Existe uma dubiedade no exercício da democracia participativa, quando a expressão dessa participação é o voto.
O comportamento do voto é o mesmo para todos os que exercem essa forma de participação política. Objetivamente, o votar é a manifestação de uma escolha pessoal, que ao menos em potencial vale para toda a comunidade dos votantes. Uma vontade particular de fazer valer-se como vontade comum. Esse comportamento, ao que parece, encobre duas atitudes diferentes, quer dizer, dois posicionamentos, duas compreensões, duas interpretações, digamos, subjetivas desse fato do votar.
O primeiro tipo de votante vota segundo seu interesse particular; entre as alternativas dispostas, opta por aquela que mais lhe parece pessoalmente favorável, ou pela que é mais favorável à categoria social, ao grupo, a que acredita pertencer. O segundo tipo de votante vota segundo aquilo que, de acordo com seu julgamento, deve valer para o todo da comunidade. O primeiro tipo, ao decidir-se, pensa a partir de uma parte; o segundo, conforme a perspectiva do todo.
Não se trata de pensar qual é o bom, qual o mal votante, qual a atitude correta, qual a incorreta, mas de assinalar que ao exercer o mesmo comportamento, ao votar, os votantes podem decidir-se desde perspectivas diferentes, e tomar suas decisões a partir de duas posições totalmente opostas.
Objetivamente não há como coagir o votante a votar segundo uma ou outra maneira. No mecanismo puro da decisão por maioria de votos permanece latente essa dubiedade que de alguma forma invalida o processo, e lhe retira a base de sua pretensa legitimidade que é o respeito da igualdade entre os votantes. Já que devido a essa ambigüidade essencial do votar, a igualdade dos votantes, sendo suas atitudes potencialmente diferentes, não é mais garantida pelo sistema.
A cada tipo de votante corresponde um tipo de democracia. A democracia do primeiro tipo se assemelha a uma mera contagem das partes. Com o resultado do voto, alcança-se essa contagem que conta a parte maior. Essa contagem tende a fazer com que todos ajam segundos os interesses dessa parte maior, em detrimento dos interesses fragmentados das partes menores. O mecanismo de correção dessa distorção totalizante consiste em multiplicar as fórmulas de consulta, de modo a fragmentar as partes sólidas, aquelas que se constituem sempre de um mesmo recorte da população, por exemplo, o recorte entre pobres e ricos, entre campesinos e citadinos, entre velhos e jovens, homens e mulheres, hétero e homossexuais, leigos e religiosos... Formular a consulta de tal modo que, a cada vez, ou em muitas vezes, um certo grupo de votantes não possa considerar-se, sempre, como pertencente à mesma parte definida pelos mesmos critérios de escolha. Para conter o perigo da maioria recorrente, evitar as facções, os partidos.
A democracia do segundo tipo refere cada votante individualmente ao todo. Prescinde da realidade de uma sociedade fragmentada em grupos de interesse. Conta com a possibilidade de múltiplas racionalidades. A escolha ganhante, o resultado da somatória dos votos, seria aquela que mais se aproximaria de uma racionalidade média. Cada indivíduo deve apresentar-se isoladamente, no momento do voto, como uma representação da consciência geral. Supõe-se que essa representação possa variar. E a escolha ganhante, a escolha da maioria, seria uma espécie de aproximação daquela consciência geral.
De fato, não há essa caracterização forte dos votantes nem, conseqüentemente, das formas de democracia. O que há é uma mistura dos tipos, uma imprecisão, uma vagueza do sistema de consulta popular.
O voto: um comportamento, duas atitudes (II)
O voto: um comportamento, duas atitudes (III)