Esterilidade ou fertilidade? III



Maquiavel escolhe a fertilidade natural com alguma esterilidade, alguma inibição provocada, artificial. Os ascetas, a esterilidade, pura e simplesmente (isto é, a esterilidade natural e provocada).

Não haveria uma outra escolha possível que fosse, pura e simplesmente, pela fertilidade? Uma fertilidade fértil, natural e artificial, sem qualquer situação inibidora? 

Seria essa a condição divina:
Ética 1, proposição 16: “A partir da necessidade da natureza divina, devem se seguir infinitas coisas de infinitos modos, isto é, todas as coisas, as quais possam cair sob o intelecto infinito.”*



(*) SPINOZA, Benedictus de. Ethica [1675]. In: Opera Posthuma. –: –, 1677.

Esterilidade ou fertilidade? II



Maquiavel, como vimos, escolhe a fertilidade. Mas há os que escolhem a esterilidade.

Os espíritos ascéticos, como reação às condições de vida difíceis a que se encontram submetidos por necessidade, escolhem buscar condições ainda mais estéreis para a vida, porque somente ali, segundo eles, podem reencontrar a sua potência.

Quer dizer, os ascetas provocam o aumento de sua potência, procurando, ou provocando, condições ainda mais inóspitas e inibidoras. Entretanto, presos, como são, a uma atitude de reação e negação de uma potência outra que os oprime, desde o início, no mundo do qual eles escolhem se retirar, não percebem que as condições de esterilidade que procuram constituem um limitador, um inibidor, da sua potência própria e impedem a sua exuberância.


Esterilidade ou fertilidade?



Qual seria a melhor condição para a afirmação de uma potência ou de uma virtude, a condição de esterilidade ou a condição de fertilidade?

A vida num ambiente estéril, rude e impróprio à vida fácil requer o exercício contínuo, permanente, do esforço, da concentração das forças, da prudência, da inteligência, dessas coisas que constituem a atualidade de uma potência, mas que, por outro lado, se a exigem, também a limitam, ou inibem.

A vida num ambiente fértil, favorável e próprio à facilidade do viver, tende à tranquilidade, ao gozo do existente, à dispersão, ao amolecimento dos músculos e dos espíritos, à sonolência, a todas essas coisas que enfraquecem o tônus de uma potência, mas que, por outro lado, se invertidas nessa sua tendência, se colocadas à serviço, podem (porque não constituem em si mesmas uma limitação) levar à exuberância da potência.

Resposta de Maquiavel (ao problema que ele mesmo coloca):
“Portanto, como só o poder dá segurança aos homens, é necessário fugir a essa esterilidade da terra e pôr-se em lugares fertilíssimos, onde, podendo os homens ampliar-se graças à uberdade do solo, eles consigam defender-se de quem os ataque e oprimir quem quer que se oponha à sua grandeza.”*
Entretanto, para que isso funcione assim, é preciso, segundo Maquiavel, ordenar uma zona de esterilidade na própria fertilidade, não tornando a fertilidade estéril, mas solicitando, pelo comando, continuamente, o exercício da potência como se fora num ambiente estéril.

Fazer com que os humanos exercitem, na fertilidade, sua potência, como se estivessem num ambiente estéril – essa é, para Maquiavel, a condição da exuberância da potência.






(*) MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF, revisão de Karina Jannini (e levemente alterada por mim). São Paulo: Martins Fontes, 2007 [1517]. I, 1. P. 10.



Notas à margem do rio IV

Anota-se:

_ Aos insetos, a sensualidade!*




(*) DOSTOIEVSKI, Fedor. Les Frères Karamazov. Le Livre de Poche: Paris, 2010. P.123.




Notas à margem do rio III

Você faz ou deixa de fazer alguma coisa.
E, então, poder afirmar (como um inseto embriagado e delirante) que:
 _ Agora, o mundo engajou-se em uma nova direção!*




(*) DOSTOIEVSKI, Fedor. Les Frères Karamazov. Le Livre de Poche: Paris, 2010. P.120.

Notas à margem do rio II

Então, a voz escatológica de uma profecia (que paira desde a sua enunciação até a sua realização, durante milênios, como se fosse uma verdade eterna) o redime:

_ As relações sociais não são nada, se esvaziadas de amor*.




(*) ZU-EN LY (1203), mas na medida em que um ideograma possa ser traduzido.

Notas à margem do rio

Um cansaço das forças toma o indivíduo? O passo precisa ser amplo para saltar o mundo? Nada há a ser feito? Você se submete? Ou nem se submete, mas foge? Você adoraria fugir ou poder fugir? Adoraria poder não estar aqui? Ficar quieto e poder não dizer nada? Tudo lhe parece utópico? Ou apocalíptico? O que eu faço aqui? Você gosta? Você gostaria? Silêncio. Amor ou horror ao silêncio?

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“Os mosquitos estão me pecando”.
Quando for preciso, leia com toda a atenção.


Exercício de linguagem III

Ora, o esquecimento*, para Nietzsche, é uma força [digestiva] ativa (não uma fraqueza humana) que, ao apagar de nossas consciências os nossos assentimentos e as promessas que fizemos, nos deixa livres, como são livres os jovens para afirmar o novo de novo.

Mas, o espírito-livre, em sua liberdade de pensamento, não se esquece de que tudo é uma ficção e um produto da história. Isso, porém, paradoxalmente, é o que o impede de pensar verdadeiramente, ou seja, de ser livre para afirmar sem receio, sem a coerção de sua consciência comprometida, um conceito novo ou uma ontologia nova. 

Por isso, nós, os espíritos-livres, somos fracos de espírito.



(*) NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 [1887]. II, 1. P. 47.

Aos solavancos


O desejo, além de ser a locomotiva do trem que somos, funciona também como uma espécie de chave de linha férrea. Ele se cola (e nos cola, porque somos todos desejo: trens constituídos só de locomotivas), facilmente, ao desejo de um outro, e, com isso, nosso trem como que descarrilha (um solavanco dá o sinal disso), e passa a correr em outros trilhos.

Atenção, então, aos solavancos!

Porém, são também os solavancos os indicadores de que nos recolocamos (de volta?) sobre o nosso trilho próprio.



Exercício de linguagem II



Nietzsche parece tomar nosso exercício de linguagem como ontologia: “não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o ‘agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo”*.

Esqueceu-se do que nos disse Foucualt, “...que toda ontologia seja analisada como uma ficção”**?

Mas, aí, teríamos de interpretar o que esquecer significa para Nietzsche.




(*) NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 [1887]. I, 13. P. 36.

(**) FOUCAULT, Michel. Le gouvernement de soi et des autres: Cours au Collège de France, 1982-1983. Paris: Seuil/Gallimard, 2008 [1983]. P. 285.

Por que nos colocamos questões morais?


Até mesmo andando de bicicleta podemos nos colocar questões morais.

Por que, afinal, valorizo passar pelo lado do caminho que é, num trecho de não mais do que um metro, revestido por uma cerâmica vermelha, e tão suave para o giro do pneu, apesar de que, por esse lado, sempre me vejo diante da ameaça de me chocar contra os galhos expandidos de uma mangueira de praça?

Teleologia e racionalidade

Imagem: – humanos (famintos, às vezes, obesos) girando em largas voltas; motocicletas-corpos, num puro giro sem finalidade. Pura ação humana, sem fim.

Contra-dito: toda ação visa a um fim.

Questão: – como abrir mão da finalidade sem se tornar irracional, ou como não reduzir a racionalidade à finalidade, ou como andar em linha reta e com direção sem porém ter uma meta?



Exercício de linguagem

Exercício: – nomear (apreender na linguagem, pelo nome) sempre pelo verbo, ou seja, não como se nomeia uma coisa, mas como se dá nome a uma ação.

A ação, não é função (que visa a um fim), é (puro meio sem fim) a produção de efeitos que se explicam apenas pela natureza da coisa (do “coisar”) apreendida. Mais fundamentalmente, é expressão.

Vassoura, vassourar. “Vassourar” não diz a função da vassoura, nem diz exatamente como a vassoura produz efeitos no real que se explicam só pela sua natureza, mas é uma expressão do todo, do todo que se manifesta num “agir” determinado. “Vassourar” é um modo pelo qual o “todar” se singulariza numa ação, na ação de vassourar desse jeito (ou, menos virtuosamente falando, com essa vassoura aí).

E, assim – branquear, bicicletar, relojar –, todas as coisas são ações, que exprimem, ao infinito, a natureza verbal, ou pelas quais a natureza verbal se exprime infinitamente.



Antifuturismo


Vivas ao futuro (pois é uma força de desprendimento)!
Ao mesmo tempo, eu te diria: – não pense no futuro!
Mas, isto poderia significar, apenas: – sim, vá lá, e quebre a cara do sujeito que você agora odeia.


Contra o copyright



Como disse Carl Schmitt*, os conceitos da política moderna têm, todos, sua origem na teologia. Apropriação do sagrado, pelo secular. Mas, por exemplo, a política secular apropria-se, sem transformá-la, da relação de poder teológica da soberania. Pura apropriação. Nesse aspecto, segundo Agamben**, a modernidade seculariza o sagrado, mas não o profana.

A profanação, ainda segundo Agamben, é, propriamente, uma apropriação transformadora (o gesto típico de Debord). A profanação apropria-se do sagrado, o traz novamente para o âmbito do uso, mas suprime na coisa profanada a sua anterior finalidade sagrada. A coisa profana, enquanto permanece profanada, torna-se um puro meio sem fim***. Como o Césio 137, nas mãos das crianças de Goiânia.




(*) SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
(**) AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assmanm. Belo Horizonte: Ufmg, 2007.
(***) BENJAMIN, Walter. Critique de la violence [1921]. Trad. Maurice de Gandillac. In: Oeuvres I. Paris: Gallimard, 2000.

Permanecer grudado à curva ou seguir pela tangente?


Permanecer grudado à curva [real do trajeto] ou seguir [na fantasia] pela tangente?

Grudado ao chão, no sabor ou dessabor de cada gomo da terra. Isso é o que é. Disso é que se dispõe. Nada mais, nada menos. Ser a própria tendência centrípeta que nos faz aderir ao real.

Pela tangente, pelo contrário, se mostram à imaginação as tendências centrífugas. A fantasia. A esperança. Também, é verdade, o delírio, a insanidade, a transcendência.

Pense-se bem, e, grudados à curva do chão, na nossa velocidade, esta se torna uma falsa alternativa.

As coisas estão mudando, e para todos

As coisas estão mudando, e para todos. Essas mudanças externas induzem modificações diversas nas disposições atuais dos corpos e do meu.

Eu tenho uma ideia dessas modificações em meu corpo, que me afetam de uma maneira singular, determinada pela natureza própria do meu corpo.

Sou consciente do meu afeto. Mas, inconsciente dos afetos dos outros, me pergunto: – como se modificam os corpos dos outros, como suas almas percebem (e sentem em seus corpos) essa mudança das coisas?