Paideia

Existe a opinião de que tudo na vida vale como experiência, de que cada situação, cada objeto que se adianta e cada pessoa encontrada estão aí para nos educar ou deseducar. Mas nem tudo no uso da vida tem função pedagógica. Nem tudo na vida entra sob a relação de mestre a discípulo, de aluno a professor.

O entra-sai

Outra figura: a do entra-sai, a do andarilho, que às vezes dorme no deserto, diante da porta fechada da cidade (na cidade, o deserto é ainda maior e mais hostil). O andarilho busca a verdade, por isso lhe agrada tanto a natureza*.

Outra coisa inesquecível: _ no Oriente, os desertos chegam ao pé do muro da cidade.




Veja-se, em NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1878], os aforismos 638 (O andarilho) e 508 (Em plena natureza).

Verdade e afirmações sobre a verdade

Aquele que se expõe com consciência à verdade, que procura a verdade com consciência e por instantes abertos a encontra, é mortalmente afetado por ela, mesmo depois de fechada a janela.

Mas não tenha medo, nem tema por mim, isto não é uma verdade, apenas um axioma.

O profeta

Além dos artistas e filósofos, o profeta também percebe a verdade, mas não a pensa. Ele a refrata, pelos meios da imaginação, a seus contemporâneos, para que estes talvez o possam compreender.

A verdade passa por ele, em parte conscientemente, mas imaginada, sonhada, inadequadamente percebida.

O profeta não é exatamente o camponês enlouquecido. Seus oráculos não são absolutamente inconscientes, como o falar saudável do camponês, mas obscuros, tortuosos, mais próprios a quem fabula do que a quem diz o óbvio. Tampouco o falar do profeta é pura fabulação, como o falar do louco, porque a verdade perpassa o profeta.

Da saúde dos que são conscientes da verdade

Havíamos falado de 4 modos de ser em relação à verdade absoluta: o cidadão, o camponês, o poeta e o modo ser humanamente insuportável (aquele de quem permanece consciente da verdade).

Que este seja um modo de ser insuportável não quer dizer que seja inacessível ao ser humano.

Alguns filósofos e artistas têm momentaneamente consciência da verdade. Mas isto lhes faz um grande mal, e as garras da morte os marcam impreterivelmente.

Entenda-se a partir disso, o que se diz: “Desse ponto de vista, os artistas são como os filósofos, têm frequentemente uma saudezinha frágil, mas não por causa de suas doenças nem de suas neuroses, é porque eles viram na vida algo de grande demais para qualquer um, de grande demais para eles, e que pôs neles a marca discreta da morte”*.

(*) DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora 34 , 1997 [1991].

Liberdade e duração no imperium

Maquiavel, no Príncipe, coloca o valor da duração do imperium acima do valor da liberdade. Spinoza, no Tractatus theologico-politicus, os faz coincidir – dura mais o imperium em que vigora a liberdade.

No limite, ou sem limites, diz Spinoza, o imperium, em que a liberdade é infinita é o imperium eterno, aquele que não se concebe pela duração, o império absoluto da natureza.

Ora, a liberdade é infinita, justamente, no imperium de uma absoluta necessidade, onde não há contumácia possível.

Dobras no muro

Gostaria que vocês vissem isso.


Num livro de Huyghe, de 1967, há uma foto mais antiga, em preto e branco. A muralha do fundo não tinha sido reconstruída, não havia o corrimão. A sombra cortava o minarete à meia-lua.

Dos múltiplos lados do muro

Vivemos em cima do muro, isto é, estamos num espaço de indistinção, entre o dentro e o fora, a cidade e a natureza, o cidadão e o camponês, a liberdade e a necessidade (ou a graça), a ação e o labor, ensan e bashar. Muro-pele, muro-membrana, habitamos aí, embora não tenhamos lugar.

Não estamos diante da lei, nem dentro dela, mas no muro que a delineia indefinidamente. Descemos e subimos o rio, e seus meandros espiralados, que confundem a margem esquerda e a direita.

O camponês permanece do lado de fora do muro. O cidadão, do lado de dentro. Nós, em cima. O poeta, recostado ao muro dentro-fora.

O poeta encostado ao muro

O viver-poeta é, para um-Nietzsche, “permanecer conscientemente na inverdade”*. Encostado a isto, “Um poeta poderia dizer que Deus instalou o esquecimento como guardião na soleira do templo da dignidade humana”**.

Temos aqui uma interpretação prometeica do Diante da Lei de Kafka (Prometeu é o atado-desatado que sabe dizer o acontecimento antes que ele aconteça). Mais uma amostra de que a parábola kafkiana, como outros eventos, não surge no tempo.

De Kafka, a resposta que tantas interpretações buscam é correlativa à questão: por que o camponês não entrou ou não pôde entrar no templo da lei?

Entre as inúmeras respostas, temos a de Michael Löwy: o camponês permaneceu diante da lei, porque ele não ousou empurrar, evitar, contornar o guardião, e forçar sua passagem. Mas Löwy assemelha o paraíso à lei, o que não é, por si, algo evidente.

E temos a resposta de Nietzsche: o camponês permaneceu até a morte diante da lei, porque ele não soube esquecer (deixar de viver) sua origem indigna, natural, necessária, e continuava atado a ela. O camponês é quem permanece inconscientemente na verdade, ele vive na verdade e não a esquece, como a esqueceu o cidadão, que permanece na inverdade, inconscientemente.

Temos aqui três modos de ser possíveis, o do camponês, o do cidadão e o do poeta. O quarto modo de ser, resultado de uma outra combinação, é o único oculto, porque impossível, intolerável, humanamente insuportável, aquele em que se permanece conscientemente na verdade.


(*) NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1878]. Aforismo 34.

(**) Ibid. Aforismo 92.

O esquema da cidade

O muro da nossa cidade já não é aquele que encerra uma extensão. Mais assemelha-se às paredes de um labirinto. Como se o limite, que antes discernia o que está dentro do que está fora da cidade, tivesse excrescências, desvios, múltiplas bifurcações, complexos desdobramentos. De tal modo que os transeuntes, quando se deparam com o muro, que de súbito interrompe seu caminho, nunca sabem de que lado estão, na cidade ou fora dela.

A cidade tornou-se infinita ou uma utopia. Por isso, o sonho recorrente do cidadão, como o do camponês, envolve o fio de Ariadne, que os guiaria de volta para o lugar sem muros – extensão contínua e não fragmentada de cidade ou de natureza.

Reconhecendo o sonho, ao acordar, ambos se dão conta do mito da cidade como artifício. O cidadão, habitante da cidade, não é diferente do camponês que vive na natureza sem justiça.

Ode a Ariadne

Um muro muito fino dividia ainda a muralha ao meio,
para que se soubesse exatamente, e sem dúvidas, o que pertence
a um lado e a outro.
Cid-mur-ad-os-es.
Na BBC: Muros e cidades. Aqui: a alma da cidade.
Estaremos tão impedidos. Estaremos tão cortados.
Estaremos tão divididos. Iludidos. Estaremos tão atravessados.
Estaremos tão perdidos em nosso labirinto.
Tão desencontrados. Tão em pedaços.

Não procure respostas na filosofia

Dizem aos estudantes de filosofia que estão errados se procuram respostas na filosofia; a filosofia só produziria questões. Mas o que fazem de fato os filósofos, senão oferecer respostas?

Sócrates seria o único filósofo? E Platão, não? Não, enquanto Platão?