Dos mais belos homens ou da redenção dos feios

Formamos uma ideia geral por abstração, por indução.

Uma ideia geral – um universal, se quisermos – é portanto uma ideia, uma noção, que formamos a partir daquilo que é comum, primeiro, a dois entes, que está entre dois entes, entre três, depois até, por suposição (e este é o problema científico da indução), entre todos os entes de um certo gênero, isto é, entre todos os entes que compartilham uma generalidade possível, pensável.

Assim, por exemplo, a ideia geral de homem se forma, por indução, do comum a estes entes, aos quais podemos, num movimento reverso, atribuir essa generalidade.

Porém, aquilo que é mais comum, pois está entre todos os entes de um determinado gênero, frequentemente, é tomado, por eles, como o mais sublime e perfeito, porque, como está entre entes e em nenhum ente especificamente, é entendido como incomum. Ao passo que, todo ente comum, todo homem particular, a seu modo, é tomado como imperfeito, porque distante, apenas participante, daquela ideia geral de homem, a qual entretanto ele colabora para produzir.

“Mas nós temos o direito de considerar isso neles uma ignorância, atendido que só as coisas particulares têm uma causa e não as gerais; pois estas últimas não são nada”*.

Assim, os mais belos dos homem são o que há de mais vulgar e não, como nos faz crer o hiper-realismo (aquele do cinema, entre outros), aquilo que entre nós mais se aproxima da perfeição. Pois que, “todos os entes e todas as obras que são na Natureza são perfeitos"**... e belos.


(*) SPINOZA, Benedictus de. Court traité. Trad. Ch. Appuhn. In: Oeuvres I. Paris: GF Flammarion, 1964. Pp. 29-166. I, cap. 6, § 7, p. 74.

(**) Ibid. P. 75.

Parciais II

Por que não dizer a terra – como nosso elemento irredutível, na qual manemus, a qual manet in nobis, (1Jo 4:8, mas se note a preposição in) – reverenciável, amável, como um deus – quod de Spiritu suo dedit nobis? Assim a chamam gaia...

Mesmo se alcançássemos as estrelas, e nas suas órbitas nos mantêssemos, nossa pertença à terra elementar (que não só se abraça, mas também abraça água, ar, fogo e todos os outros elementos*) não se romperia.

Por isso a terra não é só a condição removível de um condicionável, mas algo em nós inalienável. Só seremos alienígenas, estrangeiros, sobre um território, jamais na terra.

“A mudança mais radical da condição humana que podemos imaginar seria uma emigração dos homens da Terra para algum outro planeta”**, mas em nossa manipulação, essa emigração é infactível, porque a terra não é um território, mas um elemento fisio-crático, uma força, uma potência da physis ou do spiritus (segundo o aspecto ou o atributo que o percebamos), na qual estamos e agimos e em nós está e age.

É impensável ser algo sem terra (nem mesmo o Movimento sem território), como nihil sine Deo esse***.

(*) DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora 34 , 1997 [1991]. Cap. Geo-filosofia, p. 113.

(**)ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 [1958]. Cap. I, p. 18.

(***) SPINOZA, Benedictus de. Ethica, pars prima, propostio XV, demonstratio.

Parciais

Por exemplo: não como uma ciência de tipo positivista, “[...Jacob] Buckhardt via a história como uma arte. Para ele, esta era uma modalidade da literatura imaginativa, aparentada à poesia”*.

Dessa maneira, a atividade criadora e imaginativa que é própria à filosofia nos induziria a considerá-la, também, como uma modalidade de arte literária, se nos opuséssemos, como fez Buckhardt com a historiografia, a fazer dela uma ciência.

Mas, se a filosofia não é ciência, e não pode ser, sob o risco de ser condenada ao silêncio, ou coagida a uma atividade ótico-manual de triagem do discurso**, ela também não pode ser arte. Pois, se a arte enquanto arte opera nossa potência de sentire (sentir e perceber pelos sentidos) o mundo, a vida, a filosofia enquanto filosofia opera diretamente nossa potência de pensar.

Vai nesse sentido o esforço de Deleuze/Guattari, em relação à filosofia. Não reduzir a filosofia à arte ou à ciência, mas a manter em seu domínio próprio, sua reserva indígena demarcada, que poderia ser, parcialmente, assim expressa: a reserva da imanência, da insistência e da consistência, a reserva indígena do pensamento***.



(*) BURKE, Peter. "Introdução" [1990]. Trad. Sérgio Tellaroli. In: BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1860]. Pp. 15-35.

(**) “O método correto da filosofia seria de fato este: nada dizer, senão o que se deixa dizer; portanto, proposições da ciência da natureza – portanto, algo que não tem nada a ver com a filosofia...”. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. 3 ed. São Paulo: Edusp, 2001 [1921]. Seção 6.53.

(***) DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora 34 , 1997 [1991]. P. 101.

Traços que se tornam dominantes

O que Huizinga afirma sobre a Holanda do século XVII – que a sua prosperidade não se deve ao espírito capitalista da ética protestante, mas tão somente à continuidade enfatizada da liberdade medieval – lembra, e não só pelo ressoar dos nomes, a tese de Sérgio Buarque de Holanda – a de que os brasileiros devem seu modo de ser mais à sua origem portuguesa do que ao vir a ser da plasmação das raças...

Aqui e lá, é mais pela acentuação de um traço, que se torna dominante, do que pela revolução ou pela ruptura com o passado, que se compreende um presente.

Por que ainda não nos livramos do personalismo em política?

Em uma sociedade que ainda não superou seus afetos, há personalismo na política. Isso porque, nesse caso, só a pessoa é capaz de atrair ou repelir, unir ou desunir, convocar ou dispersar, conduzir ou desviar.

Onde a razão da ação humana (ractio actionis humanæ) ainda é uma causa afetiva, só a pessoa, como objeto do amor pessoal ou do ódio pessoal, politiza. Na sociedade afetiva, a política é de amigos e inimigos.

Sempre que há insistência ou atavismo da pessoa, expressos na reincidência, na reapresentação, na reeleição, na reelegibilidade, na continuidade da pessoa, ou até mesmo na indicação, feita por ela, de um novo caminho político, mostra-se novamente esse nosso traço personalista. Somos personalistas, porque nossas relações políticas, como as de família, envolvem afetos.

É possível livrar-se do personalismo?

Uma política impessoal remeteria, eventualmente, ao racional, mas como isso é improvável, mais certamente ao mecanismo. No impessoal, o mecânico impera como uma vontade. O impessoal na política é o dispositivo: o dispositivo jurídico, o econômico ou o biológico, por exemplo.

Em geral, quem é contra o personalismo pensa, com interesse, no dispositivo. Mas, é preciso dizer, nem todo dispositivo é impessoal. Quase todos os dispositivos são pessoais. E, muitas vezes, o que acreditamos ser personalismo é, no fundo, um dispositivo pessoal. Pois o dispositivo pode não eliminar a personalidade política, apenas a tornar uma função (notadamente, a função messias, a função führer, a função guardião).

Um dispositivo em que os magistrados são funções constantes ocupáveis por atores variáveis, em que as funções são personagens, embora já não mais personalidades, ainda assim é personalista.

Quando no impessoal, é a função, o personagem, que fabrica a pessoa, envolve o indivíduo e o modela como ator, ainda temos um dispositivo personalista, embora mecânico.

Talvez não haja diferença entre o personalismo e o dispositivo pessoal, máquina de pessoas. Afetados pela pessoa política ou pelo personagem político, não importa, somos personalistas do mesmo modo.

Veja o acontecimento
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História e geografia

Justamente, quando Huizinga diz que a historiografia raramente conhece as causas dos acontecimentos, e deve basear suas conclusões nos próprios efeitos e nas suas circunstâncias, ele destaca, entre todas, a mais fundamental das condições que influenciam a história de um país: a geografia. A geografia e não, por exemplo, o modo de produção ou a religião. "The most fundamental circumstance, quite literally speaking, is, of course, the geographical situation, and the structure and nature of our country"*.

Assim, para entendermos a história de um país, precisamos incontornavelmente olhar para a sua situação geográfica, que, entretanto, no lapso de nossas gerações humanas, em geral, é praticamente uma situação invariável e portanto sem história. Para entendermos o variável, é preciso considerar, no seu âmago, o invariável.

No caso da Holanda, para Huizinga, a estrutura hidrográfica dos múltiplos canais, que não só atravessam, mas cortam o país, está em relação com a estrutura democrática do seu povo.

Dessa forma, acontecimentos de uma certa qualidade (histórica) são compreensíveis, sobretudo e também, a partir de um plano de condições de qualidade diferente (não histórica). Isso porque, entre acontecimento histórico e fundo geográfico, a diferença das qualidades não é da ordem da transcendência, mas da oposição. Assim, no confronto, um é influenciado pelo outro, o variável pelo invariável.

É claro que – mas isso nos interessa menos –, por outro lado, a história arrasta para seu seio a geografia. O vórtice humano, transformando o que se encontra a seu alcance, faz a qualidade geográfica ser também histórica.

Essa proporção entre história e geografia permite uma analogia com a proporção que o pensado mantém com o impensável, na filosofia. Do mesmo modo que a geografia está na história, ou o invariável no variado, na essência íntima de um pensamento, está o seu impensado quasiimpensável**.


(*) HUIZINGA, J. H.. Dutch civilisation in the seventeenth century and other essays. Trad. Arnold J. Pomerans. New York: Harper & Row, 1969 [1941]. P. 13.

(**) "O plano de imanência é ao mesmo tempo o que deve ser pensado e o que não pode ser pensado. [...] É o mais íntimo no pensamento, e todavia o fora absoluto". DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia?. Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora 34 , 1997 [1991]. P. 78.