Acerca da providência

No capítulo XVII, da terceira parte do seu Guia para os perdidos, Maimonides (1135-1204) discute as cinco teorias acerca da providência divina conhecidas até então. Quatro são positivas; uma, negativa.

1. A teoria negativa diz simplesmente que não há qualquer providência. Tudo o que acontece no universo e tudo o que ocorre, para qualquer ser humano, é devido ao acaso puro.

Maimonides diz que, entre os judeus, alguns ateus defenderam tal teoria. Mas ele a atribui propriamente a Epicuro.

2. A segunda teoria, a primeira positiva, Maimonides diz ser a de Aristóteles. Há providência, mas apenas parcial. Uma parte do universo vincula-se à providência, enquanto a outra é abandonada ao acaso.

A parte universal sob o governo direto de Deus é a celestial. A abandonada ao acaso é aquela abaixo da esfera da lua, o corpo celeste mais próximo a nós.

Deus governa o que é permanente e de movimento constante, deixando ao acaso desregrado a variação e a duração do aleatório individual.

A influência da providência divina, na esfera sublunar, assegura permanência e imortalidade até o nível das espécies, mas deixa os indivíduos à sua sorte.

De fato, nem mesmo os indivíduos foram inteiramente abandonados.

Aquela porção de matéria prima purificada e refinada, ao receber a faculdade de crescer, foi provida com propriedades que a permitem durar um certo tempo na existência, atraindo o útil, repelindo o inútil.

A porção de matéria prima sujeita a um desenvolvimento ainda mais acentuado foi provida com outras propriedades para sua proteção e preservação: ela recebeu uma nova faculdade, a faculdade da sensação, para se mover na direção daquilo que é favorável ao seu bem-estar e na direção contrária ao que é desfavorável.

A porção de matéria prima ainda mais refinada foi provida com a faculdade intelectual. Com esta faculdade, ela possui uma propriedade especial pela qual cada indivíduo, de acordo com o grau de sua perfeição, é apto a gerir, calcular e descobrir o que é favorável para a sua existência temporária e, ao mesmo tempo, para a permanência da espécie.

Todos os outros movimentos, entretanto, feitos pelos indivíduos de cada espécie, são acidentais e não o resultado de lei e de conduta divinas.

Neste aspecto, segundo Maimonides, Aristóteles não vê diferença alguma entre o que acontece a um punhado de formigas e o que acontece a um punhado de homens pios. Não discrimina o que se dá a uma mosca que cai numa teia de aranha daquilo que se dá a um profeta que se encontra com um leão selvagem no deserto.

Para resumir, a opinião de Aristóteles é a seguinte: _tudo o que é constante na natureza está em estreita relação com a providência divina. Mas o que não é constante não segue lei certa, e é resultado do acaso.

3. A terceira teoria é aquela à qual aderem os maometanos Ashariyah. De acordo com eles, tudo no universo é resultado de vontade, intenção e leis. Nada é deixado ao acaso.

Tudo, absolutamente tudo, no espaço e no tempo, acontece segundo o decreto prévio de Deus, no lugar e no instante previamente determinados por Deus.

Os Ashariyah são então compelidos a assumir a predestinação de todo movimento e repouso dos seres vivos e a reconhecer que não se encontra no poder dos humanos fazer ou deixar de fazer qualquer coisa.

Segue-se disso, segundo Maimonides, a inutilidade dos preceitos, pois as pessoas, às quais as leis são dadas, são incapazes de fazer qualquer coisa, nem fazer o que a lei lhes obriga, nem deixar de fazer o ela os proíbe.

De acordo com esta teoria, apesar de tudo ser predestinado, as ações divinas não possuem uma causa final, nenhum modelo ou fim que as guie.

Tudo no universo acontece segundo a vontade de Deus, mesmo as injustiças e os pecados, mesmo as recompensas para os ímpios e as punições dos pios. Ocorre até mesmo Deus infligir dor a seres humanos bons e justos. Desgraças desse tipo, como tudo no universo, os Ashariyah atribuem à vontade de Deus.

4. Para a quarta teoria, o ser humano possui uma vontade livre. Com isso, a lei que comanda e proíbe, pune e recompensa torna-se inteligível e tem razão de ser.

Todas as ações de Deus são devidas à sabedoria. Não há injustiça em Deus e ele não aflige os bons.

Os Mutazila professam esta teoria. Eles defendem que Deus está ciente de tudo, inclusive do vento que faz cair a folha da árvore, e que Sua providência se estende sobre todas as coisas do universo.

Esta teoria implica alguns absurdos e contradições.

Os absurdos são os seguintes. Aqueles que nascem defeituosos ou o massacre dos inocentes acontecem, segundo a sabedoria divina, sem porém nós sabermos como, para o bem dos deficientes e dos injustiçados. Estes desgraçados não sofrem nenhuma punição divina, mas gozam da sua bondade, em vista de uma vida futura. Até mesmo as moscas e os carrapatos massacrados receberão numa vida futura a recompensa por sua morte prematura.

Eles se contradiziam porque criam que Deus tudo sabe, enquanto, por outro lado, também, que o ser humano tem a vontade livre. Basta refletir um pouco, escreve Maimonides, para descobrirmos a contradição que há nisso.

Para os Mutazilites, Deus não inflige dor arbitrariamente, mesmo quando aflige os justos, mas por sabedoria. Todo ser afligido por alguma dor neste mundo terá sua recompensa na vida futura.

5. Segundo a quinta teoria, a vontade do ser humano é perfeitamente livre. Mas para tanto é preciso uma dose de acaso. Essa é a teoria dos judeus ou da lei mosaica.

O ser humano faz o que está em seu poder, segundo sua natureza, sua escolha e sua vontade. E sua ação não se deve a nenhuma faculdade criada com esse propósito. Todas as espécies animais irracionais também dispõem de vontade livre.

É da vontade divina todos os seres vivos se moverem livremente. Ninguém entre os judeus nega isso.

Outro princípio mosaico fundamental é que o incorreto não pode ser creditado a Deus de modo algum. Todo os males e as aflições, assim como todas as felicidades, são distribuídos com justiça infalível.

Toda a mínima dor de qualquer ser humano lhe é infligida por razão de algum pecado seu, enquanto todo seu prazer decorre como recompensa por alguma boa ação.

Tudo nos negócios humanos acontece segundo o mérito. Tudo é conduzido com justiça. Deus só pune aqueles que merecem.

A opinião própria de Maimonides é uma subespécie desta quinta teoria.

Segundo ele, na porção sublunar do universo, a providência divina se estende apenas sobre os indivíduos da espécie humana. Apenas para a humanidade a variação das fortunas individuais, os bens e os males incidentes, é resultante da justiça divina. No tocante aos outros indivíduos, ele concorda com Aristóteles. Se uma folha cai com o vento, não é por intervenção divina, mas por puro acaso.


MAIMONIDES, Moses. The Guide for the Perplexed. Trad. M. Friedländer. 2 ed. New York: Dover Publications, 1956 [1881, 1904].

Classificação dos atributos

Maimonides (1135-1204) e os cinco tipos de descrição de um objeto mediante um atributo positivo.

1) Descrição por definição, definição nominal, isto é, mediante a explicação do nome do objeto. Definição que estabelece a essência do objeto.

2) Descrição por parte da definição do objeto. Aqui se descreve parte da essência. Definição que complementa a essência do objeto.

3) Descrição mediante qualidades, que propriamente são diferentes da essência do objeto, nem a estabelecem, nem a complementam.

A qualidade pode ser (a) intelectual, moral; (b) física; (c) afetiva, passiva; (d) derivada da quantidade.

4) Descrição de um objeto mediante a sua relação com outra coisa.

5) Descrição de um objeto por suas ações.

Destas cinco possibilidades: somente a quinta pode adequadamente descrever a Deus. Deus como agente, descrito como Criador do mundo.

Mas o que isso tem a ver com o que aconteceu em Kopenhagen?



MAIMONIDES, Moses. The Guide for the Perplexed. Trad. M. Friedländer. 2 ed. New York: Dover Publications, 1956 [1881, 1904]. Part I, chap. LII, p. 69.

Aos ignorantes

Frequentemente, quando, num momento, estimamos dominar uma situação com toda clareza e distinção, estamos o mais cegos, enganados e afastados da verdade.

Nossos olhos são facilmente ofuscados pela luz da certeza mais duvidosa.

O impossível não é

Impossível, aqui, quer dizer o impensável.
Não é, aqui, quer dizer o sem essência.


O pensável é pensado segundo a essência ou segundo a existência.


O pensável tem essência.
Pensável, aquilo cuja essência pode ser pensada segundo uma definição genética, aquela que mostra um vir-a-ser.

O existente tem essência.
Pensável, aquilo cuja existência pode ser pensada segundo razões e causas de um vir-a-existir.
Pensável, aquilo cuja existência pode ser, em certa medida e de algum modo, imaginada.


O impossível não é.
A proposição permite várias inversões.

O existente é pensável.
Interessante complemento: mesmo que não seja pensável por uma mente humana.

O possível é.
O possível é o pensável. Se pensável, pode ser imaginado. Se imaginável, tem entidade.

Mas, o que isso tem a ver com o atentado no avião que vinha de Amsterdã?
Mas, o que isso tem a ver com a manifestação antiditadura, no dia de Ashura, no Irã?
Mas, o que o atentado tem a ver com a manifestação?

O valor do rebelde

A beleza e o valor do rebelde repousam na sua singularidade.

Por isso, quando os rebeldes se multiplicam, a rebeldia desaparece no mimetismo, e a sociedade aparece com uma forma deformada, monstruosa, defeituosa.

Perde-se então a possibilidade da contemplação estética da rebeldia.

Razão e pedagogia V

Em geral, porém, a pedagogia não trata propriamente do conteúdo, mas apenas do método de ensino. Como se o conteúdo da ciência, a verdade, fosse consensual, determinado, imóvel.

Assim, o problema não se põe tanto, comumente, no que ensinar, mas no como.

Deixar o como a cargo do professor, então, é visto como ausência de pedagogia.

Razão e pedagogia IV

Hobbes discute a autoridade no cap. XVI do Leviatã, logo antes de entrar propriamente na parte política do seu tratado.

Temos o autor e o ator. O ator é a pessoa cujos atos e ditos pertencem propriamente ao autor, autor que o ator representa, ator que é autorizado pelo autor a agir e dizer em seu nome. Neste caso, o ator atua por autoridade.

“[...] in which case the actor acteh by authority.”


Hobbes compara autor e proprietário, autoridade e propriedade. A autoridade remete ao autor, como a propriedade ao proprietário.

Como a propriedade, a autoridade é um direito. A autoridade é um direito de agir e de dizer. Aquele que age ou atua por autoridade (como no caso do ator autorizado pelo autor) o faz com a devida licença daquele a quem cabe o direito.

No caso do professor, tudo o que ele faz e diz, ele o faz e diz por autoridade, isto é, autorizado pelo autor. O autor é aquele a quem cabe o direito sobre o que é dito e feito.

Digamos que o autor é autor de um conteúdo e de um método. Ele autoriza o professor a agir e a dizer tal conteúdo sob condição de que o faça segundo seu método e não segundo outro método.

Razão e pedagogia III

Quem tem autoridade para ensinar? Quem sabe a verdade.

correção: _Mas, não! É preciso saber também como ensiná-la. _Correção metodológica.

correção: _Mas, não! A verdade é apenas uma hipótese, uma suspeita. É preciso criticá-la, saber como se chegou até ela, isto é, quais são os critérios da verdade, e quem estabeleceu estes critérios e com que interesses. _Correção sistemática.

Razão e pedagogia II

“...quem tem autoridade para ensinar, tem também autoridade para escolher a via, o método, de ensino que preferir”.

Talvez o problema aqui esteja na separação, um tanto tradicional, entre conteúdo e método de ensino. De fato, conteúdo e método, conteúdo e expressão, mensagem e canal, não se distinguem tão absolutamente.

Quem percebe este problema como uma ameaça é aquele que defende com mais veemência uma pedagogia menos livre e quer desautorizar o professor.

Razão e pedagogia I

Spinoza coloca, como uma simples evidência da razão, um princípio da pedagogia mais livre:

“[...] qui authoritatem docendi habet, habere etiam authoritatem eligendi, quam velit viam.”*

Traduzo: “...quem tem autoridade para ensinar, tem também autoridade para escolher a via, o método, de ensino que preferir”.

Quando retiramos ao professor essa possibilidade de escolher o método pelo qual quer ensinar, retiramos também sua autoridade de ensinar. Fixamos o método, então, subtraímos a autoridade ao professor. Quando o método é autor, o professor é apenas ator.


* SPINOZA, B. Tractatus theologico-politicus, cap. XI, p. 143 da primeira edição.

O governo da incerteza




Até pouco tempo atrás, os governos haviam abandonado o ideal da polícia, o sonho de um controle absoluto dos indivíduos. Contentou-se com artes de governo mais incertas, e também mais econômicas, ou seja, com o controle estatístico da população. Os acontecimentos aleatórios e singulares eram aceitáveis dentro de certos limites.

O aleatório, o incontrolado, porém, tornou-se insuportável para os governos. Ligado a isso, o desenvolvimento da informática e da burocracia digital parece permitir o rastreamento individual eficaz e econômico.

Se um conhecimento certo já não é mais pensável, pelo menos, tornou-se preciso reduzir drasticamente as margens de erro do conhecimento estatístico.

Divinitus

Do ponto de vista humano, o acontecimento é o aleatório, o singular; o evento, o programável, a manifestação particular de um universal.

Do ponto de vista divino, divinitus, entretanto, não há acaso nos acontecimentos.

A episteme da incerteza

Com o conhecimento de quinto gênero, o estatístico, a ciência humana atinge um novo patarmar epistemológico. Não se sabe nada ao certo.

Não se sabe o certo, mas o provável. Não se sabe nada com certeza, mas apenas provavelmente. Já não se pergunta pela causa, mas pela probabilidade da relação entre dois eventos.

Dado A, qual a probalibilidade de que B se dê também?

A incerteza pode estar apenas do lado epistemológico, no modo pelo qual nos conhecemos o ser das coisas. A incerteza, nesse caso, estaria ligada à nossa incapacidade momentânea de conhecer absolutamente a causa das coisas.

Mas a incerteza pode estar – como diria Epicuro – do lado ontológico. O próprio ser das coisas é incerto e envolve o acaso, o aleatório, o absolutamente singular que não se deixa subsumir a um princípio universal.

A ciência estatística é uma solução para o controle do aleatório, do acontecimento. Deixa-se de lado a causalidade, como princípio explicativo, e procuram-se, no devir do acaso, certas regularidades, certos padrões de probabilidade, embora dentro de limites.

O impasse do humanismo

Para libertar-se do arbítrio divino, o ser humano inventa a episteme, a causalidade. Mas na causalidade absoluta, ele perde a liberdade do seu próprio arbítrio, como no mito trágico, sob uma deusa ainda mais inflexível, Ananke, a Necessidade.

Duas saídas para o humanismo (não as únicas). Ou aceitamos que o mundo é governado por deuses, não por Ananke, mas por deuses flexíveis às nossas preces e homenagens, deuses influenciáveis; ou introduzimos o acaso, e com ele a possibilidade da liberdade. Mas o que é o acaso senão outra divindade?

Novamente, pode ser o Acaso (Tykhe) uma divindade surda, insensível ao apelo humano, ou uma divindade sem cera nos ouvidos. Nesse segundo caso, teríamos de volta a religião institucionalizada, a teologia como a ciência do que agrada aos deuses.

No primeiro caso, uma episteme da incerteza.

O acaso, a singularidade, para além do trágico

Encontramos uma versão elaborada daquela frase lapidar, abrupta e grega – “nihil ex nihilo” –, em Lucrécio (De natura, livro I, l. 150):

nullam rem e nilo gigni divinitus unquam”.

A qual poderíamos verter assim:
Nada vem do nada, nem mesmo sob inspiração divina.

A física (episteme humana) tem seu impulso no desejo de provar essa tese, para tranquilizar o ser humano, para fazer com que ele perca o medo do extraordinário, do sobrenatural, daquilo que do nada adviria.

Fique tranquilo, do nada nada vem. Sequer divinamente. Tudo tem uma causa. É virtualmente possível encontrarmos as causas de tudo.

Isso (esse trabalho, essa função da física de eventualizar os acontecimentos) tem inicialmente uma função emancipadora e humanista.

Então, por que Epicuro se insurge (DL, X, 134) contra os físicos ou fisicalistas?

Porque, levada ao extremo, a tese de que “tudo tem uma causa” nos conduz ao determinismo e subtrai a liberdade ao ser humano enquanto sujeito (aqui, no sentido de causa própria de suas ações). O determinismo suprime o sujeito no humano, apaga o projeto humanista. Com isso, tendencialmente, caímos no fatalismo. Na aceitação do que é como o que é racional.

Se nada vem do nada, sequer divinamente; se tudo, na matéria, tem uma causa também material; se o corpo não sofre nenhuma influência do imaterial, do espiritual; então a ação humana, a práxis, que tem um desdobramento na matéria, não pode encontrar seu impulso no livre-arbítrio do sujeito nem na sua alma, e deve ser explicada apenas pelo corpóreo, próprio ou alheio.

No final das contas, para a episteme do determinismo da natureza, o ser humano não é a causa própria de suas ações, mas seu agir é determinado por causas exteriores que lhe escapam completamente.

Obviamente, Epicuro é um fisicalista. Mas um fisicalista humanista. Ele quer liberar o ser humano do medo dos deuses (sem porém negar a existência divina), mas também não quer deixá-lo entregue ao simples jogo natural.

Por isso, Epicuro questiona a causalidade absoluta. Nada vem do nada, correto. Tudo tem uma causa, correto também. Entretanto, o efeito não tem sempre uma única causa determinada.

Epicuro não eventualiza completamente o acontecimento.

Um acontecimento, afirma Epicuro (D. L., X, 133) pode surgir de uma causa necessária, a única que aceitam os deterministas, ou pode depender da fortuna (da Tykhe, do acaso), ou, ainda, pode depender de nós mesmos.

Ora, essa contingência da causa, porém, subtrai as condições para o sucesso absoluto da episteme humana. Preserva-se o papel do acontecimento, do incognoscível.

Maquiavel e Epicuro

Um acontecimento, afirma Epicuro (D. L., X, 133), pode surgir de uma causa necessária, a única que aceitam os deterministas, ou pode depender da fortuna (da tykhe, do acaso), ou pode depender de nós mesmos.

Lembro-me que, para Maquiavel, no cap. XXV do Príncipe, nossas ações são 50% determinadas pela fortuna, 50% por nosso governo. Ou seja, para Maquiavel, as coisas dependem do acaso ou de nós mesmos, ou parcialmente de um e de outro, mas nada é necessariamente. Embora, possa ser dito que Maquiavel estivesse tratando exclusivamente dos negócios humanos, por outro lado, é verdade, uma pedra cai necessariamente. E necessariamente, também, por exemplo, amamos aquele que imaginamos ser a causa de nossa alegria.

Episteme e ciência do ser humano

Tenho falado de episteme humana e não de ciência do ser humano para distinguir esse saber humano da forma positiva da ciência, tal qual a conhecemos atualmente. A episteme envolve, além dos critérios empíricos do positivismo, critérios de conhecimento puramente racionais, isto é, metafísicos.

O trágico e a episteme II

“...pois seria preferível seguir o mito, no tocante aos deuses, do que se submeter ao destino dos fisicistas: o primeiro, com efeito, esquiça a esperança de tornar flexíveis os deuses, ao honrá-los, enquanto o outro apresenta a inflexível necessidade”.

Epicuro, Carta a Meneceu, in: LAÉRCIO, Diógenes. Vida e doutrina dos filósofos ilustres. Livro X, §134.

Isso, como tudo, fica para ser pensado.

No fragmento, aparecem o elemento mítico e o fisicista, e não, pelo menos não expresamente, o trágico.

O trágico apresenta o divino surdo ao apelo humano. O deus absconditus, insondável e inflexível. Tudo no humano é pré-destinado, mas ele não é consciente disso.

A religião mítica, supersticiosa, do mundo encantado, abre os ouvidos dos deuses. Retira a cera. Os deuses passionais se encantam com o canto humano in gloriam dis. Isso deixa uma abertura para o humanismo, mais precisamente, para uma religião humanista. Os deuses em parte sondáveis são, porém, flexíveis. Os deuses concedem aos homens os meios de sua justificação. Mas tudo aqui pode ser superstição e medo.

Os fisicistas, no fragmento, representam a episteme humana, mas não emancipadora, que apresenta a necessidade do acontecimento como algo cognoscível, como evento. Deus, enquanto natureza (physis), é sondável, mas inflexível. O projeto humano deve flexionar-se. O humano resigna-se diante do dado. Pois o dado, o fato, é o divino. Os fisicistas, aqui, são os deterministas fatalistas. É a dissolução da situação trágica no fatalismo.

O trágico e a episteme

Confusão na alma humana, o trágico, muito simplesmente, é o lance de liberdade contra a necessidade; o embate do que gostaríamos que eventualmente acontecesse com o que acontece inevitavelmente; a discrepância do evento com o acontecimento.

O evento é o que compete ao humano, o previsível. O ideal projeto do humanismo. O projeto humano.

O acontecimento, embora necessário, é imprevisível, além do humano. É pertinente ao autodesdobramento do não-arbitrário, mas seu projeto é divino.

Do ponto de vista humano, o acontecimento é arbitrário, e o evento, justo. Do ponto de vista divino, o acontecimento é sempre justo, e o evento, simplesmente, não existe como tal.

A episteme humana torna previsíveis os acontecimentos, os eventualiza. Com isso, o acontecimento é como que domesticado, mas deixa de ser acontecimento e divino. A eventualização dos acontecimentos nos aparece como divinização da humanidade.

Apenas detalhes, ou não são?

Foto: Huynh Cong Ut


Para Hegel, história é a Grande História, a história dos Estados, dos vitoriosos, das suas guerras, dos seus grandes homens, que magistralmente passam o umbral do esquecimento para a “glória imortal”*.

O sujeito da história é a divindade encarnada nestes homens, que, através destas guerras, levam adiante, mesmo sem saber, inconscientemente, o plano da razão no mundo.

Todo o resto múltiplo, as minúcias, são desprezíveis; deve ser esquecido. Os meros adornos do progresso não merecem consideração histórica. O que importa são as transformações efetivas do espírito, a afirmação da razão acima do sofrimento dos indivíduos, simples meios da história.

Já Walter Benjamin enaltece o cronista, que conta toda a história, em todos os seus mínimos detalhes, minúcias, meandros intermináveis. Só assim o gesto da menina nua, que chora para sempre, adquire um sentido histórico**.

Para a história da menina da foto, ver: estadão.

* HEGEL, G. W. F. Principes de la philosophie du droit. Trad. Jean-François Kervégan. Paris: Quadrige / PUF, 2003 [1821]. §348, p. 435.

** Cf. a tese III de Walter Benjamin, Sobre o conceito de história.

Anotações sem fim

A informaçãoBLOG é uma anotação que compõe, também com sua decomposição, uma anotação sem fim. Não se sabe o que ela compõe; e o que ela informa não tem forma.

Mera camada posta sobre outra. Mas, com interpenetração. Com fusão. Com desaparecimento.

Um processo informador de seu processo de deformação.

Suicídio como contradição performática IV

Riobaldo, o filósofo, conta a história de Davidão, que, morto de medo de morrer, faz um pacto, garantido pelo Não-há, com Faustino.

Se, nos percalços e peripécias das batalhas, chegasse a vez derradeira de Davidão, seria Faustino que morreria em seu lugar. Para tanto, Davidão passava para Faustino, em avanço, algo como 10 mil contos.

Ocorreu que, depois de uns tempos, e com o recrudescimento das lutas, Faustino se arrepende do pactuado, quer desfazer tudo e devolver o dinheiro para Davidão.

Porém, para Davidão, pacto é pacto, tem que ser respeitado. Faustino não concorda, porque ele não quer mais isso. A discussão se acende e se aquece. Os dois lutam, primeiro com as palavras, depois com os corpos.

E vai nisso, cada vez pior, até que Faustino encontra o punhal e desafia de morte seu amigo.

Esse é o impasse de Faustino. Se mata, morre-se.

O punhal na mão de Faustino, empunhado. A ponta, a sua máxima ponta, tocando a pele do peito de Davidão, empurrando já ela para dentro. Mais um pouco, e o ataque de Faustino entra em contradição performartiva.

Isso é o suicídio.


Riobaldo, apud ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. P. 85.

O que é a filosofia, segundo Riobaldo

“Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai adiante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!

Sendo isso. Ao dôido, doideras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção”.


Riobaldo, apud ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. P. 100.

Secularismo político

"There's a call for political secularism emerging in Iran"
Behzad Yaghmaiam, Iranian author, fonte: Al Jazeera

Essa reivindicação por secularismo político surpreende. Parece inverter o que se reivindicava 30 anos antes: a espiritualidade política.

Logo, talvez seja preferível o Irã não voltar atrás. Mas ir adiante na transformação da política.

Suicídio como contradição performática III

Acontece que, para Spinoza, não há sujeito existente que não imagine.

Entendamos o sujeito, aqui, o mais tradicionalmente, como aquilo que é a causa própria de suas ações, e que é consciente de si (apenas não consideramos o terceiro critério da tradição, o sujeito que é substância, subsistente por si mesmo ou causa de si mesmo).

A imaginação e a paixão fazem parte da existência, da vida, dos encontros, do percurso, sempre também à revelia do sujeito.

Somente, ao imaginar, ao se apaixonar, ao se afetar, ao esbarrar, ao encontrar e conhecer os entes do mundo, o sujeito toma consciência de si mesmo, como existente, como ente-aí, entre outros.

Suicídio como contradição performática II

Muitas vezes, resta um testemunho. Como este, que se indica aqui.

Então, se aí já não fala o sujeito mesmo, seria preciso lê-lo como um documento da imaginação, da potência imaginativa.

Suicídio como contradição performática

Para Spinoza, o suicídio não é só uma contradição performática, um ato que nega a si mesmo, é mais, é uma impossibilidade ontológica, não pode se dar, não acontece, não é.

Como poderia uma potência que só quer se afirmar, só quer saber de se afirmar, negar-se na sua ação, ser a causa mesma, afirmativa, da sua própria negação? Impossível. Logicamente e ontologicamente.

Ora, de fato, acontece que as pessoas se matam.

Então, ou somos também uma potência negativa, o que é impensável na ontologia afirmativa de Spinoza, ou não somos, propriamente, adequadamente, a causa mesma de nossa negação.

No suicídio, portanto, a causa mesma envolve outra coisa além do suicida. Isso é, a sua paixão, a paixão pela qual é tomado.

O sujeito apaixonado já não é mais totalmente o sujeito, a causa própria de seus efeitos. Ele continua sendo causa de suas ações, mas apenas parcialmente. A outra parte compete à paixão, às paixões.

A paixão possui uma dinâmica própria, um conatus próprio, um desejo próprio de persistência, de afirmação, de desdobramentos, de efeitos. Ela é como um indivíduo, mas parasita. No sujeito, ela já é um fora.

A paixão envolve a potência do seu substrato, do sujeito apaixonado, mas enquanto a costura, em seu vórtice de paixão, com uma potência ou a marca de uma potência alheia. No eu, ela é já um outro.

4 minaretes na Suíça



O democrático pressupõe a liberdade de expressão, desde que a expressão não ameace a própria democracia.

Não se pode dizer, racionalmente, que o Islam, de modo geral, seja uma ameaça à democracia. Muito pelo contrário, é a possibilidade de uma decisão como esta – a de banir constitucionalmente a construção de minaretes – que a ameaça.

Se a democracia não é acompanhada da liberdade de expressão, torna-se instrumento do irracional, então, não é mais necessária a democracia.

Leia-se o artigo no Al Jazeera.

O voto: um comportamento, duas atitudes (V)

O paradoxo da democracia liberal reside na forma da participação de cada um (não falo de participação popular, pois ela não se exerce por um povo, na sua unidade, mas por indivíduos particulares) ou, mais apropriadamente, na coexistência de duas destas formas.

O conteúdo da participação é principalmente o voto – mas deixo isso de lado.

Quanto à forma, já vimos, existe a contradição relativamente a dois tipos de participação (ou voto).

Na primeira, o indivíduo vota segundo sua consideração a respeito do que seja o interesse geral; vota pensando em todos, orientado para o todo; segundo aquilo que considera ser universalmente válido. Votar, então, segundo esse que seria o voto em si.

Na segunda, o indivíduo vota segundo sua consideração do seu interesse particular; vota pensando na parte; vota com fidelidade à parcela, à fração da sociedade à qual julga pertencer, ao partido.

Se as duas formas persistem, mantêm-se simultaneamente, há contradição.

De modo absoluto, a primeira forma é incompatível com a disposição política interna promovida pela democracia liberal, que ensina a cada um a pensar para si.

Se apenas a segunda forma persistisse, uma tendência seria a dominação da parte maior ou da parte mais influente, ou seja, daquela parcela que pode se mostrar como sendo a universal.

Entretanto, segundo a configuração das coisas e a disposição dos sujeitos correlativa, essa dominação da parte maior não se estabiliza, justamente porque a parte maior não é sempre a mesma, mas está continuamente variando.

No seu voto, feito para si, o indivíduo, em sua multiplicidade subjetiva, ora pertence à minoria ora à maioria. A parte maior é sempre constituída por indivíduos e disposições diferentes. A parte maior não é nunca a mesma, mas se orienta e se configura segundo fórmulas sempre díspares.

Isso resulta do pluralismo não só de indivíduos, mas no pluralismo interno à subjetividade. Um mesmo e único indivíduo é, ao mesmo tempo, por exemplo, homem, fumante, esportista, empresário, católico, homossexual, pró-aborto, etc. Sendo que estas variáveis são independentes entre si, ou seja, a presença de uma não exige a de uma outra. Ele não apenas vota para si, mas vota segundo alguma de suas determinações, aquela que numa situação específica se faz valer. O si não é uma unidade homogênea e coerente.

Se o indivíduo contém em si mesmo uma pluralidade, que eventualmente se põe em conflito consigo mesmo, então o que não será da coletividade feita de tais indivíduos?

Disso (dessa inconstância e variação da parte maior) segue-se que o sistema objetivo dessa totalidade não pode ser homogêneo nem coerente.

Citações

Vou publicar um livro. Hesitei muito antes de me decidir a publicá-lo. Pois, como diz X:
"Um livro é um objeto misterioso, e uma vez que levanta voo, qualquer coisa pode acontecer. Toda espécie de injúrias podem ser cometidas, e nada que possa ser feito a respeito disso. Para o melhor e para o pior, ele escapa completamente ao seu controle".
Texto retirado de: AUSTER, Paul. Léviathan. Trad. Christine Le Boeuf. Actes Sud: Paris, 1993. P. 15.

Mas quem será X, o verdadeiro autor do enunciado?

Algumas possibilidades: Paul Auster, seu personagem Peter Aaron, a tradutora Christine, o impressor que o "recopia"sobre o papel, eu mesmo? Se o livro escapa ao autor, que já não tem controle sobre nada? Se o que se escreve é um lugar comum? Uma cópia de outra cópia (como indicava Platão acerca da arte)?

Vibrações III

Sobre a fraqueza e a potência:

(1) "[...] sob quais dores tinha ele haurido esta força de deus, esta potência ilimitada de criar?”*.

(2) “As naturezas degenerativas [desviantes] são sempre de elevada importância, quando deve ocorrer um progresso. Em geral, todo progresso tem que ser precedido de um debilitamento parcial. As naturezas mais fortes conservam o tipo, as mais fracas ajudam a desenvolvê-lo”**.


(*) PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu: Du côté de chez Swann. Paris: Booking International, 1993 [1912]. P. 361.

(**) NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1878]. Aforisma 224.

Vibrações II

A respeito da definição do moralista:

(1) "Invejoso malvado (vilain jaloux) que quer privar os outros de um prazer"*.

(2) "Quero voltar-me, agora, àqueles que preferem vilipendiar ou rir dos afetos e ações dos homens, mais do que entendê-los"**.



(*) PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu: Du côté de chez Swann. Paris: Booking International, 1993 [1912]. P. 379.

(**) e3pref. Spinoza. Ética.

Vibrações I

Não se trata daquelas proximidades notáveis de que falava, mas de harmônicos próximos no timbre.

(1) "Pois o que nós cremos nosso amor, nosso ciúme, não é uma mesma paixão contínua, indivisível. Eles se compõem de uma infinidade de amores sucessivos, de ciúmes diferentes e que são efêmeros, mas por sua multiplicidade ininterrupta dão a impressão da continuidade, a ilusão da unidade"*.

(2) "De alegria, de tristeza, de desejo e consequentemente de cada afeto composto a partir destes, como de flutuação do ânimo, ou destes derivado, a saber: de amor, de ódio, de esperança, de medo etc. são dadas tantas espécies, quantas são as espécies de objetos, pelos quais somos afetados"**.


(*) "Car ce que nous croyons notre amour, notre jalousie, n'est pas une même passion continue, indivisible. Ils se composent d'une infinité d'amours successifs, de jalousies différentes et qui sont éphémères, mais par leur multitude ininterrompue donnent l'impression de la continuité, l'illusion de l'unité".

PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu: Du côté de chez Swann. Paris: Booking International, 1993 [1912]. P. 384.

(**) e3p56. Spinoza. Ética.

Assembléia de Deus

Numa assembléia de potências imediatas, quando a palavra passa, ou é tomada, faz-se o silêncio atentivo, como se, em cada elemento dessa reunião, se manifestasse, pela palavra, um modo da verdade; como se a potência da palavra fosse contínua, apenas emergisse de uma fonte diferente, sob outro aspecto, com a passagem.

É preciso mudar nossa ideia de paz

Obama, Prêmio Nobel da Paz, como pode? Como compreender isso? É pelo menos curioso – em nada, por si, evidente – essa ideia de que o representante do império da capacidade de destruição de boa parte do todo possa representar nossa ideia de paz.

Porém, vemos nisso uma não-evidência apenas porque não questionamos a evidência da nossa ideia de paz, e não tomamos como certo o fato de que é preciso distingui-la da ideia Nobel da Paz.

Seria um engano alcançar o repouso da compreensão, figurando-se que o Prêmio foi atribuído a Obama apenas como pessoa. Pois, se não fosse o representante do império da capacidade da guerra e, portanto, da guerra, Obama, pessoalmente, não seria o representante da Paz. O caminho da compreensão precisa ser outro – é preciso mudar nossa ideia de paz pela ideia Nobel da Paz.

É preciso conceber que esta Paz envolve a guerra, que esta Paz não só é continuação e efeito da guerra, como também a guerra é continuação e efeito desta Paz.

“Para a Paz Perpétua – Se esta inscrição satírica na tabuleta de um estalajadeiro holandês, sobre a qual estava pintado um cemitério, tinha por objeto os homens em geral, ou particularmente os chefes de Estado, que nunca ficam saciados de guerra, ou então apenas os filósofos, que sonhem esse doce sonho, não nos cabe decidir”. KANT, Immanuel. Para a Paz Perpétua. Trad. J. Guinsburg. In: GUINSBURG, J. (Orgs.). A paz perpétua: um projeto para hoje. São Paulo: Perspectiva, 2004. Pp. 31-87.

Quando falamos de dinheiro

O dinheiro nos aparece como o mais evidente. Quando chegamos a esse assunto, é como se não houvesse mais dúvidas. Aí, tudo é clareza e evidência (portanto índice de divindade), e nós nos entendemos. Necessariamente, sabemos do que se trata. Nossas opiniões se ajustam perfeitamente, sem espaço para interpretações divergentes.

O dinheiro parece ser o solo a partir do qual podemos imaginar nossa comunidade.

Entretanto, novamente, temos um exemplo do problema filosófico da inversão entre a causa e o efeito. Pois, metafisicamente, o dinheiro não é causa, como parece e aparece, da comunidade, mas antes apenas um efeito desta última.

Tudo já foi dito

Tudo já foi dito? Certamente que não! O "a-dizer" é ilimitado.
Porém, quanto do que se diz de novo vale a pena ser ouvido?

Já se escreveu tanto, e bem, que talvez não seja necessário ler mais nada de novo, sem ter lido antes o que já foi escrito sobre o que interessa (o que não quer dizer que o novo seja impossível).

Bastaria, então, nos limitarmos à fala já bem falada, sem nos preocuparmos com ouvir o que está sendo dito.

Prova de que isto é realmente assim são os professores, que resguardam suas aulas e alunos, como seu feudo privado, apenas para serem ouvidos por alguém.

O eu e o seu

– Que lindo "Beauvais", disse Swann, antes de se sentar, buscando ser amável.
– Ah! Fico contente que você aprecie meu canapé, respondeu a senhora Verdurin.

Curioso o fato de nos sentirmos intimamente louvados, quando alguém faz um elogio a alguma de nossas posses, como se fizesse um elogio diretamente a nós mesmos.

Assim, sentem-se bem, como se deles próprios se tratasse, os donos de animais domésticos que recebem uma palavra de admiração de um passante qualquer. Os pais, quando alguém mostra simpatia por um filho seu.

Prova de que nosso eu se estende para além de nosso corpo e para além daquilo que deriva diretamente dele e como que inunda o que considera ser seu.

Saco sem fundo (definitio sui)











Um saco sem fundo é um biruta.



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O verdadeiro Deus

Os racionalistas se afirmaram contra a superstição. Disseram aos supersticiosos: _ vocês possuem a opinião da religião de que Deus é isso ou aquilo, mas na verdade Deus é necessidade, eternidade e infinitude.

Entretanto essa afirmação, que se faz contra alguma coisa, faz com que os racionalistas, de certo modo, aceitem a superstição, como uma projeção confusa da verdade sobre o plano do conhecimento próprio à imaginação e à opinião – o único gênero de conhecimento a que pode aceder o ignorante.

O sábio aceita a superstição como uma espécie de sabedoria para ignorantes. Apesar de confusa, a religião, sendo uma vulgarização da metafísica, conduz, pelos caminhos da confusão, o ignorante a crer em Deus e a agir conforme essa fé, o que pode, dentro de certos limites, convergir com o agir racional.

Também podemos, por outro lado, pensar invertidamente essa relação entre a ideia confusa de Deus e a verdadeira.

Então, seriam os supersticiosos que aceitariam a metafísica, como uma projeção sobre o plano da razão das verdades da religião. Nessa inversão, é o supersticioso que aceita a metafísica como uma espécie de religião para incrédulos. Apesar de falsa em seus princípios, a metafísica, sendo uma humanização da religião, conduz, pelos caminhos da confusão, o sábio a conhecer a Deus e a agir a partir desse conhecimento, o que pode, dentro de certos limites, estar conforme com a prática religiosa.

Sábios metafísicos e religiosos estão encerrados na mesma grade arqueológica. Em uma outra grade está o fim da metafísica e a morte de Deus.

Definição de si (definitio sui) como saco sem fundo

O saco sem fundo não acumula nada de tudo o que se põe ali – é passagem.
Como não deixa de ser saco, sendo sem fundo, nega que sua essência se defina por sua função, causa final, utilidade – ensacar, acumular. Não está aí para a lógica da acumulação.

Minha alma ou mente é um saco sem fundo, por ela passam as ideias,
sem delas ela nada reter, senão a ideia de meu corpo.

É no meu ser corpo entre os corpos que se mostra o passar das ideias,
não no aprofundamento da minha alma.

Acerca da história _ rebatimentos

Na sua variação: vemos a repetição do mesmo, o invariante.
No rejuvenescimento do espírito: vemos o embotamento, a lassidão.
Na efetuação da razão: o puro irracional, a barbárie.

Na ipseidade: a abundância de singularidades, a infinitude.
Na lassidão: a ilusão do tempo, a eternidade.
No irracional: a própria justiça dos acontecimentos, a necessidade.

CONSCIÊNCIA = (PENSAR ≠ SER)

A consciência {essa ideia de uma massa de mente isolada do ser, constituinte do mundo, cujas janelas são os olhos} surge, como tal, quando o PENSAR deixa de ser igual ao SER.

Infans, puer, liberi

Não que os latinos considerassem toda infância como um período quase-não-humano ou pré-humano.

Infans
quer bem dizer o que é incapaz de falar. Mas designa apenas la toute petite enfance, o bebê, o estado de larva, do qual o humano pleno poderia ser dito tanto uma determinação, como um aperfeiçoamento.

Há outro termo para designar o que nós chamamos de criança, puer, que também significa escravo, servo – que poderia ser dito o menor; este já é falante, lhe falta apenas a liberdade.

Liberi, por sua vez, usado só no plural, são os filhos de pais livres, independentemente da idade.

Sobre o amor que tem como causa a liberdade

e4cap19
Além disso, o amor de meretriz, isto é, pela libido gerado, que se origina a partir da forma [do corpo], e absolutamente todo amor, que reconhece outra causa salvo a liberdade do ânimo, facilmente passa ao ódio, a não ser que, o que é pior, seja uma espécie de delírio, e então mais discórdia do que concórdia é atiçada.

e4cap20
Ao que se atém ao matrimônio, é certo o próprio convir com a razão, se o desejo de misturar os corpos é gerado não a partir da forma [do corpo] sozinha, mas também do amor de procriar e educar sabiamente os filhos; e se, mais ainda, um e outro, a saber, o homem e a mulher, tem como causa do amor não a forma sozinha, mas principalmente a liberdade do ânimo.


Spinoza escreve isso nos anos 1670.
Traduzi diretamente do latim. Ao tentar manter ao máximo seu estilo, o português parece um pouco truncado.

Sabedoria popular

_ Por trás de todo grande homem, está uma mulher.

Talvez seja verdade. No caso de Sócrates, há a horrorosa Xantipa, cujo horror empurrava o grande homem para as ruas, onde ele devia realizar, inconscientemente, o seu destino, como uma tarefa.

Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1878]. Aforisma 433.

Recusa do pastorado

Quando os pastores "remonstrantes" (e não importa muito, aqui, o que esse pastorado significa, especificamente, pois falamos em geral), foram expulsos da Holanda, em 1619, depois do Sínodo de Dordrecht, algumas comunidades, primeiro no vilarejo de Warmond, continuaram reunindo-se em assembleias religiosas privadas, mas sem pastor.

Essas assembleias foram chamadas de "colégios". Os princípios dessas reuniões eram, basicamente, os seguintes: direito à palavra igual a todos os participantes e absoluta tolerância à participação de qualquer tipo de crente, inclusive não-cristãos. Após a leitura de trechos do Novo Testamento e da locução de rezas, a sessão era aberta a comentários.

Quando, um pouco mais tarde, os pastores retornaram, clandestinamente, às suas comunidades, para reassumir suas antigas funções, foram rechaçados pelos colegiantes, que haviam tomado o gosto da autonomia, e não queriam mais pastores orientando suas assembleias, retendo só para si o direito à palavra.

A justificativa bíblica, para sua recusa do pastorado, aparece na Epístola aos Tessaloniences: "Quem não trabalha, não come" (2Tes 3:10).

A recusa do pastorado vai de par com a de se sustentar uma casta que não opera.

Cf. KOLAKOWSKI, Leszek. Chrétiens sans église. Trad. Anna Posner. Paris: Gallimard, 1987 [1965]. Pp. 168-169.

A ideia de Deus em nós

O que é, em nós, a ideia de Deus, senão o correlato mental, o aspecto pensante, da nossa própria potência atuante, na medida em que a concebemos como uma expressão, um modo, da potência divina?

O cachorro é o cachorro do cachorro

“O cachorro é o cachorro do cachorro” – proposição (como um axioma) evidente por si mesma. Basta observar, ou pensar, dois cachorros juntos.

Uma segunda proposição, que se assemelha a do título, porém, é mais problemática.

Freud chega ao Homo homini lupus (humano é o lobo do humano), ao comentar a máxima: “ame o próximo como a ti mesmo” (que Spinoza indica ser o fundamento de todas as religiões). Máxima que ele, Freud, considera totalmente irrazoável, um “credo quia absurdum” (creio porque é absurdo).

O amor eventualmente une, diz Freud, desde que ainda permaneçam, para estes que se uniram, os motivos para odiar, algum bode-expiatório comum de uma agressividade instintiva e inexorável. O amor une, é certo, mas não pode unir universalmente*.

Para Spinoza, na política, a reflexão social daquela máxima religiosa culmina na justiça e na caridade (como formas objetivas daquela máxima _ como “obras”). Essas obras não exigem o correlato interno do amor ao próximo, mas apenas a fé em Deus, como determinação subjetiva para a justiça e para a caridade sociais. Spinoza contorna a questão da possibilidade da universalização do amor ao próximo, privilegiando o amor para com Deus, a substância única, cuja ideia está presente em todos.


* FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1997 [1930]. Cap. V, p. 63 ss.

28

Dado o amor pela riqueza, não pode ocorrer, ao mesmo tempo, a fé.

O atéismo de Spinoza III

Nietzsche, absolutamente, não era tomado de amor pela riqueza, mas era ateu.

No que Spinoza disse, leia-se:
– a negligência da riqueza (acompanhada de uma alegria imediata, isto é, a alegria mesma sem a ideia da própria negligência, isso seria o orgulho, nem de qualquer outra causa alheia) é sinal de fé –.
Vai-se disso a uma conclusão menor, porém, incondicionada:
– dado o amor pela riqueza, não pode ocorrer, ao mesmo tempo, a fé,
com a implicação (corolário) seguinte:
– dada a negligência da riqueza, não se dá necessariamente a fé,
pois a negligência da riqueza está condicionada a um tipo certo de alegria.
Este corolário se aplicaria a Nietzsche.

E tudo isso está perfeitamente conforme com o dito do Sermão da Montanha (Mt 6:24):
– "ninguém pode servir a dois senhores. [...] Vocês não podem servir a Deus e às riquezas".

O atéismo de Spinoza II

Se a pudesse comprovar, Venthuysen aceitaria, sem pestanejar, a justificativa que deu Spinoza, ao se defender da acusação de ateísmo:
“Costumam, com efeito, os ateus buscar exageradamente as honras e riquezas, duas coisas que eu sempre negligenciei; como todos, os que me conhecem, sabem”.
Pois, certamente, Venthuysen conhecia de cor o Sermão da Montanha (Mt 6:24):
"Ninguém pode servir a dois senhores. [...] Vocês não podem servir a Deus e às riquezas".
Um versículo dessa mesma passagem do Sermão aparece no primeiro parágrafo do Prólogo à Genealogia da Moral (Mt 6:21):
"Onde está o seu tesouro, aí estará também o seu coração".
Aqui, Nietzsche, também põe em jogo a impossibilidade da duplassubmissão, a impossibilidade de dirigir sua energia própria, simultaneamente, a dois mestres. A questão é, para Nietzsche: ou nos submetemos ao conhecimento das coisas, de Deus, ou nos submetemos ao conhecimento de nós mesmos.

A mesma arma, Spinoza usa-a para se defender da acusação de ateísmo, e Nietzsche para atacar em prol de seu ateísmo convicto.

O atéismo de Spinoza

Spinoza para se defender das contínuas acusações de ateísmo, geralmente, dava respostas abertas, como esta:
Componho atualmente um tratado [...] e meus motivos, para fazê-lo, são os seguintes: [...] a opinião que tem de mim o vulgo, que não cessa de me acusar de ateísmo”*.
Para refutar seu ateísmo, Spinoza escreve todo um tratado (o Theologico-politicus), que versa sobre o modo, para ele, correto de considerar a Deus, a religião, a piedade. Isso é o que chamei de resposta aberta, por sua forma dispersa.

Entretanto, em uma ocasião, pelo menos, a sua defesa é muito mais direta e pontual. Essa ocasião singular mereceu ser destacada, aos olhos iniciados e amigos dos editores de sua obra póstuma, no índice dos assuntos (index rerum) da edição de 1677, sob o verbete athei. A indicação refere à carta em que Spinoza responde à resenha feita, por um tal de Lambert von Velthuysen, justamente, do Tractatus theologico-politicus.

Para Velthuysen, o TTPclam Atheismus introducit”, insinua sub-repticiamente o ateísmo. Ou seja, a julgar pela compreensão de Velthuysen, ao menos no tocante a este assunto, o referido tratado não havia alcançado os objetivos inicialmente visados por Spinoza, que ainda precisava se defender da mesma acusação que o levara a escrever o TTP.

Então, a resposta que dá Spinoza é mais precisa:
“Costumam, com efeito, os ateus buscar exageradamente as honras e riquezas, duas coisas que eu sempre negligenciei; como todos, os que me conhecem, sabem” (**).
A prova que Spinoza apresenta contra a acusação de ateísmo é o fato de ele negligenciar as honras e riquezas, e não o fato, por exemplo, de ele afirmar a existência de Deus, como ele efetivamente faz, em vários lugares determinados do TTP. De que significado essa resposta é significante? Vejamos.

Como Spinoza escreve no TTP, cap. XIV, a fé em Deus não é do foro íntimo. A fé não se julga apenas pela fala interna que afirma, diante da própria consciência, eu acredito em Deus. Mas a fé é como um ato de fala, ou seja, uma fala que precisa estar conjugada com uma obra, com uma ação que concorre com a fala, assim como, na geometria, a propriedade dos três ângulos somarem dois retos vincula-se necessariamente à definição do triângulo.

Essa negligência das honras e riquezas é uma espécie de obra, de manifestação objetiva da afirmação interior e convicta da existência de Deus, da fé. Spinoza, mais uma vez, está dizendo não bastar ter fé, para obedecer a Deus, mas ser preciso também obrar. A obra que ele apresenta, como testemunho objetivo de sua fé, é a negligência das honras e riquezas.

Por outro lado, aliás, Spinoza diz não bastar obrar, para ser salvo. – Ora, não basta apenas negligenciar as honras, as riquezas, mas também é preciso que isso seja feito por obediência a Deus, por fé, por acreditar na existência de Deus. Dito de outro modo, é preciso que esta negligência seja uma ação, e não uma paixão. Não negligenciar honras e riquezas por temer não as possuir, ou para rebaixar quem as possui. Mas as negligenciar, por entender, racionalmente, que nem honras nem riquezas constituem o verdadeiro bem, ou – numa versão menos intelectual – por amor para com Deus. É preciso negligenciar as honras e riquezas, diante de Deus. Esse é o ato de fala, essa é a prova que Spinoza oferece para se defender da acusação de ateísmo.

Esse ato (a negligência das honras e riquezas) de fala (eu acredito em Deus) coloca em questão muitos dos que se dizem fiéis: aqueles que, embora se digam fiéis, de fato, não negligenciam, mas admiram as honras e riquezas, como muitos dos mais veementes teólogos.

Com seu dito, Spinoza inverte o objeto da acusação. Veja, Venthuysen, os que se dizem fiéis, dizem seguir os preceitos da religião, mas, na verdade, o que consideram como sumo bem, o que mais admiram, o que mais desejam, sem qualquer penitência, são as honras e as riquezas, e, com isso, negligenciam ao Deus, no qual dizem acreditar. Esses são os verdadeiros ateus, os verdadeiramente perdidos***.



(*) Na tradução de Appuhn: carta XXX a Oldenburg. Essa carta não consta da Opera Posthuma.

(**) Opera Posthuma, 1677. Carta XLIX, p. 553. Conferir, na tradução de Appuhn, a carta XLIII.

(***) No início do Tractatus de Intellectus Emendatione, Spinoza elenca três bens que os humanos consideram supremos: além das honras e das riquezas, a licenciosidade (libido) – a satisfação sem freios da volúpia ou desejos sensuais. Mas Spinoza distingue a licenciosidade, porque esta, ao contrário das outras duas, vem sempre acompanhada, naturalmente, da penitência.

Tempo perdido

Tempo perdido: dois sentidos.

(1) O tempo que se perde, tempo sem utilidade, jogado fora, que não serve para nada, do qual não fazemos uso para aumentar nossa potência.

(2) Independentemente da utilidade, o tempo que se perdeu, que não volta mais, senão por meio de uma busca sempre incerta de si mesma, porque talvez essa busca não o reencontra, o tempo perdido, mas apenas o recria.

No primeiro sentido, é um tempo presente, no segundo, um passado.

Isso se diz, também, acerca do dito artístico, que cito de memória: não perca tempo; não, perca tempo!

Crise

Há uma crise, embora ela seja de natureza diversa daquela que se anuncia. Fala-se de uma crise que seria como uma negação. Mas, se é uma crise – e de fato uma crise é –, ela deve agir positivamente, isto é, no positivo. Há uma crise de produção mental, não de desprodução. De aquecimento, não de desaquecimento material.

Portanto, devemos agir também no positivo.

Se há tanto desemprego na economia, é porque, como um todo, não precisamos de mais produção material, e podemos nos empregar com outra coisa.

Entender a economia como ela é, uma utilidade, não um fim em si mesma.

Proximidades notáveis III























Um ínfimo e quase imperceptível desvio, na gênese de um caminho, frequentemente, nos conduz a um lugar completamente distante, senão oposto, daquele que poderíamos esperar, ao considerarmos apenas a nossa direção inicial.

{de A vai-se indo para B ou para C}

Disso, tira-se a seguinte lição:
quando são dados dois resultados que consideramos opostos entre si, por exemplo, como são opostos algo de bom e algo de mau, não devemos procurar, para explicá-los, duas causas necessariamente opostas entre si. Pois a causa de um efeito, talvez, possa ser explicada por um desvio ínfimo em relação ao desdobramento da causa do efeito oposto.

{dados B e C, eventualmente retornar ao mesmo A}

O olhar do outro

Um outro é mais perspicaz e claro do que nós mesmos, a respeito daquilo que nós mesmos somos, sempre sob o olhar do outro.

Isto é, um outro, comparado a nós mesmos, é mais capaz de expor ao olhar de um outro aquilo que o outro, por si mesmo, perceberia de nós. Seja porque não nos enxergamos, seja porque padecemos da tendência a nos superestimar.

Assim, por exemplo, torna-se compreensível o que há de dissimilar entre o retrato que a irmã de Pascal faz de Pascal e o que o próprio Pascal descreve de seus pensamentos.

Figuras do pato-lebre





A nossa mais profunda transformação de nós mesmos, hoje, como sempre, não seria a de nos engajarmos como seres humanos efetivamente políticos? Como políticos, já o somos, em sendo; mas, o somos efetivamente?

Essa transformação, como qualquer outra, na medida em que é uma autotransformação, não nos conduz a nada além do que já somos, mas somente ao que já somos, porém, sob outro aspecto.

Mecanismos afetivos VII: afeto e conhecimento

O desejo, frequentemente, nos conduz do juízo singular ao juízo genérico.

'Este cachorro morde', 'esta rosa é bela', 'este homem é mau' transformam-se, pelos fluxos internos e externos que agitam nosso desejo, em 'cães mordem', 'rosas e até mesmo todas as flores são belas', 'eles são maus'.

No âmbito dos fatos, essa transformação leva a falsas inferências. No dos valores, a preconceitos.

Mas ainda, essas transformações não estão, em nós, dissociadas de uma passagem afetiva, associada ora à alegria, ora à tristeza.

Undae maris undarum, mare undarum maris

Nós, da mesma maneira que ondas do mar agitadas por ventos contrários, "...nos perinde ut maris undae a contrariis ventis agitatae"*.

O genitivo oscila, flutua de um a outro termo. Como nós e nossas correntes submetidas aos ventos, sujeito e predicado flutuam. Ondas do mar de ondas. Ondas do mar das ondas. Ondas de mar de ondas. Mar de ondas de um mar.

Nota biográfica:
No passado, foi o Mare Undarum que nos trouxe à terra. Você se lembra?



* Spinoza. Ethica. E3p59s.

Mecanismos afetivos VI: amar é... (um serviço público, em nome de todas as pequenas injustiças que eu...)

“Amar alguém é, com efeito, de uma parte, aspirar que o estado de alegria associado a este afeto se mantenha indefinidamente; é também buscar a presença da coisa amada, de maneira a retirar dela o que nos agrada; e ainda, é dar prazer à pessoa à qual estamos vinculados, a fim de obter dela, proporcionalmente, as satisfações que estimamos merecer em troca do amor que lhe dirigimos: e, então, é aspirar a ser amado por ela, em retorno”*.

(*) MACHEREY , Pierre . Introduction à l’Ethique de Spinoza: La troisième partie; La vie affective. 2 ed. Paris: PUF, 1998 [1995]. P. 274.

Mecanismos afetivos V: vida afetiva e desejo

Note-se que na origem de todos os sentimentos está o desejo de afirmar o seu próprio ser.

Até mesmo, na origem dos sentimentos comumente considerados os mais altruístas e nobres, como o amor, a compaixão, a humildade, a humanidade, a benevolência, a misericórdia etc., está o desejo, que não tem outra finalidade senão ele próprio.

Isso contextualiza o valor do amor, mas também aquele do ódio e de seus derivados, como a inveja, a ira, a crueldade.

Toda a nossa vida afetiva é fruto da imaginação, que converte o desejo de ser em sentimentos. Isso não quer dizer, de maneira alguma, que a vida afetiva seja irreal.

Mecanismos afetivos IV: desejo de viver

O desejo de viver não se reduz ao medo da morte, que é apenas um de seus aspectos mais impotentes ou imbecis (sem atribuir a isso qualquer etiqueta pejorativa).

Para não morrer, o mais indicado seria não viver. Portanto, se o desejo de viver fosse simplesmente o desejo de não morrer, seria um desejo que negaria a si mesmo. Esse paradoxo já conhecíamos.

É preciso perceber, no desejo de viver, seus aspectos afirmativos. O desejo de vida é desejo de expressar, em efeitos múltiplos, seu próprio ser como causa. Para tanto, afirmamos, odiamos e favorecemos tudo o que conduz a tal expressão, e negamos, amamos e desejamos destruir tudo o que a impede.

Proximidades notáveis II

O império da imprensa, mundial e instantâneo, mostra enchentes na Indonésia de maneira tal que nos sentimos tão próximos desses acontecimentos como dos acontecimentos do Vale do Itajaí.

Assim, Jacarta nos aparece tão perto quanto Itajaí, mas também, Itajaí, tão distante quanto Jacarta.

Mecanismos afetivos III: alegria em meio ao desespero

Patrick Rodrigues/AG RBS. Fonte: Agência Estado.

A imagem à qual faço referência, aqui, não é exatamente essa, nem foi registrada pelo mesmo fotógrafo, mas trata do mesmo acontecimento. Pode ser vista neste link. Ela foi reimpressa, no Le Monde Diplomatique – Brasil, em julho de 2009, em matéria sobre o custo ambiental (há uma grande destruição em curso e, mesmo assim, sento-me e tomo o tempo de escrever).

Na impressão do Le Monde, aparecem pessoas com água até o peito, em meio a uma miríade de mercadorias, cada um empurrando sua palete de madeira flutuante, sobre a qual coloca os itens de sua escolha pessoal, que recolheu das águas.

Interessa-me, nessa foto, o sorriso de felicidade estampado no rosto do homem, no centro da foto. Nosso mecanismo afetivo é de tal complexidade, que pode, eventualmente, produzir alegria, mesmo quando não sabemos o que fazer com ela.

27

A devastação das coisas da natureza se acompanha sempre da devastação da natureza das coisas.

Mecanismos afetivos II: de pessoas a coisas e vice-versa

Nossa relação com um outro ser mantém-se, como relação interpessoal, até o ponto em que o contemplamos como ser humano e não como mera coisa.

Por outro lado, passamos a ter uma relação interpessoal com a mera coisa, a partir do instante em que a contemplamos, sob algum aspecto, com alguma semelhança com o humano, ou seja, com alguma semelhança com nós mesmos.

O uso absoluto da coisa (a dominação e a violência absolutas) só parece ser afetivamente possível se o usuário considera a coisa usada como absolutamente alheia à sua própria natureza.

A experiência mostra (tanto na relação a humanos, como na relação às outras coisas da natureza) que essa redução da consideração à mera coisa se realiza muitas vezes, como comprovam os homicídios não passionais e sem má-consciência, os genocídios e as devastações das coisas da natureza.

Mecanismos afetivos: alegria no ódio

O ódio é um tipo de tristeza. Entretanto, odiar também pode alegrar, se quem odeia percebe, ou apenas imagina, que a pessoa odiada, por alguma razão, se entristece.

Cerebrizar

É preciso discernir quando um cérebro se posiciona como filósofo, ou seja, como causa para o pensamento, e quando um cérebro se posiciona como comentador, como meio para o pensamento.

Assim, num certo aspecto, um filósofo muitas vezes cerebriza como simples comentador.

Da certeza dessa informação

Como tudo em nossa existência, a certeza da informaçãoBLOG é parcial.
Um terceiro, entre isto e não-isto, não é excluído, por princípio.
Parcial, nesse uso, quer dizer mutilado.

Todos somos indivíduos

O indivíduo é um acontecimento maravilhoso.
Infelizmente, a individualização tem sido o melhor instrumento para a totalização.

Proximidades notáveis

Dois pontos próximos, ao longe, tendem a se tornar só um. Assim, condensa-se num oceano a multiplicidade de gotas; num ponto luminoso do céu, a complexidade de uma galáxia.

Mas o que falar da proximidade de Platão e Aristóteles ou da proximidade de Descartes e Spinoza, dessa proximidade que é como uma ruptura inicial num tecido estendido e tensionado, que se configura, a seguir, numa fenda absoluta?