Dose de mentira


A liberdade de um corpo é uma certa quantidade, que se mede pela dose de verdade que ele suporta. Mas também a mentira não é ilimitadamente suportável. A partir de uma certa dose, que depende do corpo, o corpo precisa expeli-la também.

O recurso contra a verdade é o narcótico, a ilusão, a fantasia, a magia, às vezes o humor. O recurso contra a mentira, sempre, a revolta, a nudez, a exposição à morte, às vezes o humor.

Agora, seria preciso pensar um corpo sem verdades e sem mentiras. Puro humor?




Diário de Moscou XXXIV – O manifesto moscovita se explica


Para falar segundo uma fórmula que sabemos ser excessiva: – nós, do MIVDCATCFDF, estamos cansados de ser razoáveis...

Falar não excessivamente exprime uma opinião razoável (nos termos de Aristóteles: uma verdade grosseira, imprecisa, aproximada, 1094b20), não narcísica (ou mágica) que leva em consideração, de maneira constitutiva, a opinião de muitos outros (1098b25-30).

Com uma formulação excessiva, não razoável e mágica, queremos apenas dar expressão a uma ideia outra. Nosso propósito, portanto, não é nos dirigir à verdade, mas à gente razoável.

A ideia que exprimimos criticamente – não à guerra, não ao petróleo, não à melancolia! – e positivamente – viva a democracia, a energia solar e a alegria da vida em comum! – é certamente excessiva, no sentido de que ela não encontra, na situação atual, suas condições existenciais.

Mas a ideia oposta (a civilização da guerra, do petróleo e da tristeza) é tão excessiva quanto aquela que propomos, e pela qual manifestamos, no sentido de que ela está rapidamente perdendo suas condições existenciais no ser, em direção ao nada, pois ela é certamente inadequada.

“A gente de França deve...” antes de ser uma fórmula do dever é uma forma mal-expressa do manifesto. Diríamos: “A gente de França, nós iremos...”, se nós, moscovitas, pudéssemos, também nesse caso, empregar a primeira pessoa do plural.



Diário de Moscou XXXIII – Manifesto moscovita

Os moscovitas-internacionalistas-verdadeiros-democratas-comunistas-ateus-trágicos-cínicos-felizes-de-frança, MIVDCATCFDF, têm isso para si certo: ao mostrar a sua absoluta inadequação ao que acontece com a gente em França e no mundo, a gente de França deve forçar o atual governo francês a “abdicar” de seu posto a seu favor, para que a gente de França estabeleça uma reforma política (democrática: não à guerra!), econômica (comunista: não ao petróleo e derivados!) e ética (eudaimonista: não à melancolia!). Sob o calor dessa situação? Não, mas dentro de duas semanas ou dois meses.





Diário de Moscou XXXII – Moscovitas do Mercado

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Ontogênese da paixão pela justiça social

Para Freud, o desejo de equidade (tratamento igual) e o esforço dos indivíduos na reivindicação e implantação de uma justiça social é, no seu dinamismo ontogenético, uma “formação reativa” derivada de uma conclusão dos jogos de potência (dynamis): “Quando não se pode ser o favorito, então nenhum dos outros deve ser favorecido”*.



(*) FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu [1921]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Obras completas. Vol. 15 (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 81.

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O real é como um canal (olho-ouvido) pelo qual perpassam, em seu modo material (imagens-sons), verdades eternas evanescentes.



A essência do documentário II


A questão da essência do documentário: – o que é um documentário? O que faz do cine-documentário algo específico e distinto do restante do cinema?

Há o cinema. Há, primeiramente, a ficção, como gênero cinematográfico.

A ficção fílmica envolve a imaginação, a fantasia e, no espectador, um certo esquecimento do real, uma entrega momentânea ao devaneio, à ilusão. A ficção é mais ou menos independente do modo como as coisas realmente acontecem. Há um relativo descompromisso com a verdade, diante da ênfase colocada nas questões plásticas ou estéticas.

Há, por outro lado, o documentário. Então, deve haver algo de específico ao documentário, que o torne distinto da ficção, que faça do documentário um segundo gênero de cinema.

Isso aparece imediatamente no material do documentário. Esse material é a verdade da realidade. O cine-documentário (à diferença do cinema-ficção) filma/mostra a realidade, o real. O documentário espelha o real.

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Temos, então, no documentário, uma composição feita com um material imagético bruto (imagens e sons) captados diretamente do real.

Muito bem. Porém, nessa composição que é o documentário, esse material bruto captado precisa ser capturado.

A composição do documentário é uma elaboração do real, na medida em que é uma elaboração do seu material imagético bruto sob algum princípio de realidade, que dá alguma coesão e coerência ao que se filma e se mostra.

Esse princípio de realidade, o documentarista, na medida em que ele se destina à verdade, o pressupõe como constituinte do real e, ao mesmo tempo, do filme.

No filme, o princípio de realidade orienta a seleção dos planos filmados, a montagem.

De alguma maneira, o documentarista, na sua busca de inteligibilidade do real, na busca da coesão e da coerência das imagens e sons, submete o material bruto a esse princípio de realidade pressuposto.

Às vezes, também, é no próprio material imagético bruto que o cineasta-documentarista encontra, descobre, esse princípio de realidade.

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A captação e a composição do material imagético bruto ou real de imagens e sons documentais indicam uma captura do real (que é muito mais do que uma simples captação).

Sob análise, poderíamos dizer que essa captura se efetua sob dois operadores.

Um operador sensível, imagético ou plástico, atuante nas escolhas de enquadramento, de iluminação, de captação do som, de trilha sonora, na seleção plástica e na justaposição, repetição, afastamentos das cenas e dos planos.

E um operador inteligível ou cognitivo, atuante na inteligibilidade, na interpretação, na ordenação e na articulação do material imagético, sob algum princípio de realidade, para a produção da verdade.

Certamente, eles não são dois operadores distintos, mas, antes, dois aspectos da operação fílmica do documentário revelados pela análise.

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Esse elemento operador plástico somado ao operador cognitivo constituem o que poderíamos chamar de elemento estético incontornável ao documentário (que envolve um princípio plástico e um princípio de inteligibilidade).

Que esse elemento estético seja incontornável quer dizer que ele pertence à essência do documentário.

O reconhecimento desse elemento estético, como uma operação sobre o real que é distinta da própria realidade, nos deixa, perigosamente, muito próximos da ficção.

Mas, por que perigosamente? Por que sentimos aí algum perigo? Porque todo elemento ficcional (próprio à ficção, à imaginação e distinto da própria realidade), constatado no documentário, o coloca sob suspeita, gera desconfiança.

Nós acreditamos que o documentário espelha o real e, por isso, não aceitamos que o documentário manipule o real. Uma manipulação artística do real, uma técnica de manipulação do real: isso é a ficção, não o documentário!

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Quando, para nós espectadores, está disposta e estabelecida, a priori, antes da própria experiência fílmica, a afirmação: “– isto é um documentário”, nós entramos na sala de cinema sob o selo de um pacto. O espectador entra com sua confiança na peça documental; e o documentarista, com o compromisso com a verdade.

DOCUMENTARISTA: – Isso é um documentário! Isso é a verdade do real!
ESPECTADOR: – E nós acreditamos! Em primeira ordem... até segunda ordem...

Esse pacto de realidade é colocado sob suspeita (ou até mesmo totalmente suspenso) com a evidenciação dos elementos estéticos. Quando o espectador percebe a aspereza dos operadores plásticos e cognitivos empregados na técnica do documentarista, ele se retira do pacto, parcialmente ou integralmente, colocando em cheque o caráter de veridicção do documentário.

De maneira geral e no limite, essa evidenciação dos elementos estéticos coloca em risco o próprio status de documentário, fazendo o filme bascular do gênero documentário para o gênero da ficção, isto é, do segundo para o primeiro gênero de cinema.

Assim, à medida que o espectador aprimora sua ciência cinematográfica, à medida que para ele se tornam evidentes os elementos estéticos (plásticos e cognitivos) incontornáveis ao documentário, até mesmo nas suas espécies mais imediatas (nas captações fílmicas supostamente menos mediadas por esses elementos estéticos) como na reportagem de atualidade ao vivo, mais ele desqualifica o caráter documental do documentário.

O espectador compreende que esse elemento estético está presente desde o momento da captação em imagens e sons dos fatos reais, por exemplo, já no enquadramento. Nessa medida, toda captação do real já se mostra como uma abstração da complexidade real, como um recorte intencional de algo que o documentarista quer mostrar. Nessa medida, em toda captação e composição do real no material imagético já está em jogo uma interpretação do real, distinta do próprio real, que evidencia uma vontade de saber, que é também uma vontade de poder sobre o real.

Isso faz de toda captação do real uma captura (uma apropriação, uma tomada de posse). Nessa captura, enreda-se eventualmente o espectador.

Na gênese do documentário, inexoravelmente, encontra-se, então, esse elemento estético, esse elemento de invenção que pode ser dito ficcional. Isso quer dizer que a essência do documentário é uma quimera? Que ela não existe? Que tudo no cinema é ficção?

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De toda maneira, há nesse elemento estético do documentário, precisamente no operador cognitivo do material imagético bruto, algo que, talvez, possamos resguardar, se nós abandonarmos a nossa ideia mais imediata de que o documentário filma o real, de que o documentário espelha, numa mostração, o real.

Podemos resguardar, no operador cognitivo, no princípio de realidade utilizado, posto em prática, posto em filme, pelo documentarista, na produção cinematográfica da verdade, um elemento próprio, específico, essencial, do documentário.

É preciso, então, nos inclinarmos para esse princípio de realidade que permite e orienta a filmagem do real, desde a captação das imagens e sons e a sua seleção, até a montagem, que justapõe, articula, potencializa esse material bruto.

Eu entendo que esse princípio de realidade que se põe em jogo no documentário (e não na ficção) é o que a filosofia (e a epistemologia) chama de uma teoria da verdade.

Podemos pensar que a essência do documentário envolve, geneticamente, uma teoria da verdade determinada, e que o documentário a filma, isto é, que o documentário põe em filme, ao pôr em prática, essa teoria.

Esse pôr em prática, em filme, essa teoria da verdade determinada, envolve, certamente, uma técnica específica, uma técnica de filmagem, uma técnica de montagem. Essa técnica não nos parece algo diferente dessa teoria da verdade, mas se confunde totalmente com ela.

Portanto, a teoria da verdade em jogo no documentário é, ao mesmo tempo, uma teoria, posta em prática, sobre a maneira de se produzir verdadeiramente a verdade. Uma teoria da verdade que é, simultaneamente, uma teoria da técnica da produção fílmica da verdade, uma técnica do documentário.

Essa teoria da verdade filmada, que é também uma técnica de produção da verdade, é a essência do documentário.

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Essa teoria da verdade constituinte da essência do documentário, por sua vez, coloca o documentário numa relação essencial com a essência da filosofia.



Pensamento-cinema 5, 1ª lição: DOC/o real e a verdade


Depois da lição introdutória, proferida por Adriano Mansanera,
a primeira lição do curso Pensamento-cinema 5 ocorrerá nesta

QUARTA, 4/11/2015, às 19h, no CineSESC.
Tema: DOC/o real e a verdade.
Apresentação: Leon Farhi Neto

pensamentocinema.blogspot.com.br

Metafísica e animismo


A filosofia moderna diz que, até Kant, vivíamos (os metafísicos) sob o império de um certo animismo.

Quer dizer, compreendíamos o mundo externo, metafisicamente, por meio de uma exteriorização (projeção sobre o mundo) da nossa própria organização psíquica.

Por isso e desde então, nos caberia: “recolocar [de volta] na alma humana o que o animismo nos ensina a respeito da natureza das coisas”*.



(*) FREUD, Sigmund. Totem et tabou. Trad. Serge Jankélévitch. Paris: Payot, 1965 [1913]. P. 141. Peço perdão pela inserção, entre colchetes, do pleonasmo.

Spinoza e os outros: três liberdades

A liberdade, para Spinoza, tem três aspectos: o ético, o político e o econômico.

DEFINIÇÕES

A liberdade ética é alcançada pelo ser humano que é conduzido pela reta visão da própria mente e, não, cegamente, pelo jogo variável e instável dos afetos.

A liberdade política, quando não há obediência a um outro.

A liberdade econômica, por sua vez, é a liberdade de não ser servo/escravo, ou seja, a liberdade de produzir a sua própria utilidade e não apenas a utilidade de um outro.

PROPOSIÇÃO

Estas três liberdades estão articuladas de tal maneira que é impossível alcançar a liberdade ética, sem alcançar, simultaneamente, as outras duas.

DEMONSTRAÇÃO

O ser cativo é, ao mesmo tempo, o ser que serve a um outro e não a si próprio, que obedece o que lhe comanda um outro e o que se deixa guiar pelos afetos.

O grau zero de liberdade parece ser a liberdade econômica. Se produzo o que me serve, sou economicamente livre, mesmo eventualmente obedecendo às ordens de alguém. Mas não posso ser politicamente livre e, ao mesmo tempo, servo. Já que servir aos outros, sem obedecer-lhes, é um contrassenso (está em oposição com o desejo que somos).

No entanto, pergunto-me, posso ser politicamente livre (fazer de tudo, sem obedecer a ninguém) sem ser eticamente livre, isto é, sendo guiado, não pelos próprios olhos da mente, mas pelos afetos? Bom, parece que não. Já que o jogo dos afetos está ligado à relação de um ser com os outros.