A dominação da perspectiva e a autonomia do objeto: uma flutuação

Para ver certa paisagem, aquele que vê precisa pisar um solo qualquer; pisasse outro solo, veria outra paisagem. Enquanto vê a paisagem, não vê o que está sob seus pés, embora esse apoio seja condição para aquela visão. Se quiser ver o que está sob seus pés, terá de dar um passo atrás, e isso já seria pisar outro solo. Dessa imagem, conclui-se também que, sempre, em toda contemplação, haverá algo que não se vê, porque não há contemplação sem um ponto de apoio, e isso que não se vê (para que se veja o que se vê) é exatamente o primeiro apoio donde a contemplação torna-se possível.*
Certo, então, mais uma vez, a Heidegger:
Todo entendimento, como um modo fundamental de abertura, precisa mover-se sobre um trilho de vistas (Blickbahn) definido. [...] O trilho dessas vistas precisa estar pré-disposto. Chamamos de “perspectiva” a esse trilho de pré-visão. Assim, veremos que o ser só não é entendido de uma maneira indeterminada, mas que o entendimento determinado do ser move-se em uma perspectiva pré-determinada. 
Mover-se para frente e para trás, deslizar ao longo desse trilho, tornou-se para nós uma segunda natureza, a tal ponto que nós nem a conhecemos, nem sequer consideramos, ou entendemos, o questionar-se sobre ela.**

No entanto, nada nos impede, e tudo nos impele, a questionar, também, o perspectivismo ou, se quiser, não exatamente o perspectivismo, mas a ideia confusa de que tudo se decide por uma imposição ou por uma tomada de uma posição (um postar-se que determina o aparecer da vista, enquanto oculta o fundamento do que se posta).

Isso se esclarece com a figura abaixo destacada por Wittgenstein*** (ou com o pato-lebre).



Sem que o observador mude de perspectiva, e permanecendo postado sobre o mesmo solo, quem oscila para frente e para trás é a própria figura, segundo a sua natureza própria.

Existem entre os pontos da figura uma determinação. A figura se reorganiza, na manutenção e na perseverança de sua autodeterminação, conforme um de seus pontos esteja, para nós, adiante, ao lado ou por trás relativamente aos outros pontos.






(*) RIBEIRO, Luís Felipe Bellintani. Sobre a noção de parádeigma em Platão. Revista Peri, Florianópolis, vol. 5, nº 2, 2013, p. 1-25. P. 4.

(**) HEIDEGGER, Martin. An Introduction to Metaphysics. Trad. Ralph Manheim. London: Yale University Press, 1987 [1953]. P. 117.

(***) WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. Luiz Henrique Lopes Santos. 3 ed. São Paulo: Edusp, 2001 [1921]. Prop. 5.5423. P. 239.

Confissões sobre o destino


Talvez, de fato, eu não goste de escrever. E o meu prazer esteja todo apenas no digitar. E o meu prazer não seja realmente intelectual, mas sublimemente ligado ao tato.



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Assim, se entende com o corpo, e não pela leitura, o que diziam os velhacos troianos, tão sofridos com os tormentos da guerra, sobre o olhar de Helena:
– Nosso mal não vale um só dos seus olhares*.





Ronsard apud PROUST, Marcel. Albertine disparue. Col. Folio Classique. Paris: Gallimard, 2009 [1923]. P. 22.


L'être de fuite III – o que se experimenta na experiência

Amar, odiar. E levar a vida com prudência despojada, isto é, sem re-sentimentos. Afinal, no re-sentimento dá-se apenas o re-encontro narcísico de si consigo mesmo.

Quando dizemos: – eu tenho a experiência dessas coisas,
...o que chamamos experiência é apenas a revelação, aos nossos próprios olhos, de um traço de nosso caráter que reaparece naturalmente, e com tanto mais força quanto o havíamos revelado a nós mesmos já uma vez, de sorte que o movimento espontâneo que nos guiara da primeira vez se acha reforçado por todas as sugestões da lembrança.*


(*) PROUST, Marcel. A fugitiva. Trad. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Globo, 2012 [1923]. P. 39.

L'être de fuite II – Questões de identidade (falsa)

Eu sou o que eu sou? Nós somos nós?
O plágio humano do qual se escapa com mais dificuldade, para os indivíduos (e mesmo para os povos que perseveram em seus erros, e os vão agravando), é o plágio de si mesmo.*



(*)PROUST, Marcel. A fugitiva. Trad. Carlos Drummond de Andrade com retoques. São Paulo: Globo, 2012 [1923]. P. 39.

“L’être de fuite”

L’être de fuite”*, é assim que Proust caracteriza Albertina e, talvez**, todos os seus personagens essencialmente inapreensíveis***.

Por si mesma, é uma expressão interessante: – “O ser de fuga”. O ser que é fuga, que é em fuga, que se constitui (na sua captura) por sua fuga. O ser que nos escapa em sua captura. Ao se dar à captura. Que capturamos como fuga.

Interessa-nos, ainda, a maneira como Drummond traduz a expressão – “ente de fuga”****.

Aparecem, na tradução, a diferença ontológica entre ser e ente e a opção do tradutor: – Proust, aqui, fala do ente e não do ser.

No entanto, de fato, que nos foge? O ser ou o ente? Capturamos eventualmente Albertina (ela cai em nossa rede apreensiva), mas o que acontece com o ser?



* PROUST, Marcel. Albertine disparue. Col. Folio Classique. Paris: Gallimard, 2009 [1923]. P. 18.

** Hélène Cixous: “mas toda pessoa ou toda coisa-pessoa, todo ser-pessoa que é, na Busca, é de fuga”. Che vuoi?, nº 9, p. 15.

*** Em oposição ao apreender (noein), na medida em que é pensar, moderno e corrompido, o ser-mesmo é o que se oculta. Originariamente, porém, apreender (noein) e ser (einai) são o mesmo. Conferir: HEIDEGGER, Martin. An Introduction to Metaphysics. Trad. Ralph Manheim. London: Yale University Press, 1987 [1953]. P. 136 ss.

**** PROUST, Marcel. A fugitiva. Trad. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Globo, 2012. P. 38.

Deslocamento como descolamento

[Não há como não!] Habito o centro: de fato, a descentralização.
O local de mim mais próximo: o descolamento.

Ditos e reditos


Apesar de adicto ao que digo, enfim, eu poderia mudar de opinião no momento seguinte (isso é da natureza da informaçãoBLOG). Ele, não. Ele está tão adicto ao que disse como ao que diz.

Sabores e odores II

Afinal, talvez, a filosofia tenha muito a ver com a gastronomia, por um lado, e com o apetite e o aparelho digestivo, por outro.

Diríamos: – eu não suporto esta filosofia!, como dizemos: – eu detesto quiabo e a lactose me faz mal!


Sabores e odores

Cada filosofia, um sabor, um odor: 
Importa o princípio de que uma filosofia não é um sistema insípido e inodoro de asserções objetivas, mas a tentativa de explicitação de uma experiência pessoal, de um páthos, portanto, com sabor e odor [...].*
Certo. E, então, a Heidegger:
“Nosso ser-aí precisa retomar a sua profundidade metafísica. Novamente alcançar a sua relação estabelecida e verdadeiramente constituída [mas velada, esquecida] ao ser do ente em sua totalidade”**.
Essa retomada do ser, essa filosofia do retorno, supondo a possibilidade de seu translado ou de sua projeção, ao menos de sua ressonância, em Spinoza, tornaria-se um ir, um desdobramento adiante da potência – a liberdade, salvação ou beatitudo do humano.

Para Heidegger, o ser do ente, que constitui isso que o ente é, não está de modo algum no ente – aqui, o ser sabe e cheira à transcendência (mesmo que a transcendência se dê na ou diante da imanência, no panta hen). Não encontramos no ente, entre os entes, o seu ser. Por isso, é preciso retirar a metafísica, ou seja, a relação aberta essencialmente humana ao ser, do âmbito do ente e da física.

Para Spinoza, isso que constitui a essência (e a existência, aliás) do ente, seu ser (e seu existir, na duração), é a própria totalidade do ente – sabor e odor de imanência. A física spinozana não é um equivocado esquecimento do ser velado pelo ente, mas a captura do ser do ente como totalidade do ente. Captura ontológica que ocorre também como física.




(*) RIBEIRO, Luís Felipe Bellintani. Sobre a noção de parádeigma em Platão. Revista Peri, Florianópolis, vol. 5, nº 2, 2013, p. 1-25. P. 2.

(**) HEIDEGGER, Martin. An Introduction to Metaphysics. Trad. Ralph Manheim. London: Yale University Press, 1987 [1953]. P. 107.


121

Um dia, precisaremos abolir a distinção cognoscente entre atividade e passividade.

Ontologia política

Há um nexus ontológico-político, seja porque toda ontologia pressupõe uma decisão política prévia, seja porque toda política pressupõem uma interpretação, concepção ou captura prévia do ser.

Nesse nexus, note-se, não falta o vértice ético (o modo de ser humano ou a prática refletida – de si sobre si – da potência humana). O vértice ético está envolvido na atividade e na passividade daquela decisão política (em que uma prática de si é decidida e se decide) e daquela captura ontológica (capturar o ser e ser capturado por ele de um modo singular).


Etimologia e nazismo: a busca da origem perdida ou a luta contra a impureza presente

A busca da pretensa origem das coisas (ou seja, do seu ser enfim desobstruído ou da sua verdade e significados originários) envolve uma imagem da pureza como tal (a pureza pura) e reclama-exige um esforço pela purificação das coisas.

Essa exigência pressupõe que as coisas – cujo ser se busca, nas coisas tais como elas realmente são, tal como o são na sua essência – estejam contagiadas pela sua relação com isso que elas não são.

A busca pelo originário é, assim, o combate pela descontaminação do ser das coisas presentes, é uma luta contra isso que as torna impuras no seu significado ou no seu ser.

Um paradigma literário para esse processo de busca é a etimologia. Um paradigma político: a eugenia arianista do nazismo.

Na etimologia e no racismo, a imagem cega, a figura sem luz de um sentido originário e de uma raça pura se conectam.

O que fez Platão com a idea?

O que fez Platão com a idea? Manteve o significante idea, mudou-lhe o significado.

Originariamente (no momento em que o ser das coisas se mostrava na língua), [mas, afinal, o que tem de fato uma origem firme e, ainda mais, uma origem perdida? O que é postar-se nesse senão-mítico originário? Tudo não é esse ser-devir de um permanente postar-se na origem imperante? A origem está no passado perdido, ou acha-se eternamente no presente? Origem não é princípio, e princípio, arché (força imperante)?] idea significava o aspecto visual, a forma-figura em que uma coisa se mostrava como tal coisa, na sua autolimitação. A silhueta-limitante de uma coisa estaria imanentemente ligada ao seu ser-próprio (pois a sua limitação, o alcance do seu limite-peras, na qual a coisa autoconstitui sua periferia não lhe é imposta desde fora)*.

Platão se apropria do significante e do significado originário para significar outra coisa. Platão, por idea, já não indica o aspecto visual da coisa, mas o inteligível do qual a coisa participa, isto é, seu verdadeiro ser não degradado.






(*) HEIDEGGER, Martin. An Introduction to Metaphysics. Trad. Ralph Manheim. London: Yale University Press, 1987 [1953]. P. 60.

Sobre a arché do aforismo

Frequentemente, o aforismo, em sua arché, tem um anteparo (ou um solo, se preferirem) do qual emerge.

Por exemplo, o aforismo de Karl Kraus, “A beleza passa, porque a virtude fica.”*, nasceu na desmoralização de uma máxima moral, “Schönheit vergeht, aber Tugend besteht!” (A beleza passa, mas a virtude fica!).

Outras vezes, o aforismo emerge na complementação de um outro aforismo. Como esse que, com Monique, compomos, a partir de Kraus: “A beleza passa, a virtude passa, a fantasia fica.”. Sem mas, nem porquê.




(*) KRAUS, Karl. Aforismos. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre: Arquipélago, 2010. P. 37.







118

A criança, que beleza! Por aí, inscientemente, toma sua opressão como se fosse seu ser.

A filosofia e a estátua de sal




O amigo-de-teatro (ou da aparência), em amizade, disse ao amigo-de-saber (ou do ser): “Adiantando-se, os filósofos sempre se voltam para trás”.

Como se os filósofos tivessem os corpos com os pés e os olhos apontados em direções contrárias, à maneira de certos personagens lendários. Olham para trás, caminham para frente; ou olham para frente, mas caminham para trás.

Então, se ainda vivêssemos sob aquele império divino: “Vai! E não olha para trás, se não...”, os filósofos seriam todos estátuas salgadas.

Exemplo da grande estátua de sal (ó, quantas lágrimas...): “Para apreendermos a diferença [entre ser e aparência], precisamos, aqui, mais uma vez, voltar atrás até o inicial [antes da diferenciação]”*.





(*) HEIDEGGER, Martin. An Introduction to Metaphysics. Trad. Ralph Manheim. London: Yale University Press, 1987 [1953]. P. 99.

Desejo de sombra e de barbárie


Não há um documento [historiográfico] da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie.*
Tudo o que se ergue esplendorosamente ao sol, pela cultura humana, projeta uma sombra sobre a terra, que abriga a barbárie. Afinal, por que queremos nos proteger, exatamente ali, onde ficamos desprotegidos de nós mesmos?




(*) BENJAMIN, Walter. Sur le concept d’histoire [1940]. Trad. Maurice de Gandillac, revista por Rainer Rochlitz. In: Oeuvres III. Paris: Gallimard, 2000. Tese VII. P. 433.

O desejo de sombra na política

O que, afinal, nos afasta radicalmente do império democrático? Empecilhos histórico-estruturais em nossas formas de organização? Não. O que nos afasta da democracia radical é o nosso pavor de nós mesmos, o gigantesco temor de morte que sentimos ao habitarmos a potência do fogo ingente e o correlato desejo de sombra.

Repita-se, com a ênfase necessária:
[...] na primeira vez, todos igualmente foram encontrar a Deus, para que ouvissem isso que Ele lhes quisesse imperar. Mas, nessa primeira saudação, a tal ponto ficaram aterrorizados e atônitos, ao ouvirem [por si mesmos, isto é, imediatamente em si mesmos] ao Deus falante, que pensaram estar diante do seu próprio tempo supremo, o juízo final [a temporalidade estancada – o ser inteiro visível]. Então, tomados de pavor, voltaram-se a Moisés [ou à sua consciência]: “eis que ouvimos diretamente ao Deus falante no fogo [do nosso coração], mas não há causa pela qual queiramos morrer; certamente, este [nosso próprio] fogo ingente nos devorará; se, outra vez, nós precisarmos ouvir a voz de Deus [entre nós], certamente, nós morreremos [em nossa própria fogueira]. Então, vai tu ao Seu encontro e ouve [em nosso lugar] tudo o que Deus nos tem a dizer...”*.
Moisés (ou o devir afetivamente impossibilitado da democracia radical) é o representante, no sentido de uma consciência ouvinte, intermediária, intermediadora da relação de si a si e de si ao outro.


(*) SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres III: Traité théologico-politique. Trad. Jacqueline Lagrée et Pierre-François Moreau. Paris: PUF, 2009 [1670]. XVII, §9. P. 549.

O grande filósofo do século XX – II – e o desejo de sombra


O grande filósofo do século XX: talvez, apenas, um fruto do nosso desejo de sombra. Quem ousa, afinal, se expor ao sol, diretamente, sem qualquer anteparo?

[...] na primeira vez, todos igualmente foram encontrar a Deus, para que ouvissem isso que Ele quisesse lhes comandar. Mas, nessa primeira saudação, ao ouvirem ao Deus falante, ficaram a tal ponto aterrorizados e atônitos que pensaram estar diante do seu tempo supremo [o juízo final]. Então, plenos de medo, voltaram-se novamente a Moisés: 
“eis que ouvimos ao Deus falante no fogo, mas não há causa pela qual queiramos morrer; certamente, este fogo ingente nos devorará; se, outra vez, nós precisarmos ouvir a voz de Deus, certamente, nós morreremos. Então, vai tu ao Seu encontro e ouve tudo o que Deus nos tem a dizer...”*.




(*) SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres III: Traité théologico-politique. Trad. Jacqueline Lagrée et Pierre-François Moreau. Paris: PUF, 2009 [1670]. XVII, §9. P. 549.





O grande filósofo do século XX


Talvez, apenas, um efeito de perspectiva: de perto, ainda à sua sombra, ele nos aparece enorme, gigantesco. Com a distância, ele se apequenará.