O lado B da reforma ortográfica

A reforma ortográfica tem também esse aspecto: confere, no segundo após ter entrado em vigor, um ar envelhecido a todos os livros escritos com a ortografia não reformada.

Como a maioria dos leitores têm dificuldade em ler textos antigos, e como as pessoas em geral são renitentes diante das velhas coisas, com a reforma, milhões de volumes das nossas bibliotecas e livrarias, provavelmente, serão ainda menos lidos, porque se tornaram, de um só golpe, muito mais velhos, porque velhos na aparência, do que realmente são.

O muro é a figura da cidade, mas ele é a sua essência?

ItálicoFoi dito aqui:
E, aí, forma tinha um duplo sentido: aspecto (o muro dá à cidade o seu aspecto, que captamos com o corpo: visão, tato, movimento de andar) e essência (o muro é aquilo que da cidade não se pode retirar de ser, sem que a cidade deixe de ser o que ela é). O muro era essa coincidência do aspecto com a essência, na forma.

O muro de uma cidade desenha-se como um limite, dentro do qual se encerra a cidade como uma figura.

Cidade, guarda e liberdade (IV)

Maquiavel se pergunta justamente de que lado deve ficar a guarda. Não de que lado do muro da cidade, mas se a guarda da liberdade deve ser atribuída ao povo ou aos grandes.

Em Maquiavel, o muro da cidade não encerra uma unidade pacificada de um único humor, mas um conflito entre os nobres e a plebe. Numa só cidade, dois humores. E esse conflito favorece a liberdade, não a servidão.


Cidade, guarda e liberdade (III)
Cidade, guarda e liberdade (II)
Cidade, guarda e liberdade (I)

Cidade, guarda e liberdade (III)

Certamente, tudo isso é muito esquemático e redutor. De fato, a relação entre cidade, guarda e liberdade é muito mais complexa.

Vejamos, por exemplo, como, no capítulo nono do Processo de Kakfa, Na Catedral, {leia aqui}, a guarda da lei está representada por um porteiro*. E o porteiro de Kafka está do lado de fora da lei, junto ao camponês, e não do lado de dentro, como pressupunha o nosso esquema de cidade. No nosso esquema, a cidade está do mesmo lado que a guarda, relativamente ao muro que a cerca.

O nosso esquema e todos os esquemas, com Kafka, tornam-se complexos. Quem conta a historieta do porteiro da lei para K. é um capelão, alguém que conhece não qualquer lei, mas a lei divina. E não é um capelão qualquer, mas o capelão do presídio. Quer dizer, alguém que anda também (segundo nosso esquema) pelo lado de fora da cidade. Alguém que entra e sai da cidade, mesmo se a cidade for como o reino de Deus. Uma figura de trânsito, análoga a de Odisseu, que pode descer aos ínferos e subir de volta.

O capelão é um porteiro da lei. Mas quando ele conversa com K., ele está do lado de dentro ou do lado de fora? Essa é a dúvida que sempre nos acossa, no romance e fora dele. Afinal, estamos de que lado do muro? Estamos no inferno ou na terra abençoada? Na prisão ou na cidade?


(*) KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1914]. P. 214 ss.

(**) P. 213.

Cidade, guarda e liberdade (II)

Nosso esquema da cidade mostrou-se assimA cidade se encontra, relativamente ao muro de sua forma, do mesmo lado que a guarda.

O muro, segundo nosso esquema, é a forma da cidade, porque lhe dá seu aspecto, tal como podemos apreendê-la pela visão, e ao mesmo tempo delimita a cidade separando-a do seu entorno. O muro é a membrana que singulariza a cidade como evento. Mas é a guarda que indica de que lado do muro a cidade se encontra. Assim, no nosso esquema de cidade, a guarda, como o muro, é um dos elementos da forma da cidade.

Retomemos essa questão, porém, genealogicamente. Até o século XVIII, além de forma, o muro era também a essência da cidade. Quer dizer, o muro era aquilo que de uma cidade não se podia retirar, se a cidade devesse continuar sendo o que era. A forma e a essência da cidade coincidiam no muro.

A partir do século XVIII, a abordagem da cidade se transforma. Trata-se de "recolocar a cidade em um espaço de circulação"*. O muro perde sua função de forma e de essência da cidade. A cidade deixa de ter um limite bem definido e material. Passa a integrar, como elemento, um sistema territorial. A cidade torna-se como um ponto de condensação, na malha difusa e maior do território de livre-circulação, composto de várias cidades e de uma fronteira.

Os muros que, a partir de então, na cidade, ainda se notam delineam espaços de extraterritorialidade, como aqueles do interior dos presídios. Mas o muro já não é, nessa configuração, essencial para o ser da cidade. Pode-se ao menos imaginar uma cidade sem bolhas de extraterritorialidade no seu seio. Uma cidade sem muros é no mínimo pensável.

Nessa cidade sem muros, a posição da guarda já não indica nada. Ao menos em pensamento, poderia sair da cidade e se posicionar na fronteira do território, sem que o estatuto da cidade se alterasse por isso.

(*) FOUCAULT, Michel. Sécurité, territoire, population: Cours au Collège de France, 1977-1978. Paris: Seuil/Gallimard, 2004. P. 14.

Cidade, guarda e liberdade

Temos aquelas definições antigas de cidade como lugar da liberdade. A cidade é o lugar intramuros onde os cidadãos exercem sua liberdade.

Agora remeto-me não a definições, mas àquelas imagens da antiga prisão de Carandiru, de grades e celas abertas, de certo comércio entre os prisioneiros, de certa circulação, de aparente liberdade intramuros. Mas, obviamente, Carandiru não é uma cidade. E não se pode, em absoluto, falar de uma certa liberdade em Carandiru. Carandiru é uma prisão. E, em princípio, Carandiru faz parte da cidade. Carandiru, em São Paulo.

Deixemos, então, por um momento, a definição da cidade como espaço da prática da liberdade. Senão Carandiru seria uma espécie de cidade. Tomemos, entretanto, a posição da guarda, relativamente ao muro. Na cidade, a guarda vigora a partir de dentro dos muros que contornam a cidade. A guarda garante a muralha que desenha a cidade, e que assim lhe dá seu aspecto, sua forma de cidade. Na cidade, a guarda está, junto aos cidadãos, no lado de dentro da muralha. Relativamente aos prisioneiros, ao contrário, a guarda está do lado de fora da muralha que dá forma à prisão. Em relação ao espaço da prisão, a guarda também garante a muralha, mas, dessa vez, do lado de fora, apartada dos prisioneiros e não junto a eles.

Agora, tudo parece se encaixar. O muro cerca a cidade, não a prisão. O espaço da prisão é um fora, não um dentro. A liberdade é sempre intramuros. A guarda está junto aos cidadãos; no interior dos muros, garante da liberdade. Na prisão, não há liberdade nem, propriamente falando, uma guarda. A prisão não pertence à cidade, não é um lugar cercado. A prisão não tem, por si mesma, uma forma. A prisão é o fora da cidade, ela sim cercada. Cercada é a liberdade. Relativamente ao contorno do muro, a cidade está onde está a guarda.

Assim, podemos definir a cidade pela posição da guarda, relativamente ao muro.

Governamentalidade

Governamentalidade remete à questão do sujeito.

Tomemos essa definição – governamentalidade como campo estratégico das relações de poder em sua mobilidade, reversibilidade*.

Temos aqui a noção de um equilibrio, mas também de uma instabilidade. Mas este equilíbrio e esta instabilidade da governamentalidade se dão entre quê?

Entre o que poderíamos chamar de modo ou dispositivo de assujeitamento (prática discursiva de produção do sujeito a partir da relação entre o poder e a verdade) e o modo ou dipositivo de autossubjetivação (prática de si como sujeito da verdade).

Exemplo da instabilidade, da reversibilidade – o modo de autossubjetivação coletiva próprio à Insurreição Iraniana (1978) foi transformado, reconfigurado, apropriado, na possibilidade de reversão da governamentalidade, em dispositivo de assujeitamento durante os anos da Revolução (1979 em diante).

Na sociedade unidimensional, por outro lado, se ela houvesse, não há mais o jogo entre o assujeitamento e a autossubjetivação. Ambos os dispositivos coincidem. Fecha-se, por uma duração, o jogo entre um e outro, entre poder e resistência. Desaparece a governamentalidade, cuja essência está na instabilidade do equilíbrio, acerca da verdade, entre sujeito e poder.

Chegamos à essência da governamentalidade como instabilidade do equilíbrio entre assujeitamento e subjetivação, na sua referência à verdade.


(*) FOUCAULT, Michel. L’herméneutique du sujet: Cours au Collège de France, 1981-1982. Paris: Seuil/Gallimard, 2001 [1982]. Curso de 17/2/1982, 1ª hora. P. 241.

Hupomnêmata

A informaçãoBLOG é também Hupomnêmata*, uma anotação e, de certo modo, um rebaixamento ao papel, ou elevação do papel à memória, que serve a si e a outros. Que serve a si, ao servir aos outros, e que serve aos outros, ao servir a si.

Com efeito, as Hupomnêmata, como as informaçõesBLOG, eram objeto de correspondência, e não tinham nada ou quase nada de autobiográficas.



(*) FOUCAULT, Michel. L’herméneutique du sujet: Cours au Collège de France, 1981-1982. Paris: Seuil/Gallimard, 2001 [1982]. Curso do 3/3/1982 (2ª hora), p. 343.

22

É preciso lembrar que o espaço vazio, posto entre as palavras, faz parte da pontuação.

21

Pode parecer evidente, mas... Que a vontade não seja livre não implica que a vontade mesma não exista. O que se nega é a liberdade da vontade, não a sua existência.

Questão de método

Tratar a Insurreição Iraniana (1978) não só como inflexão biográfica (daqueles que fizeram sua experiência) ou histórica, mas, também, ao mesmo tempo, como inflexão epistemológica, do modo de conhecimento da verdade, isto é, como inflexão da experiência do sujeito e da governamentalidade.

A Revolução Cultural Islâmica (1980)*, esse propósito de uma espiritualidade também no saber, de um saber o mundo na perspectiva de uma transformação espiritual do sujeito, já é, porém, um dispositivo de assujeitamento (de relação entre verdade e poder para o assujeitamento) esvaziada da vontade de autossubjetivação (de relação entre verdade e sujeito), que estava presente na Insurreição.



(*) Cf. KHOMEINI, Ruhullah. The Meaning of the Cultural Revolution [1980]. Trad. Hamid Algar. In: ALGAR, Hamid (Orgs.). Islam and Revolution: Writings and Declarations of Imam Khomeini (1941-1980). North Haledon: Mizan Press, 1981. Pp. 295-299.

Um objetivo para 2009: exercitar o semi-olhar

Um objetivo, para o ano novo, que é relativo a uma prática de mim mesmo.

Estudar de olhos semi-abertos quer dizer, simplesmente, a seguinte meta: que eu possa estudar sem me encerrar num silêncio de pura contemplação do objeto de estudo. Estudar de olhos não só fechados, mas também abertos para o que está acontecendo à minha volta. Estudar com as janelas abertas para o barulho que vem da rua. Estudar no convívio com ruídos e outros estímulos externos, devidos à relação de mim com o entorno. Estudar em meio à gente. Estudar ouvindo música. Estudar com atenção compartilhada entre o livro e o que está à sua volta.

Essa também é a forma ideal (semi-aberta) de um cuidado de si. Prestar atenção a si é também semi-olhar para o que acontece em torno.