Enxertos, superposições, bifurcações


As questões se enxertam umas nas outras pelas pontas, como sinapses. Ideias se buscam umas às outras como ímãs, movidas por uma força ou um esforço inerentes a elas próprias. Não há vazio no pensamento. O isolamento da ideia é uma artificialidade.

A cada vez que penso, por exemplo, pela força mesma do pensar, penso em camadas que se superpõem em paralelismos ressonantes, penso em cordas que se coligam em teias, em rios que se bifurcam em deltas, a tal ponto que, para me concentrar na efetividade de uma só ideia, devo escorar contra a superposição, prolongar o encordoamento para me contrapor aos saltos, ladear o rio com diques para evitar a enchente.

Como se houvesse uma espontaneidade do pensamento e a atividade do pensante fosse apenas a de contenção, bloqueio. Como se para pensar fosse preciso deixar de pensar.

Sobre as fontes

A sabedoria dispersa pela trama do real afirma: “o amor é cego”. Com isso se quer dizer que quem ama não enxerga os defeitos e os vícios do amado.

Mas também se diz com frequência: “não sei o que ele viu nela”. E aqui o amante não é cego, ao contrário, ele vê algo que ninguém mais vê.

Cegueira ou visão acentuada?

O “amor é cego” e “não sei o que ele viu nela” são duas proposições que se extraem da mesma fonte, a linguagem cotidiana. Se elas dizem coisas diferentes, como podemos, contra a filosofia, pensar somente a partir dela? Como devemos limitar nosso pensamento ao que ela pode nos anunciar?

Experiências negativas

Falamos, no uso linguagem e da vida, de experiências negativas.

Contudo, será possível fazer uma experiência negativa, se na experiência se dá apenas o positivo?

E se for assim, se só há experiências positivas, então podemos falar de algo que não podemos pensar (oximoros). Mas, e o inverso? Podemos pensar o que não podemos falar, mesmo com toda a liberdade de expressão?

Lugar-vertigem

Às vezes tenho a vertiginosa impressão de me dirigir por necessidade para um lugar do qual todos por necessidade querem vertiginosamente sair.

Isto é ficção?

Normalmente a ficção começa quando se levantam as cortinas, às vezes porém quando elas se abaixam:
[...] quando posso me esconder atrás de meu jaleco branco novamente, puxando minha velha rotina sobre a cabeça e o rosto, como fazem os negros com o cobertor quando vão para a cama*.
Talvez também por isso seja difícil separar o real do imaginário (há outras razões que dizem respeito à estrutura da nossa existência).

(*) FAULKNER, William. Palmeiras selvagens. Trad. Newton Goldman e Rodrigo Lacerda. São Paulo: Cosac Naify, 2003 [1939]. P. 48.

Entregues

Quando nossa meta era justamente a calmaria, eis que uma enorme onda toma o mar da nossa vida.

Pois, por causas externas somos sacudidos de um lado para o outro, como ondas do mar por ventos contrários.

Viajar o corpo

A viagem se iniciava quando eu realmente começava a viajar com o pé e o corpo. Viajar então parecia ser algo que dizia respeito a corpo e a variações do dado sensível.

Agora, tenho a impressão de que, primeiro, sempre é preciso checar alguma coisa, verificar e conhecer mapas, locais, tarifas, ver algumas fotos, agendar visitas, percursos, como se a viagem começasse toda antes do deslocamento.

Isso quer dizer que a viagem deixou de dizer respeito a corpo, já que sua preparação nos acostuma com o trajeto, e diminui, assim, consideravelmente, a variação do dado sensível? Isso quer dizer que a viagem se tornou mais espiritual? Ou que, apenas, de certa forma, deixou de ser viagem?

Da forma de um livro

Só os livros sem apresentação, sem introdução, sem prefácio iniciam-se no seu próprio início.

No início

O início não é o que se inicia, mas apenas a superfície em que o que se inicia se insinua.

Por uma ética da leitura: uma prática (ascética)

Proposta de leitura: iniciar a ler o livro, ler 3 ou 4 páginas, iniciar novamente desde o início, ler 3 ou 4 capítulos, iniciar novamente, ler 7, 8 páginas, iniciar novamente...

Por uma ética da leitura

Ao começar a ler um livro, pense que o próprio livro, ao ser escrito, teve vários outros começos, antes do definitivo.

Tratar os animais como animais

Tratar os animais como animais: _ saio de casa sem me despedir do meu gato.

Não penso que ele possa compreender o que seja uma despedida, nem se ofender com o desaparecimento não anunciado de alguém que ele ama.

Aprender a não cuidar dos animais como se fossem humanos, para não passar com facilidade a tratar os seres humanos como animais.

Diferenças entre razão suficiente e causa

Para uma concepção de causalidade, o sujeito do livre-arbítrio, o indivíduo que pode, como que desligado de todo o resto, iniciar um novo ato no mundo, a partir só da sua decisão, tal sujeito é banido.

Pode estar nisso uma diferença entre razão suficiente e causa.

Para quem ama a ideia de livre-arbítrio e a consequente possibilidade de culpabilização estrita do sujeito da ação, é preciso falar de razões suficientes e não de causas.

As razões suficientes seriam os motivos que levaram o sujeito, em toda a sua liberdade, numa certa situação, a agir de certa forma e não de outra (por outras razões, na mesma situação, ele poderia também ter optado por não agir assim). E esses motivos seriam suficientes – nada ficaria faltando – para que compreendêssemos o por quê, o sentido de sua ação.

Mas, para quem pensa a partir da impensável (em termos absolutos) causalidade, razão e causa podem dizer o mesmo. Assim, Spinoza não diferencia causa de razão:
De qualquer coisa deve ser assinalada a causa, ou seja, a razão, tanto por que existe, como por que não existe. (E1p11, primeira demonstração alternativa)
Outra diferença entre razão suficiente e causa pode ser alcançada com referência à finalidade. A razão suficiente envolveria uma finalidade, um fim para a ação. A causalidade absoluta aboliria a finalidade (todo fim pré-estabelecido é imaginário).

Novamente as razões suficientes

Ler Kafka sempre me dá a pensar nas razões suficientes.

As situações com que se deparam seus personagens são dificilmente explicáveis em termos de razões suficientes. Ao mesmo tempo, porém, as razões parecem estar ali, por baixo dos acontecimentos, pouco óbvias, mas como se pudessem ser desenterradas. Ficamos à procura da coerência dessas razões, como se pudéssemos costurá-la, essa coerência, por trás do tecido texto e das razões mais aparentes.

Terríveis ideias

Ideias como estas, sobre identidade e diferença, me passam pela cabeça:

_ A mesma preguiça, no velho é deprimente, no jovem é revoltante.

_ O ‘bio-’ do qual se escreve na biografia é diferente do ‘bio-’ que se estuda na biologia.

44

Que incrível! Um simples trema sobre a letra u – ü – tornou-se sinal de uma complexa vetustez.

Reformas

O sinal do trema – ¨ – desapareceu da língua portuguesa com a última reforma ortográfica. Mas a palavra ‘trema’, que é o sinal desse sinal, não.

Nenhuma reforma alcança ser totalmente ortoefetiva.