Do ser ao nada: o consumo


Desejo de consumir: uma pulsão nadificante em que se engaja nosso ser, potência, desejo (que leva o consumível, puro algo, a nada). O ser engajado em nada. O nada engajando o ser. Esse desejo de tudo, que é desejo do nada, afirma: isso é a vida! E a meta de todo ser é o nada! (Freud: “a meta de toda a vida é a morte”.)





Natureza ou essência humana para Platão e Spinoza

A essência humana para Platão é uma ideia eminente. Quer dizer, cada um de nós, humanos, em relação a ela, está em falta. Nossa existência atual é privada de um tanto de ser ou de realidade correspondente a essa falta.

Em Spinoza, nada disso. A essência humana, ontologicamente falando, não é nada senão o que é comum a esses entes mais ou menos reciprocamente semelhantes a quem chamamos de seres humanos. Mas, relativamente a cada um de nós humanos mais ou menos semelhantes, esse comum está sempre aquém do seu ser. Na sua singularidade radical, nenhum indivíduo humano se explica completamente, essencialmente, pelas propriedades que tem em comum com outros indivíduos humanos.

Quer dizer, se, para Platão, estamos sempre em falta com relação à ideia do humano, para Spinoza, pelo contrário, estamos singularmente sempre em excesso em relação a ela.
















PS: OPS!: em Platão, a relação das almas humanas às ideias é de semelhança: no elemento do divino (não a de mímese ou a de participação, a alma não copia uma ideia, nem participa de uma ideia de alma). Assim, não podemos falar de uma ideia (ou essência) de alma. Com certeza, no entanto, podemos falar de uma idéia de corpo humano. E, em relação a essa ideia de corpo, tudo o que foi dito, acima da fotografia, fica válido.

Philautia ou o curto-circuito do amor

Passar através do interdito, para além do Eu... na direção da continuidade...

Mas se, nessa passagem, o interdito é apenas denegado, suspenso (como a lei num estado de exceção) então já não se trata dessa experiência de si que é a philautia, mas de transgressão (ou erotismo).




A essência do documentário

Uma teoria da verdade talvez seja a possibilidade de estabelecermos a comunidade entre a realidade e o cinema. Uma teoria da verdade talvez seja o elo estabelecido, ou que se estabelece, no documentário, entre os fatos reais e os elementos estéticos incontornáveis do cinema. Uma teoria da verdade que é, simultaneamente, uma teoria sobre a maneira de se produzir verdadeiramente a verdade. Uma teoria da verdade que é, também, uma técnica do documentário. 

O cinema documentário filma uma teoria da verdade.



O que o resultado esconde

No resultado, parece que o processo genético se termina e desaparece da vista. Ficamos com essa impressão. Um resultado destacado. Solto do seu devir. Como uma mágica. Um milagre. Um fetiche. Mas, de fato, a gênese nunca para, é contínua, no resultado e através dele. A gênese não é o primeiro livro, ao qual se seguiria um segundo. Sem início, a gênese perpassa eternamente.





Idem

O que é a identidade? O recorte, o critério, o cânone, do próprio e do alheio. Eu, outro. E também do autêntico e do inautêntico. Esse recorte frequentemente assume a forma do interdito.

Assim, passar através desse recorte e desse interdito, para além do Eu, constitui uma experiência de si: que: sob o impulso erótico: é o amor de si (a philautia).



2º gênero de c.

Chama-se o documentário de “segundo gênero” do cinema. Essa rotulação me chamou a atenção. Lembrou-me o segundo gênero de conhecimento em Spinoza: aquele das noções comuns. O cinema como meio de conhecimento. Do qual o documentário é um segundo movimento. Para Marina Goldovskaia, “o documentário é antes de tudo [isto é, essencialmente] um movimento que vai do não conhecer ao conhecer”*.








(*) GODOLVSKAIA, Marina. A jornada do documentário [2006]. Trad. Fábion Bonillo. In: LABAKI, Amir (Org.). A verdade de cada um. São Paulo: Cosac Naify, 2015. P. 200.

Soberania

Quem ainda crê em soberania?
Em suas diferentes formas: s. individual, s. racional, s. nacional, s. popular, s. do legislativo, s. do livre-arbítrio, s. subjetiva, s. do sujeito, s. consciente, s. da consciência, s. política, s. criadora, s. natural, s. por direito, s. da decisão...

s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s. s.



Pelo entre... a via – II

Vem se delineando um horizonte: uma divisão do universo afetivo, uma linha divisória do pensamento. Um entre (o erotismo, e tudo o que tem a ver com o amor, a libido, o desejo) abre/aparta/distancia a analítica da finitude (da descontinuidade) da analítica do narcisismo (da continuidade).


Ora essa, a imbecillitas!

Contemplar a sua própria imbecillitas!? Que tristeza!! Uma tristeza que se chama humildade (humilitas, e3p55s, escólio da proposição 55 da parte 3 da ética de Spinoza).

Pela alegria bem distribuída (hilaritas), é esse o princípio afirmativo da vida (melancholiam expellere, e4p45s)!

Perseguir, portanto, a via oposta: pensar a partir da sua própria potência, e afirmar-se nela. Isso é a philautia, o amor de si. Mas se cuidar, para se manter na prudência da dose certa desse narcisismo (secundário, como diria Freud).





A democracia: o quantum de liberdade que um corpo social pode...


O imperium [a organização política do corpo social; a relação de potências transcrita em relações de poder sob a operação da imaginação] se define pela potência da multidão. Esta organização de poder será tão democrática quanto livre for a multidão. Logo, será tão democrática quanto a multidão suportar da sua própria realidade sem fantasiar, delirar, sem cair em melancolia.




Pelo “entre” – uma ontologia do entre, da relação



Spinoza:

Nossa mente singular é essencialmente uma relação singular de ideias (como um filme é essencialmente uma relação de imagens), uma relação que não está em uma ou outra ideia, mas entre ideias.

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Exemplo disso: https://www.youtube.com/watch?v=WSPHp42RvOI&list=PLcWoNlKpLdigf_MdKkrl4n4DLKRqA1KuK&index=20
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Dziga Vertov: “ligações visuais entre os assuntos”. “Uma CINE-COISA” se define pelo “VER DA MONTAGEM”.*

(*) VERTOV, Dziga. Pronunciamento em um debate [1923]. Trad. Luis Felipe Labaki. In: LABAKI, Amir (Org.). A verdade de cada um. São Paulo: Cosac Naify, 2015. P. 38.
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Artavazd Pelechian:
Uma das teses fundamentais de Eisenstein: um plano, chocando-se com outro plano, dá à luz uma ideia, uma apreciação, uma conclusão. As teorias da montagem dos anos 1920 atêm-se sobretudo à relação entre planos adjacentes. Eisenstein chamava isso de “ponto de junção”; Vertov, de “intervalo”.
[...] eu me convenci de que o que me interessava era outra coisa, de que a essência e a ênfase do trabalho de montagem consistem, para mim, não na colagem dos planos, mas em sua descolagem.
[...] o mais interessante começa não quando uno dois fragmentos, e sim quando os desuno e coloco entre eles um terceiro, um quinto, um décimo fragmento [...] criar entre eles uma distância.**
(**) PELECHIAN, Artavazd. Montagem distancial, ou teoria da distância [1972]. Trad. Luis Felipe Labaki. In: LABAKI, Amir (Org.). A verdade de cada um. São Paulo: Cosac Naify, 2015. P. 172.







Diário de Moscou XXIX – o método (a via) inconsciente


Minha investigação me aparece, às vezes, como um tateamento espraiado ao máximo da distância de meus braços e dedos, uma dispersão desconexa, uma imensa foz de rio, aberta em milimeandros, dividida, fragmentada, até o ponto do raquitismo, e ainda assim bifurcante. Há uma multidão. Para compreender um mínimo dela, preciso conversar com cada um que a compõe. Se chegar a algum resultado intermediário conciso que ainda possa ser expresso em palavras, poderei dizer: há um método sem finalidade (ou uma pura via).


A liberdade: um quantum de verdade suportada


O quanto de verdade uma mente suporta sem delirar, sem recorrer à fantasia, e sem cair na melancolia, esse é o tanto de sua liberdade.



Diário de Moscou XXVIII – a luta II



Sem falar do depósito de poeira, da sedimentação paulatina de fios de cabelo, restos de pele e gordura do corpo, sobras de alimentos e líquidos ressecados, cadáveres de formigas, pernilongos e outros insetos mortos... que, tudo misturado, formam uma crosta marrom no tampo da mesa, condensada em certas regiões visíveis, mas que dificilmente podem ser higienizadas.






Diário de Moscou XXVII – a luta



Da minha mesa de estudos, apenas uma pequena parte permanece livre, desocupada. O espaço mínimo suficiente para pousar um livro de leitura aberto e para apoiar os cotovelos. O resto fica invadido por uma tendência de acumulação desorganizada de outros livros empilhados no tempo, anotações, rascunhos, fotocópias, agendas, instrumentos dos mais diversos tipos (grampeador, relógio, porta-incenso, régua, canetas e estojos de lápis, óculos, telefones, roteador, computador, disco rígido de memória, câmera fotográfica etc.), documentos, contas a pagar e já pagas, contratos, chocolate, garrafa de água, lembranças de viagens. De tal maneira que dedico todos os meus esforços diurnos a ampliar, contra essa desordem empilhada, as fronteiras do território desocupado. Sei que manter e aumentar a clareira sobre a mesa é a luta (na qual não me sinto solitário) para defender e expandir o território da livre-atenção.