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São dois aspectos de uma mesma regra de vida: aumentar a experiência e combater a melancolia.

Aumentar a experiência


“Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.” *

Ou seja: tudo isso que aumenta a nossa experiência (a nossa alma) – e portanto nos alegra – vale a pena**.

Assim, a questão da ética não é mais a da escolha. Não se trata mais de escolher, mas de experimentar.

Isso não quer dizer que não seja preciso escolher – a duração é decisão – mas que o escolher (e o saber escolher) não é mais o que nos guia.

O que nos guia é o experimentar. E ao escolhermos, estarmos atentos para o que diminui, ou apequena, em razão da nossa escolha, a nossa experiência.





(*) PESSOA, Fernando. Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. Mensagem; II parte; X. P. 82.

(**) Tudo o que aumenta a alma nos alegra, e “a alegria não é diretamente má, mas boa; a tristeza, por outro lado, é diretamente má”. SPINOZA, Benedictus de. Ethica-Ética: edição bilingüe latim-português. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007 [1675]. e4p41. P. 315.

Pensamento portátil


Num mundo de bens, que é também de deslocamentos, a portabilidade se mostra crucial (assim, o sucesso do relógio portátil, da calculadora portátil, da cafeteira, do rádio portáteis etc.).

Para a utilidade do corpo, porém, mais crucial ainda é a portabilidade do pensamento.

O pensamento portátil acompanha o corpo, e não necessita de nada além dele, de nenhum intermediário entre ele e o corpo, para funcionar.

Occidens II


Para percebermos a marca material das duas acepções de occidere, só mesmo considerando o que resulta da atividade do particípio presente, o particípio passado.

Quando occidere significa cair morto, o particípio passado é occasus – na nossa língua, “ocaso”; o resultado da atividade reflete uma nova situação do próprio sujeito occidens.

Quando occidere significa matar, o particípio passado é occisus; o resultado da atividade indica uma nova situação do objeto do sujeito occidens, como sujeito “ocisivo”– a situação objetal resultante disso que na nossa língua se diz “ocisão”.

Occidens

Occidens, termo em que se enraíza o nosso “Ocidente”, é o particípio do verbo occidere, que tem duas acepções no latim*.

Na acepção mais presente e manifesta em nosso “Ocidente”, a atividade de occidere é quase uma passividade, é uma atividade intransitiva e quer dizer: cair por terra, tombar, sucumbir, perecer. O sujeito do verbo, o sujeito ocidente, é aquele que por si se põe ou que é posto à terra, que se deita, perecendo. Falando-se de um astro: o astro ocidente é aquele que se põe no horizonte.

A outra acepção de occidere é a atividade transitiva correspondente à atividade-passiva da primeira acepção. Nesse caso, occidere requer um objeto e quer dizer: cortar em pedaços, matar, fazer perecer. O sujeito ocidente é aquele que assassina, reduz a migalhas, faz algo se pôr à terra. Falando-se de um astro: o astro ocidente seria aquele que destrói, que se ergue no horizonte acima da terra toda, submetendo e secando tudo até a morte.







(*) GAFFIOT, Félix. Le Gaffiot de poche. Paris: Hachette, 2001.

A “potência do negativo”


Um ser humano sensato, de tanto achar que o real não deveria ser assim (como ele é), eventualmente, adere à opinião insensata de que isso-que-é (como ele é) não é o real.

Fragmento de Enciclopédia [Página 2567, coluna A, verbete MORRISON]


J.-L. Morrison (1878 – ) foi o primeiro a compor as notas de rodapé com um tamanho de letra maior do que o utilizado para o texto corrente.

[A Enciclopédia não indica, porém, se Morrison era pensador ou tipógrafo]

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É necessário ser prudente, para, quando desejando Caribe, não terminar em Caríbdis.

Gregos e bárbaros II


Racionalmente (quando temos em mente ideias adequadas) ou irracionalmente (quando temos em mente ideias confusas ou inadequadas), todos nós (gregos ou bárbaros) nos esforçamos por buscar isso que nos é útil, que aumenta a nossa potência e expulsa a nossa melancolia. (conferir Spinoza e3p9)

Com isso, já damos um sentido peculiar  ao que é grego e ao que é bárbaro (e nos distinguimos do sentido de M. Conche). E podemos, então, afirmar o seguinte.

Alegramo-nos barbaramente quando atribuímos a causa disso que nos alegra a uma coisa que esteja apenas fora de nós. Alegramo-nos gregamente quando percebemos que a causa disso que nos alegra, na verdade, estando fora, também está em nós mesmos, como numa dobra, pela qual o que está e age por fora também está e age por dentro.

E o interessante, para a nossa salvação, é que toda alegria bárbara pode se tornar grega (cf. e4p59 e e5p3).

O grego e o bárbaro


Os outros povos [os bárbaros] tinham, aos olhos dos gregos, um traço comum: eles eram todos e sempre interessados, visando ao útil. Diferentes deles, os gregos se reconheceram capazes, eles e apenas eles, de um interesse puro pela verdade. [...] O “amor do saber” por si só é a marca particular dos gregos.*

Se esse amor da verdade (de uma verdade que esteja acima da utilidade) fosse verdadeiramente grego, o pensamento de Spinoza seria bárbaro (ou oriental, como chamamos hoje o que está desvinculado do racional ocidental).

Em Spinoza, a verdade não se desvincula disso que nos é útil, ela não está em ruptura com ele; pois, se isso que inteligimos é o verdadeiro, também é isso que é útil para nós, porque nos causa alegria (conferir Ética III prop. 59) e expulsa verdadeiramente a melancolia.



(*) CONCHE, Marcel. Anaximandre: Fragments et témoignages. Paris: PUF, 1991. P. 6.