Olhar fisicamente para as coisas

Por vezes, Kiarostami nos ensina, nos propõe um certo olhar. Como experimento. Não o olhar de sempre, não um tipo olhar que seja, ou deva ser, sempre o nosso, sobreposto a todos os nossos outros olhares possíveis.  Nos propõe um olhar fisicamente para as coisas. Um olhar que não atribui valor. Que olha os acontecimentos no seu desdobrar, sem julgá-los, ao menos, não de forma definitiva. Flutuação, se não suspensão, do juízo.

Personne ne sait
qu’un petit ruisseau
né d’une source faible
a la mer comme but

Ninguém sabe
que um pequeno arroio
nascido de uma fraca fonte
tem o mar como meta

KIAROSTAMI, Abbas. Avec le vent.
Trad. Nahal Tajadod e Jean-Claude Carrière. Paris: POL, 2002. P. 187.



Vida humana e vida de deus

Tínhamos perguntado se aquela vida confortável de bebê nos seria suficiente, e ouvido a resposta de Spinoza a respeito de uma vida humana como verdadeira vida da alma virtuosa, ou seja, uma alma que pensa. A vida virtuosa não perde nada daquela alegria, muito pelo contrário. Porém, uma vida humana virtuosa tira sua alegria, não só do corpo, mas do vigor do pensamento entre amigos. Na sua ética, para a suma felicidade, a filosofia é fundamental.

Epicuro parece nos dar uma outra resposta num fragmento chamado “O grito da carne” – “não ter fome, sede nem frio, aquele que tem estas coisas – e a esperança de as ter – pode rivalizar (com Zeus) em felicidade”*.

Ora, muitos de nós alcançamos atender, e esperamos poder atender sempre, aos sinais sonoros da carne, mas, mesmo assim, não podemos rivalizar com a suma felicidade de uma vida divina.


Isao que, para Epicuro, complica a nossa vida humana é justamente a nossa humanidade, a possibilidade que temos para formar ideias confusas sobre a vida, sobre o mundo, sobre os deuses, enfim, o véu imaginário especificamente humano que, no entremeio, nos cobre a face e não nos deixa perceber a vida como de fato é. Essas confusões da alma nos fazem doentes. Dispondo de tudo o que precisamos para viver como deuses, imaginamos nos faltar tudo, e multiplicamos nossos desejos de prazeres imaginários.

Assim, para viver uma vida de deuses, enquanto humanos, os bens do alimento e da vestimenta não nos bastam, precisamos de um bem maior, a prudência (phronêsis), na medida em que só a prudência pode estabelecer uma estratégia de vida que pratique uma diferenciação dos desejos e dos prazeres respectivos e a independência (autarkeia), não a abstenção, em relação aquilo que não é necessariamente desejável.

Para chegar a prudência é preciso filosofar. Mas a filosofia nunca será, para Epicuro, um bem em si mesma. Ela o é apenas na medida em que nos cura da nossa doença da alma, do nosso imaginário amedrontado, ao apresentar a natureza, os deuses, a morte, como de fato são. Mas nada além disso. É preciso saber também se desvencilhar da ‘vontade de verdade’ (um termo que não é de Epicuro), da ideia de que a verdade vem acima de tudo.


(*) Épicure: Lettres et Maximes. Trad. Marcel Conche. Paris: PUF, 1987 [-300]. Sentences Vaticanes, §33. P. 255.

Elogio à física

A física retira, por exemplo, da orientação N-S, qualquer ideia de uma hierarquia natural do valor.

Consumação

Comparável à flutuação do ânimo associado à viagem é a consumação (a satisfação do nosso desejo enquanto desejo de consumir), pois a alegria que obtemos na consumação da mercadoria está associada necessariamente à tristeza de perceber que aquilo que nos causa alegria, no mesmo instante que nos alegra, e por isso mesmo, está se acabando, se consumindo. 

Nessa tristeza, e por causa dela, nosso desejo de consumir se renova ao mesmo tempo que se sacia. Pois a tristeza provoca em nós o desejo de acabar com ela.

Música americana

Passar a vida como a escutar aqueles cantos dos quais não compreendemos palavra, mas que mesmo assim nos comprazem pela melodia, pelo timbre da voz – música americana, que depois mimetizamos, enrolando a língua, fingindo dizer algo.

Viajando

Em viagem estamos a todo momento sujeitos a estes sentimentos flutuantes de alegria e de tristeza, por estar vendo, percebendo uma coisa, alguém, um encontro, pela primeira vez, mas também pela última.

Duração e eternidade

Os curtos poemas de Kiarostami são como imagens.

Alguns são como imagens instantâneas, fotografias:
A névoa espessa da manhã
sobre o campo de algodão
o trovão ao longe*
Outros são como vídeos muito curtos:
O sol de outono
através do vidro
clareia as flores do tapete
uma abelha se choca contra o vidro**
Outros, ainda, são de uma duração indefinida:
As moscas
giram em torno da cabeça do cavalo morto
ao pôr do sol***
Mas todos parecem se referir a alguma coisa de eterno.

KIAROSTAMI, Abbas. Avec le vent. Trad. Nahal Tajadod e Jean-Claude Carrière. Paris: POL, 2002. (*) P. 92; (**) P. 86; (***) P. 87.

O humanismo e a mosca

Diz-se que o ser humano é o único ser capaz de se compadecer com o sofrimento dos outros indivíduos de sua espécie, e o único que tem o desejo, isto é, o impulso natural de ajudar seu semelhante que sofre.

Esta compaixão pelo seus semelhantes seria o que diferenciaria o ser humano de todos os outros do universo. A tal ponto que se diz daquele que não é mais capaz de sofrer, ao ver o outro sofrer, e de se alegrar, quando percebe o outro se alegrar, que já deixou de ser humano.

Sendo a compaixão a diferença específica do ser humano, ela seria então a sua quidditas, aquilo que faz que ele seja o que ele é e não outra coisa, e portanto o fundamento do humanismo.

Entretanto o humanismo parece mais do que isso:
Uma pequena mosca
tomada pela vontade de vomitar
ao odor do inseticida
haverá alguém para a socorrer?*
O ser humano talvez seja o único ser capaz de padecer em razão do sofrimento que ele mesmo causa a um outro.


(*) KIAROSTAMI, Abbas. Avec le vent. Trad. Nahal Tajadod e Jean-Claude Carrière. Paris: POL, 2002. P. 80.

Duas concepções de direito interligadas por um “e daí?”

Quando ele entra, alguém como que ultrajado lhe diz:

– Você não tem o direito de estar aqui!

Nesta enunciação mostra-se com clareza a distinção entre o direito e o fato. O direito é aí algo totalmente distinto do fato de “estar efetivamente aí”. O direito é uma etiqueta que se cola ou não ao fato. Mas quem a cola, quem descola?

Diante desse cola-descola o sem-direito pode responder simplesmente ao enunciador:

– E daí?

E aí passamos a uma outra concepção, em que o direito é igual ao fato.

Resistência in-vent-ando

A resistência não é apenas contra-impulso e freio. A resistência inventa seu caminho, mesmo nas piores condições, como a água na sua mecânica hidráulica.

Veja esses versetes do livro de poemas-imagem de Abbas Kiarostami, Com o vento:
Submissos cem soldados – Soumis cent soldats
retornam ao dormitório – se rendent au dortoir
uma noite de lua cheia – une nuit de pleine lune

sonhos insubmissos – rêves insoumis
KIAROSTAMI, Abbas. Avec le vent.
Trad. Nahal Tajadod e Jean-Claude Carrière. Paris: POL, 2002. P. 14.

Pontes entre planos intelectuais II

Na sua tradução do Corão, Jacques Berque traduz jihad por esforço.

Conferir, por exemplo o versículo 69 da surata 29. Le Coran: essai de traduction. 2 ed. Trad. Jacques Berque. Paris: Albin Michel, 2002. P. 431.

Pontes entre planos intelectuais

Experiências negativas II

Como exemplo do que se poderia nomear uma experiência negativa, Bataille cita um excerto de Denis, o Areopagita:
“(Nomes divinos, I, 5): aqueles que, mediante a cessação íntima de toda operação intelectual, entram em união com a luz inefável... não falam de Deus senão pela negação”*.
Dá-se o nome de experiência negativa justamente àquilo de que não se pode falar.


(*) BATAILLE, Georges. L’expérience intérieure. 2 ed. Paris: Gallimard, 1954 [1943]. P. 16.