Aplausos


(eu decido aplaudir) Um voto isolado conta, mas não muda nada, não influencia. Já a presença, na medida em que não é quantitativa, mas qualitativa, tem a potência de influenciar, contagiar, de ser influenciada e de ser contaminada, embora ainda não conte. (mútua determinação de uma potência pública de aplaudir ou não)

Acontecimento puro

Acontecimento é acidente, modificação.

Um acontecimento puro é um acidente puro. Simples acontecer ou qualidade simples. Um acidente que não é modificação de alguma coisa. Um acidente livre, em si. Predicado sem sujeito. Devir ou qualidade absolutos. Nada de antes persiste no acontecimento puro. Um acidente puro, sem substância. Um acidente, enfim, que é suporte de si mesmo.

Imagem-exemplo: o gozo na amamentação de um recém-nascido esfomeado. Não há substrato algum (nenhum objeto ou sujeito) da saciação nem do leite, nem eu, nem ela. Apenas passagem da dor ao prazer.


Tudo é questão de método VIII

Aristóteles: “sem nos colocar, antes de tudo, o problema, é como se caminhássemos sem saber aonde vamos”*. Além disso, a posição do problema envolve em si a forma da solução; afinal, diz Aristóteles, só o problema nos permite reconhecer, encontrar, descobrir algo como solução. O problema vem antes da solução. E se há solução, a sua forma ou condição de possibilidade vem junto com o problema.

Daí, a importância da problematização quando estamos no embaraço – acorrentados, sem poder avançar (conferir o amor de Foucault pela problematização). Fazer do embaraço um verdadeiro problema é, com certeza, o início da ação, a compressão, o aperto da mola da pulsão movente.

Mas será esse o único método do conhecer e do agir? Buscar e caminhar para onde já se sabe, de antemão, querer chegar? O caminho com a forma da finalidade pré-estabelecida?

O andar sem problemas do flâneur. Ir e dirigir-se ao azar dos encontros. Não se dão, com isso, também, soluções? Não se encontra, apenas nisso, o inesperado?









(*) ARISTÓTELES, –. Métaphysique. Tome 1. Livres A-Z. Trad. J. Tricot. Paris: J. Vrin, 2000 [1933]. B (III), 1, 995a32. P. 70.

Filosofia e ficção

Orientamo-nos no pensamento por esse princípio de liberdade: “que toda ontologia seja analisada como uma ficção”*.

No entanto, isso não significa o desimpedimento simples e absoluto do filósofo (justamente, é a resistência do ar que torna possível o vôo da pomba) (e, se a liberdade é uma força atuante e não um alívio, um dom ou um presente de aniversário, somos mais livres quando estamos a cinco passos do tirano) (a nossa capacidade de agir aumenta junto com a nossa capacidade de padecer).

O pensamento, na sua história de invenções, se desdobra “constrangido a compor com o real”**.





(*) FOUCAULT, Michel. Le gouvernement de soi et des autres: Cours au Collège de France, 1982-1983. Paris: Seuil/Gallimard, 2008 [1983]. P. 285.

(**)ARISTÓTELES. Métaphysique. Tome 1. Livres A-Z. Trad. J. Tricot. Paris: J. Vrin, 2000 [1933]. A, 5, 986b31. P. 27.

A sacralização da filosofia

– Você pode até pensar, mas pousar entre os filósofos... que pretensão!

Não vale muito (é até mesmo, a meu ver, nocivo) fazer da filosofia uma atividade para poucos, algo inacessível, muito difícil, para a maioria dos pensadores por mais esforçados que sejam.

Afinal: “A teoria da verdade [a filosofia] é, em certo sentido, difícil, e, em outro sentido, fácil. A prova disso: ninguém pode alcançar a verdade adequadamente, nem perdê-la completamente”*.

Certo, a filosofia já não pretende, há tempos, à contemplação da verdade. Mas isso não invalida a colocação, muito pelo contrário.

A sacralização da filosofia serve apenas a um desejo de glória desdobrado em desejo de dominação, à maneira da sacralização da teologia pelos teólogos.

De fato, tudo depende do alvo almejado. Se a mira é suficientemente ampla, qualquer um pode ser arqueiro (“quem não meteria uma flecha numa porta?”**).




(*) ARISTÓTELES. Métaphysique. Tome 1. Livres A-Z. Trad. J. Tricot. Paris: J. Vrin, 2000 [1933]. II, 1, 993a30. P. 59.

(**) Ibid. 993b5. P. 60.

Isto é evidente! III

A tragédia do inevidente é a sua evidência (seu ser visível que essencialmente nos escapa aos olhos).

“Qual é a tragédia? É preciso o interdito para dar valor àquilo que arranha o interdito”*.





(*) ANTELO, Raúl. O lugar do erotismo. In: BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013 [1957]. P. 24.

Prática erótica da linguagem III

Jean-Luc Nancy: “le sexe est sens”*. É a significância. O valor sempre erótico da palavra-ação, como sentido, como encadeamento de corpos, palavras e desejos.




(*) Citado em: ANTELO, Raúl. O lugar do erotismo. In: BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013 [1957]. P. 21.

(o que é isto?) III

Sou consciente do meu desejo (palavra-ação), mas não do seu sentido, isto é, do seu encadeamento. Não sou consciente do que determina o meu desejo (isso é impossível para o humano), no seu encadeamento com os desejos dos outros.

Por isso, para mim, o meu inconsciente são os outros. Meu inconsciente são os desejos dos outros encadeados ao meu.

O inconsciente é inevidente e sem sentido. Na heteronomia do sentido, é dos outros, também, que se dá a norma do sentido (como encadeamento de palavras-ações).

O inconsciente tem sentido (encadeamento) mas não tem evidência (não é nem visível nem inteligível) – não pode ser objeto de uma ciência positivista.

(o que é isto?) II – Definição de inconsciente

Por definição (entenda-se, por definição eidética, sem a posição necessária da existência), o inconsciente é o inevidente, e é inevidenciável (isto que não pode ser posto, de modo absoluto, em evidência, diante dos olhos, em inteligência).

Assim, não há (apesar da sua definição eidética) um conceito de inconsciente. Só o evidenciável é conceituável. O conceito tem que ser evidentemente (o modo de ser do conceito é a essência).

Segue-se que não há o inconsciente em si. Mas apenas o inconsciente – (o que é isto?) – para mim.

Aliás, em Nietzsche, toda pergunta pela essência (o que é isto?) tem que se dar num modo solar (desde um solo), sob a forma de: – o que é isto para mim?

Isto é evidente! II

Fazer do critério do sentido a auto-evidência – esta é a dobra narcísica de Descartes, na negação da heteronomia do sentido.

Isto é evidente!

O evidente: algo absolutamente pensável – o inteligível. Um modo certo e determinado do pensamento que de alguma maneira ainda nos escapa à inteligência.

O evidente: algo absolutamente visível, que de algum modo nos escapa aos olhos.


Sentido e evidência

No sentido (no ter, no fazer sentido) não há evidência necessária. Uma palavra, uma ação (tanto faz), tem sentido por simples encadeamento com outras palavras-ações. E, nesse encadeamento (que é o sentido), pode não haver nada de evidente.

Prática erótica da linguagem II

Minha potência significadora (nem significante, nem significada, mas a potência ficcional ou articuladora de ideias) só alcança “flashes de sentido”* – finitude do encadeamento. Por isso, o aforismo; a significância deste aforismo.





(*) ANTELO, Raúl. O lugar do erotismo. In: BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013 [1957]. P. 20.

Da certeza

Na natureza tudo é certo. Só há o incerto no ver e no pensar (aestimare) de uma parte da natureza: o eu como um “pedacinho do mundo”*.

Mas, para mim, o incerto é o que há de mais certo.



(*) HUSSERL, Edmund. Conferências de Paris [1929]. Trad. Pedro M. S. Alves. In: Meditações cartesianas e Conferências de Paris: de acordo com o texto de Husserliana I. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. P. 7.



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Já preciso de uma ideia certa de certeza para encontrar a primeira certeza. Se não, como a reconheceria?


Manifesto

Não estaremos totalmente canalizados, domesticados, enfim: disciplinados.

Esta não será a nossa disposição.

Isso, porém, não é uma promessa.

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Há um modo verbal adequado para o manifesto (no latim: o particípio futuro). Não é o futuro do indicativo. Não indica um acontecimento, uma ação futuros. Mas, uma simples disposição, nem presente nem futura; uma disposição absoluta, atemporal, que orienta o futuro, no entanto, apenas relativamente a uma ação temporalmente determinada. Ou seja, propriamente, trata-se de um modo verbal estratégico (ação sobre ação) que anuncia uma ação que se dará a partir de outra uma ação, esta, sim, determinada no tempo passado, presente ou futuro.

2 caminhos do si

Este (que devemos a Nietzsche, a Bataille): ir além de si, na “superação da consciência objetiva, que as paredes da crisálida limitavam”*.

Eu me perdi por outro caminho: ir alhures de si.





(*) BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2013 [1957]. P. 62.

Palimpsesto

Em nossas páginas do século XXI, ainda se leem as do século XX. Nas do século XX, as do século XIX. Mas essa sub-sequência para por aí.

(o que é isto?)

– Por exemplo: o que é isto, a filosofia?

A única maneira de responder é apontar (com o dedo cheio de verrugas): é isto! e isto! e ainda isto!

– Responda sem apontar!

Impossível, sem perder o isto (e talvez junto as verrugas e o dedo).



Prática erótica da linguagem


(para)

ler   escrever

(e)










Cf: ANTELO, Raúl. O lugar do erotismo. In: BATAILLE, Georges. O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013 [1957]. P. 21.