A supressão do pensamento crítico-filosófico

...(ou, o que dá no mesmo, seu confinamento a um círculo aristocrático)...

PECs, MPs do ensino no Brasil temeroso: as 1001 maneiras de repetir a morte de Sócrates.



Fluxos de decisões II


Mesma coisa para as organizações partidárias (partidos de partidos). A lógica de partido: nada de mais antidemocrático. Impede o pensamento. Não pense, faça parte de um partido que pensa. Ou que você pensa que pensa.


Fluxos de decisões


Os fluxos das tomadas de decisão nas organizações sindicais (sindicatos de sindicatos), com triste frequência, são inversões dos fluxos democráticos. Não se alimentam das decisões tomadas, em situação, por seus componentes, numa conveniência, mas, ao contrário, procuram determinar os comportamentos de seus componentes em situação, decidindo por eles.


O cinema do real, a filosofia e os “efeitos”


– Nada de “efeitos especiais”, proclama o cineasta-estudioso* da realidade-verdade (aquele que a busca, que se aplica pelo real sem truques).

Neste ponto, ao modo do cinema do real, a filosofia também é uma ciência dos “efeitos”, não apenas no sentido causal do termo, mas no sentido ótico, no sentido do reconhecimento visual-mental daqueles acréscimos de realidade que terminam por encobri-la (uma estranha fumaça que, apesar de ser um efeito de realidade, é também um truque, que lança um véu sobre o real, tal qual uma fantasia dominadora)**.

Que a filosofia seja uma ciência dos efeitos quer dizer que ela se esforça em revelar os efeitos – que são, ao mesmo tempo, índices e velamentos da verdade efetiva das coisas –, para desfazê-los.





(*) Conferir o uso que Barthes faz do termo latino studium. In: A câmara clara: Nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015 [1980]. P. 29.

(**) Para Aristóteles, a ciência é conhecimento das causas. Para Hobbes, dos efeitos. Mas Deleuze relembra que “efeito” tem ainda um sentido diferente, para além da causalidade. Conferir: DELEUZE, Gilles. Spinoza: Philosophie pratique. Paris: Minuit, 2003 [1981]. P. 18.

O parcial e o comum

A partir das leis do apetite, cada um é atirado em divergência (ex legibus appetitus unusquique diverse trahitur
SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres III: Traité théologico-politique. Paris: PUF, 2009 [1670]. XVI, §5. P. 509.

A lei do apetite de cada um é a lei do desejo de uma parte (da natureza, da sociedade), quando ele é determinado exclusivamente pela relação da parte com o real, que, aliás, é o real comum a todas as outras partes (da natureza, da sociedade).

Como os apetites parciais (o modo pelo qual cada um é determinado pelo real, enquanto uma parte sua) são heterogêneos, as ações baseadas nos apetites tendem a apartar as partes umas das outras.

Ora, é essa parcialidade do apetite diante do comum que marca o aspecto irracional do apetite.

O desejo não desaparece, porém, quando a parte supera a sua parcialidade, e elabora a sua relação com o real comum desde uma consideração comum, isto é, que leva em conta os desejos das outras partes que estabelecem uma relação com o real comum.

Superar a parcialidade na direção do comum, isso é a elaboração racional do pensamento. Ela não exclui o desejo, mas o orienta para o eixo comum, o que constitui um acréscimo de realidade.

Com certeza, vale lembrar, o comum não é o homogêneo.


Má democracia


Se você insiste, digamos, então, isto é uma democracia! Porém, você há de concordar comigo, nem toda democracia é boa; também existem más democracias.



Ratio VII

Dispomos de duas reflexões sobre a razão: a que a determina pela liberdade e a que a determina pelo comum (pela superação-manutenção do perspectivismo do ponto de vista, isto é, dessa inserção parcial no real que é a imaginação).

Então, se o racional é consistente com o racional, então a liberdade deve estar ligada ao comum; e o comum, à liberdade.

(Tendo-se em mente que o comum não é o homogêneo, constituído pela redução do real a um único e mesmo ponto de vista, mas a multiplicidade, constituída pelo processo indefinido de multiplicação dos pontos de vista).


Comum ≠ homogêneo

Pensemos o comum não como pensamos o massificado

O senso comum, por exemplo, não é o senso, o juízo, a percepção, a disposição para agir, idênticos em todos os indivíduos que entram na constituição do comum. O comum não é o idêntico e homogêneo senso de massa, que não é mais do que ausência ou suspensão do senso próprio.

Spinoza afirma: “Nemo dubitet, commune hominum ingenium varium admodum esse...”* (Ninguém duvida que o engenho comum dos humanos seja extremamente variado). O comum não exclui a variação.








(*) SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres III: Traité théologico-politique. Paris: PUF, 2009 [1670]. XIV, §9. P. 473.

Genealogia

Foucault, novamente.

Genealogia é o estudo do vir a ser de um objeto, seja uma noção (um modo de pensar), seja uma prática (um modo de agir), por meio do estudo das lutas, dos enfrentamentos e das alianças dos diversos poderes, forças e resistências, historicamente envolvidos na sua gênese ou produção.


Continuidade-descontinuidade


A propriedade última do pensar, para Platão, seria traçar descontinuidades no real: ideias ou essências. E o bem (e o um?), para ele, estaria para além das essências. Podemos pensar o um, em Platão, como contínuo? Parece que não.

Para Bergson, a propriedade última do pensar seria compreender a continuidade do real, na própria intuição imediata. A continuidade seria o fundo ontológico sobre o qual as descontinuidades que somos (e todas as imagens) se constituem. Viver seria estabelecer, para fins utilitários, no agir, descontinuidades acidentais na matéria: os corpos. Acidentais quer dizer: necessárias apenas para a vida...

Em Freud, o Eu surge do Si – o Si: a força de existir, afirmativa e indeterminada, porque não conhece a sua negação. O Si seria o contínuo; o Eu, o descontínuo. A realidade se distribuiria entre ambas as instâncias. A máxima realidade do Eu: a ideia da morte. A morte seria a meta da vida. A máxima fantasia do Eu: a imortalidade, a permanência indefinida na descontinuidade. A tarefa do Eu (a sua ética em vida): colocar-se ali mesmo onde estava o Si.

Em Bataille: o erotismo seria a aposta, o lance, do descontínuo no contínuo, a afirmação da vida até na morte.

[sem enfeixamentos]






Atração pelo modo imperativo do discurso


“Distancie-se de um ponto de vista.”

O modo imperativo (possivelmente, o modo de discurso originário; a linguagem seria inicialmente a instância de uma ordem, a afirmação de um comando) exerce sobre os nossos ouvidos (e, na sequência, sobre o restante do nosso corpo) uma estranha atração. Damos mais ouvidos a um comando (mesmo na resistência) do que a uma descrição.

Bom, a novidade talvez nos pareça estranha. Mas parece-me que o estranho remete sempre, ao mesmo tempo, a algo muito antigo, quase totalmente esquecido.



“Distancie-se de um ponto de vista.”*


Um corpo/um olho é um ponto de vista para o real; ao mesmo tempo, porém, faz parte dele. Sente-se-percebe-se-pensa-se numa distância; no entanto, é imanência. A superação-manutenção (a denegação) dessa inserção pontual no real, por meio da re-consideração-flexão de outros corpos (isto é, de outros pontos de vistas), intensifica a inserção de um corpo no real. Esse é o engajamento da razão.





(*) MAYSLES, Albert. Manifesto do documentário. Trad. Fábio Bonillo. In: LABAKI, Amir (Org.). A verdade de cada um. São Paulo: Cosac Naify, 2015. P. 128.