A virtude, ao menos, na palavra

A virtude não vem depois da boa ação (uma ação correta, perpendicularmente reta, orientada pelo nosso vínculo comunitário, humano e com a natureza). Não é a ação boa que faz o virtuoso. Esse é o padrão da moral (um modelo dado de ação que, se imitado, é critério da virtude).

A virtude não é um fim a se alcançar mediante um comportamento moral. Mas um princípio, uma arché humana. A virtude é uma potência reta consigo mesma e, como tal, é já uma disposição da qual se seguem as ações boas. É o virtuoso (em sua reta potência) que faz a boa ação.

Ânimo vigoroso, generosidade, força e coragem, prudência, atenção, perspicácia, vinculação, numa palavra: fortitudo*.




(*) e4p73 e escólio. SPINOZA, Benedictus de. Ethica [1675]. In: Opera Posthuma. –: –, 1677.

Exercício acerca das questões

Qual dessas duas questões é a mais importante filosoficamente?

(1) – A mente existe imaterialmente?

(2) – Precisamos sempre esperar a fome para começar a cozinhar?



Iguais diferenças

– Todas as diferenças são uma única. Ou seja, toda diferença é igual. Assim, retomamos a diferença, profundamente, como igualdade.

Um exemplo deste pensamento enganado: se compreendermos, na sua essência, uma diferença particular, aquela entre “la vie à chaud” e “la vie a chaud”, compreenderemos toda outra diferença.

Na primeira expressão: – “vida” e “quente” são imanentes um  ao outro; na outra: “vida” e “quente” estão contingentemente unidos. Isto é, toda diferença é diferença entre imanência e transcendência.

La vie à chaud


Os hábitos realmente democráticos são passionais, interessados, contingentes, impulsivos, imoderados, intempestivos. Mas não é essa irracionalidade que refuta a democracia real.

Refutam-se os hábitos esfriados de uma democracia acalmada. Ela cheira a hipocrisia. Por baixo dessa impressão de crosta asserenada, vigora sempre a mesma vida acalorada.

A filosofia, a moral e o espelho


Quando se diz que a filosofia não deve ser como um espelho da natureza, por estas tortuosas vielas do dever, que nos fazem dar voltas sobre nossos próprios passos, já estamos a espelhar alguma coisa.

Afinal, a atitude moralizante não faz mais do que exigir de você que você se enxergue no espelho dela.



Ajuda (argumento por autoridade)

A compreensão abre um âmbito de não-compreensão, e se abre por ele.

Deleuze:
– É preciso sempre desconfiar dos filósofos: quando ficamos muito contentes de ter compreendido, é porque isso que compreendemos é uma condição para compreender ainda outra coisa que não compreendemos. Então, quero dizer, são sempre textos de muitos níveis...

Encontre-me, perdendo-me


Para que você não se prenda a uma imagem associada a mim, eu tenho vários nomes – e vários endereços eletrônicos (e-mails). Eu vivo em Moscou (já vivi em Berlim e Paris).

Mesmo assim, um dr-one, ou dois, dr-two, pode me localizar. Se não pode intuir-me, destrua-me.


Diário de Moscou XV – a visita de Bergson



Moscou não é um conceito, mas uma imagem.

Bergson, que encontrei durante sua visita a Moscou, colocou em suspenso, para a filosofia, o conhecimento por conceitos. Para ele, a essência movente do real não pode ser reconstituída a partir de conceitos que são elementos racionais imóveis.

O real (a coisa em si mesma) precisa ser apreendido por intuição imediata, num “esforço da imaginação”* e não da razão, que conhece mediante conceitos. Pois, os conceitos racionais são sempre derivados das propriedades que uma coisa compartilha com outras. O conceito conhece propriedades comuns e não a essência da coisa, que é sempre singular.

Essa intuição, essa “simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de único”**, é um ato simples que não comporta mediações simbólicas. E se a filosofia, enquanto metafísica, tem, no conhecimento do real, por procedimento intelectual (considerando aqui o esforço de imaginação um ato intelectual), a intuição, então a metafísica “é a ciência que pretende passar-se de símbolos”***. A metafísica, portanto, não pode falar do que, em si mesmo, é inexprimível.

Minha vida (e, particularmente, minha vida em Moscou), como objeto, é inexprimível. Só pode ser conhecida pela simpatia de um filósofo (que seja também o meu leitor).

Dessa vida minha posso oferecer ao leitor conceitos e imagens, mas nenhum dos dois pode representá-la, nem pode substituir a intuição que o conhecimento absoluto dela requer.

Conceitos são abstratos e só alcançam as propriedades comuns. As imagens, porém, têm a vantagem de serem concretas ou de “nos manter no concreto”****, pois permanecemos, com a imagem, ligados ao singular, apesar do distanciamento do símbolo.

Para fazer conhecer a minha vida (e particularmente em Moscou), segundo Bergson, eu deveria me valer de muitas imagens díspares, para que nenhuma delas possa “usurpar o lugar da intuição”*****.

Entretanto, eu uso apenas a imagem de Moscou. E Moscou-imagem toma o lugar da sua (e da minha própria) intuição de minha vida.

Ao menos, Moscou não é um conceito.








(*) BERGSON, Henri. Introdução à metafísica [1903]. In: O pensamento e o movente: Ensaios e conferências. São Paulo: Martins Fontes, 2006. P. 184.
(**) Ibid. P. 187.
(***) Ibid. P. 188.
(****) Ibid. P. 192.
(*****) Ibid. P. 192.

Modificações modificadas e modificantes


Modos de ser (esqueçam-se, momentaneamente, como em latim, artigos de “os modos do ser”, em função individualizante)... modos de ser são modificações modificadas (mas não apenas) e modificantes. Não se modificam sem modificar.

– Modificações de quê?

Ora, resposta exige reintrodução de artigo. E está excluída de jogo.

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Não há modos que se modifiquem sem modificar, porque são partes de natureza e não como impérios dentro de impérios.


Reflexão e gestualidade

A premente questão dos afetos e da afetabilidade não advém apenas do fato de que somos seres sensíveis, afetáveis (entes ou modos de ser modificáveis), como também do fato de que somos seres produtores de afetos (entes ou modos de ser modificantes). E isto levanta a questão do gesto.

O gesto bem-refletido só pode colocar a produção de modificações (em nós mesmos e no que nos circunda, modos de ser humanos e não-humanos) no âmbito estratégico da generosidade.



Amor de si, senhor de nós

Vive em nós, em nossa mente ou espírito, um modo de ser perverso: o amor de si.

Perverso, porque, sem ele, talvez não possamos viver, e, por isso, encontramo-nos dispostos a amá-lo e a cultuá-lo.

Além disso, acreditamos que ele nos ama – pensamos que aquele “si”, no seu nome, se refere a nós –, mas, se percebemos bem, ele só ama a si mesmo, como um modo existencial distinto e autônomo.

Tudo o que ele faz, o faz para si, para se enaltecer, para se expandir e se intensificar, em nós e por nossos meios. Usa-nos para isso.

Mecanismos afetivos XVIII – jogos de linguagem e afetos


A mãe recente de idade avançada se alegra ao revelar aos outros a novidade do seu filho. Quando fala dele, o chama de “meu bebê” (mesmo quando ele já completou três anos). A seus ouvidos, isto a rejuvenesce.

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É preciso, para contar uma vida, contar a história inteira e não somente uma parte dela.


Diário de Moscou XIV


Procuro desprender-me, um instante, da imagem de Berlim, e perceber sem influências a Moscou invariável. Isso, porém, parece impossível.

Não apenas varia a minha percepção de uma vida em Moscou, mas varia também a própria variação.

Então, como julgar a respeito de uma vida em Moscou?

Não sei ainda se Moscou é uma só cidade ou tantas quantas são as minhas impressões variantes. Nem se há de fato uma vida em Moscou.

Os meus hábitos de pensamento e de afetos, no entanto, exigem que eu julgue. Eles imperam: – julgue, porque uma vida está em jogo!

Quando, como atitude filosófica, o correto seria cultivar o desprendimento do desejo em relação ao desejo de julgar e a suspensão momentânea de todo juízo a respeito de uma vida.

Esclareço, ao final dessa página de diário, o que pode não estar claro: uma vida não é uma vida individual, mas um gesto engajado em múltiplas relações.


Nós, os espíritos cativos


No início de um espírito livre está a afirmação impetuosa e ingovernável:

“Melhor morrer do que viver aqui.”*

Como, para nós, no início de nossa catividade, no pânico, impera a afirmação contrária:

– Melhor viver aqui do que morrer.








(*) NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1878]. Prólogo 3 [1886]. P. 9.


Solidão e responsabilidade, culpa

Meu sentimento de solidão aumenta à medida que aumenta a minha consciência de que a minha solidão envolve e determina, responsabilizando-me, a ausência de certos outros (não de uma alteridade indeterminada). Assim, sentindo-me só, estou, ao máximo, com certos outros em mente.

A solidão responsável aproxima-se do sentimento de culpa.



Semicompreensão metafísica III: intelecto e cérebro

Isso que define (ou seja, limita) a capacidade de penetração de um intelecto humano é a capacidade de refrigeração do cérebro.

Quando um cérebro esquenta, ele impede o pleno desdobramento (ou penetração) do intelecto.

Semicompreensão metafísica II: a linguagem ao infinito


Aumenta-se consideravelmente (isto é, ao infinito) o âmbito da linguagem ao tomar os signos, não mais como representações das coisas, mas como suas expressões ou manifestações imediatas.

A linguagem deixa de ser um meio, para se tornar o modo infinito imediato.

Semicompreensão metafísica



Com os anos (e o embate da reflexão que vem de fora, reflexão que é como as ondas insistentemente agentes sobre o hermetismo das pedras), aquilo que representava o vazio do objeto (ou a incapacidade de sua representação completa) tornou-se o próprio objeto (não a sua representação). Mas não há nisso, verdadeiramente, nenhuma transformação. Pois o objeto em si equivale à representação do vazio que há nele.