos, que podem ser identificados com essas três orientações:
  1. Peça que a pessoa SORRIA;
  2. Peça que a pessoa LEVANTE AMBOS OS BRAÇOS;
  3. Peça que a pessoa PRONUNCIE UMA FRASE SIMPLES (coerente) (por exemplo: "Hoje está um dia ensolarado").
Agora, fico pensando, como devo agir eu comigo mesmo? Já que vivo a maior parte do tempo sozinho, sem ninguém por perto. Tenho que me fazer eu mesmo as três injunções, se de repente me perceber caído no chão, ou se duvidar de alguma coisa, ou até mesmo, sem duvidar de nada, de vez em quando, para garantir (alguma coisa pode ter acontecido sem que eu perceba).

Assim, de tempos em tempos, sorrir, levantar os braços, pronunciar uma frase simples. Três coisas que só podem fazer bem, para quem vive. Sorrir por graça e da graça, levantar os braços e esticar o corpo, pronunciar uma frase que faça algum sentido.

Mas, em mim e para mim, como saber que eu realmente estou sorrindo? Que meus braços estão realmente para cima, e não tortos para o lado e desencontrados? Que estou dizendo alguma coisa com sentido e não um disparate?

Então, é melhor, de vez em quando, dar uma descidinha na rua, e perguntar a um passante qualquer, se realmente sorrio, se meus braços realmente estão alinhados acima da minha cabeça, se o que eu digo faz algum sentido para ele (bom, talvez possa e deva evitar esta última pergunta).

Alcyon alba

A bactéria branca Alcyon alba continua a forçar para cima os preços do óleo bruto. E não há previsão de controle. Para evitar a contaminação, vários poços e reservas, até agora sem contágio, foram momentaneamente selados. O que fez baixar a produção e subir os preços, ainda mais.

Vários petroleiros chegam ao destino com sua carga completamente atingida e inutilizável. A bactéria quebra as longas moléculas orgânicas, consumindo a energia química molecular para se reproduzir. Após a meiose, as bactérias se encadeiam umas às outras formando longos fios celulares, torcidos sobre si mesmos, que mantêm a viscosidade do óleo. O resultado do processo é uma substância oleosa e viva, sem valor energético apreciável e totalmente branca. O calor resultante não inibe a multiplicação exponencial da bactéria, pelo contrário, a favorece. Na superfície do óleo branco, forma-se uma fina camada de poeira, composta por células bacteriais em estado de ressecamento, facilmente removida pela mais leve brisa.

Alguns cargueiros, adaptados com câmaras de frio, conseguiram transportar o ouro negro, apesar de contaminado, durante vários dias, sem deflagrar o início do processo vertiginoso de reprodução bacterial. O refino do óleo, se feito no prazo correto e sob condições higiênicas precisas, consegue salvar até 60% da carga. Há esperanças de que se logre, com o aprimoramento de técnica específica, aumentar essa taxa até 80%, no correr dos anos. A tendência sinalizada será aproximar as refinarias dos campos de petróleo, em terra ou em mar, fazer o refino imediatamente após extração, e só transportar o produto refinado.

Apesar do contágio se fazer principalmente por via aérea (o mapa genealógico de ocorrências da poeira bacterial segue exatamente o percurso das correntes aéreas planetárias), algumas reservas subterrâneas foram contaminadas. Não há, até o momento, indícios confirmados de sabotagem terrorista. Acredita-se que a contaminação subterrânea tenha ocorrido pelo manejo dos campos de extração com sondas contaminadas. Embora o processo de reprodução bacterial seja muito mais lento antes da extração, a contaminação dos campos pode apresentar algum risco no futuro.

O mapa genealógico bacterial indica que o fenômeno teve sua origem nas cercanias de Buenos Aires, na Argentina. Provavelmente trata-se de um bolor, que se forma naturalmente do envelhecimento, em ambientes exageradamente úmidos, de uma antiga tinta de impressão, à base de óleo vegetal, oriunda da China, muito utilizada na impressão tipográfica de romances populares, no início do século XX, na Argentina. Esses exemplares teriam desaparecido, sem causar maiores danos, se não tivessem sido conservados, intocados, em bibliotecas municipais da periferia de Buenos Aires. Um programa nacional recente vem revitalizando essas bibliotecas, renovando o acervo, e destruindo por incineração, após digitalização, os volumes de muito pouco uso. Há suspeitas de que a mutação do bolor natural tenha ocorrido pela exposição da tinta chinesa ao raio laser, durante a digitilização.

O voto: um comportamento, duas atitudes (IV)

Aquela dupla atitude subjetiva possível, diante da urna, está nas linhas e entrelinhas do texto de Rousseau*.

Quando eu voto segundo meus interesses particulares, voto como homem individual (elemento agente no liberalismo). Quando voto pensando no que entendo ser o interesse comum – não segundo o meu particular, mas segundo aquilo que entendo ser o interesse de toda a comunidade, e que eventualmente pode contrariar o meu –, voto como cidadão (elemento agente no republicanismo).

A soma dos votos dos homens expressa a vontade de todos; a dos cidadãos, a vontade geral**.

De fato, o animus do votante é incontrolável. Pode-se exigir que o indivíduo vote, mas é impossível obter que vote como cidadão e não como simples homem (nem mesmo se concebemos a existência de uma aparelho ideológico de educação cívica).

Por isso, nossas eleições jamais expressam a vontade geral (se é que ela pode ser sequer imaginada).

Normativamente, segundo Rousseau, o fazer parte de uma comunidade política exige uma transformação do indivíduo. De homem que naturalmente é deve transfigurar-se em cidadão. Essa transformação seria a função do aparelho educacional.

Por isso, a teoria de Rousseau envolve um moralismo e uma exigência de virtude. De virtude cívica, bem entendido. Por isso, Rousseau diz que o indivíduo, ao fazer parte da comunidade política, perde sua liberdade natural (limitada só pelas suas forças), transfigurando-a em liberdade civil (limitada pela vontade geral) e em liberdade moral (pois a condição política torna o homem mestre de si, ao recompor-se como cidadão)***.

A condição de possibilidade da vontade geral está na base social, feita de homens individuais. Para que a distância entre homem e cidadão seja transponível, Rousseau sabe que deve partir de uma sociedade não muito díspare, plural. Proximidade de costumes, idéias, religião, riquezas. Ora, nossas sociedades são tudo menos isso. Quando ativo, o substrato de nossa política é a diferença, a pluralidade. Quando passivo, o substrato de nossa política é a sociedade de massa, inerte, amorfa, portanto, sem vontade.


O voto: um comportamento, duas atitudes (I)
O voto: um comportamento, duas atitudes (V)


*ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social [1757]. In: Oeuvres complètes. Vol. III. Ecrits politiques. Paris: Gallimard, 1964.
** Ibid (II, iii, 371).
*** Ibid (I, viii, 365).

Sobre o uso do véu nas universidades turcas

..no Estadão...

Conforme decisão do Tribunal Superior da Turquia, o governo deve manter a proibição do uso do véu pelas mulheres nas universidades.

Problema de constituição que, a meu ver, precisa ser revista com urgência. Pois, nesses casos, prefiro a orientação de Spinoza.

Spinoza afirma que, para a paz do Estado, e para evitar cismas e sedições, o governo não deve fazer leis a respeito de opiniões ou de crenças. Proibir o véu interdita a manifestação de uma crença, e cria a possibilidade do cisma. Não deve proibir, assim como não deveria obrigar o uso do véu. Ambas atitudes, a proibição como a obrigação, fazem de uma opinião lei. A supressão da liberdade e da expressão da liberdade de opinião é um perigo. Por isso, o objetivo do Estado deve ser a liberdade.

A função do governo é manter o comum e, na manutenção do comum, deixar manifestarem-se as diferenças, evitando com isso que as diferenças corroam o comum.

Mão na brasa

...no ny...

O credo xenofóbico serve para arrebanhar ovelhas. Como?
Transforma o medo de si mesmo, ou o medo em si mesmo, em medo do alienus (do estranho).
Alienando o alienus, funciona para a alienação de si mesmo.

Considere-se o medo em si mesmo como uma condição humana, medo imanente, intransitivo.
Focalizado no estranho-estrangeiro, este medo imanente faz-se transitivo, torna-se ilusoriamente medo do que pode, em princípio, manter-se do lado de fora, transcendente.

A ilusão da expiação do medo é percebido como liberação. Mas essa ilusão, agenciada por um partido, é apropriada para estabelecer um mecanismo de assujeitamento. Por isso, a ilusão de alienar o estrangeiro não é liberação, mas sujeição a um partido que quer governar. Dizer sim a "não queremos estrangeiros entre nós" é a alienação de quem quer alienar.

Outras direções mais favoráveis à potência podem ser dadas ao medo imanente. O medo imanente não é originário, é só um aspecto da existencialidade (da essência da existência). O medo imanente pode tornar-se respeito imanente, até mesmo amor imanente.

O amor imanente é amor intransitivo na sua transitividade.
ESCOLHA: mão na brasa ou coração em chamas.

...por aqui...