A aranha e o humano


Uma aranha que jamais se viu num espelho vai até o espelho, olha sua própria imagem, toma-a por um outro ser, recua um pouco, levanta as patas dianteiras, em sinal de agressividade.

Se a aranha fosse um humano, mesmo se não se reconhecesse na imagem, eventualmente, como aconteceu com Narciso, ao contrário, poderia se apaixonar pela imagem.

Família, velho lar de nossos bens e males


Assim como especulava com os títulos de suas empresas, espalhando por toda parte um punhado de boatos, para sobrevalorizá-las, a burguesia dos novecentos, na sua afirmação histórica, sobrevalorizava a família (como condutor, por hereditariedade, ao mesmo tempo, de cargas biológicas e morais de fundo religioso). É o que fica patente no diálogo que se segue.
OSVALD – Era um dos grandes médicos daquele lugar. Foi preciso descrever-lhe o que eu sentia; depois, ele começou a me fazer uma série de perguntas que me pareceram sem qualquer relação com o meu estado; eu não percebia aonde ele queria chegar.
MADAME ALVING – Continue.
OSVALD – Ele acabou me dizendo: Há em você, desde o seu nascimento, alguma coisa de “vermoulu”; foi a expressão que ele usou.
MADAME ALVING, escutando com uma atenção concentrada – O que ele queria dizer?
OSVALD – Era isso precisamente o que eu não compreendia, eu lhe pedi para que se explicasse mais claramente. Ele disse, então, o velho cínico... (Fechando o punho.) Oh!... 
MADAME ALVING – Ele disse?
OSVALD – Ele disse: Os pecados dos pais recaem sobre seus filhos. 
MADAME ALVING, levantando-se lentamente – Os pecados dos pais...!

IBSEN, Henrik. Les revenants [1882]. Trad. Moritz Prozor et alii. In: Ibsen: Drames contemporains. La Pochothèque. Paris: Librairie Générale Française, 2005. P. 333. 

Entre fantasmas

Goetz*, meu fantasma, não é exatamente Deus que reencontramos, quando o matamos? O Deus vivo não é o Deus morto?


(*) SARTRE, Jean-Paul. Le diable et le bon dieu. Col. Folio. Paris: Gallimard, 1951. 

Anarquia purificadora

O Estado é o freio do karma. Com o Estado, entre a causa e o efeito, são intercalados outros efeitos e causas. Por isso, o Estado retarda o karma, o retorno purificador do efeito sobre a causa. Se queremos alcançar o nirvana rapidamente, devemos promover a anarquia. Mas, nessa questão do nirvana, quem se interessa pela rapidez ou pela lentidão? Só mesmo aquele que está muitíssimo distante do nirvana.

Digno de amor? Quem? – II


Quem é digno do nosso amor? Aquele que toma para si toda a nossa culpa? Ou aquele que nos acusa?

Se só é digno de amor aquele que nos redime de nossa culpa, então, numa certa lógica, só Cristo é digno de amor. Pois só ele toma para si toda a nossa culpa (ao pagar por ela e apagá-la)... ninguém mais. Só Cristo nos salva, ao se sacrificar por nós.

[Por isso, Nora abandona seu marido, Tornvald Helmer]

Entretanto, nossa culpa, implica alguma acusação. Se há culpa, afinal, deve haver também alguém que nos acuse. Quem nos acusa originalmente de nossa culpa, da nossa culpa original, da culpa que vem de nossa própria origem? Ora, o Deus Pai. Mas, nessa mesma lógica, devemos amar a Deus acima de tudo. Assim, devemos amar, acima de tudo, aquele que nos acusa.

São dignos do nosso amor, ao mesmo tempo, aquele que nos salva e aquele que nos acusa de toda a nossa culpa. Por isso, ainda segundo a mesma lógica, estes dois equivalem a um. Cristo é Deus. O filho de Deus é Deus.

Na purificação da nossa culpa ou da culpa no mundo, Deus envia seu próprio filho, ou a si mesmo, ao sacrifício.

[Por isso, o Consul Bernick, para acabar com a sua culpa, envia, sem saber, é verdade, seu próprio filho, Olaf, ao naufrágio do Indian Girl

Nesse passo, completamos uma pequena volta pelo teatro de Ibsen, e chegamos a como eliminar o podre.

Digno de amor? Quem?


[esquema da peça de Ibsen]

_ Quem é digno do nosso amor?

Só é digno de amor aquele que “quisesse tomar tudo, tomar para si toda a [nossa] culpa”* – e assim nos desculpasse de toda a nossa própria acusação.

Ou, ao contrário, só é digno de amor aquele que nos acusa.

 [a luz está sobre os personagens menores]

(*) IBSEN, Henrik. Une maison de poupée [1879]. Trad. Moritz Prozor et alii. In: Ibsen: Drames contemporains. La Pochothèque. Paris: Librairie Générale Française, 2005. P. 240.


Epidemia de ódio


Acontece um humano ser de tal maneira atraído pelo que tanto odeia, que, sob esse domínio, também se torna odiável.

Espaço e ficção


Nada parece mais real ou anterior ao próprio real do que o espaço. Mas, o espaço, eu penso, se define no próprio jogo da realidade, no qual o real se enuncia (ou no jogo da ficção). Isso fica evidente no teatro.
“Primeiro Ato 
Grande salão que dá para o jardim. No primeiro plano, à esquerda, uma porta. Um pouco atrás, outra porta semelhante. No meio da parede oposta, uma grande porta. No fundo, uma divisória inteiramente envidraçada, com uma porta aberta, através da qual se percebe uma larga varanda coberta e uma parte do jardim, que é cercado por uma grade com uma pequena porta de entrada. Ao longo da grade passa uma rua. Do outro lado da rua, casinhas de madeira pintadas com cores claras. Em uma loja, ao final da rua, entram alguns clientes.”*


Aqui, o espaço, embora seja definido no início da fábula, não é o seu pressuposto. Ao contrário, é a organização espacial que pressupõe a fábula (o número de personagens, a sua ordem de entrada e saída de cena etc.). É em função da fábula que o espaço se configura.




(*) IBSEN, Henrik. Les Piliers de la société [1877]. Trad. Moritz Prozor et alii. In: Ibsen: Drames contemporains. La Pochothèque. Paris: Librairie Générale Française, 2005. P. 67.

A minha definição e a sua


Por relativismo, eu entendo a teoria da verdade que afirma que os enunciados verdadeiros envolvem em si mesmos a relação que os sujeitos desses enunciados mantêm com a realidade que eles pretendem enunciar.

Talvez, você prefira entender por relativismo algo mais amplo: toda concepção filosófica que não admita verdades absolutas.

Nisso, porém, você deixa de lado o real. Enquanto eu, eu digo que, para o relativista, a realidade é uma coisa e a verdade uma outra. Se o relativista diz que não há verdade absoluta, é porque ele acredita que, acerca da absoluta realidade, nós só podemos enunciar opiniões.

Eliminar o podre


Eu gostaria de desaparecer com toda esta sociedade podre. Mas, outras gerações virão depois de nós. Tenho meu filho, por quem eu devo trabalhar. Eu quero prepará-lo para uma grande tarefa. Virá a época em que a verdade encontrará seu lugar na vida social; talvez sua existência será mais feliz do que aquela de seu pai.*

Biopolítica. A ideia de que da dolorosa eliminação da podridão possam-se abrir os campos e os tempos para o que é bom e verdadeiro, como parte da ideia de que a destruição se justifica por sua capacidade criadora...

Na maioria das vezes, senão sempre, porém, a eliminação da podridão elimina junto as sementes dessa esperança.


(*) IBSEN, Henrik. Les Piliers de la société [1877]. Trad. Moritz Prozor et alii. In: Ibsen: Drames contemporains. La Pochothèque. Paris: Librairie Générale Française, 2005. P. 157, in fine.

Corpos compostos pelo nosso corpo


Se o processo de individuação de um corpo se exprime pela sua capacidade de produzir efeitos no real que se explicam apenas pela natureza do corpo, então, nosso corpo incessantemente convém com outros, no processo pelo qual corpos compostos do nosso se individuam.

Por exemplo, o violinista e o violino, no momento da música, formam um corpo composto. Ambos, além disso, formam o corpo da orquestra. E todos os músicos da orquestra, porém, ao mesmo tempo, formam uma parte do corpo político que se exprime na cidade.

Proposição + poder + sujeito = enunciado

Não existe proposição que não seja enunciada. Por isso, sempre nos são dados regimes de veredicção, que somam ao respectivos jogos de proposições, os correlativos jogos de relações de poder nos quais nosso ser se constitui em sujeito (objetivo e subjetivo) das proposições.

O enunciado difere da proposição exatamente nisso, ele envolve na proposição o seu regime de veredicção.

Mutação_ certa quaedam ratio


O alquimista busca perceber o ponto pelo qual uma forma pode mutar-se em outra. _Já não se trata de reset.


Reset


O corpo demora a tomar noção do novo espaço, a se integrar ao novo arranjo das coisas, enquanto combate para se estabilizar em uma configuração mais adequada, como a mente demora a tomar noção das novas ideias.

Isso que há, isso que não há

Biopoder. _Afinal, o que há, nessa situação, que me provoca tanta ansiedade? Ou será a falta de um medicamento adequado?

Conatus-nexus no peixe



Conforme a sua natureza própria, o peixe nada. E não pode se esforçar em fazer nada que contrarie sua natureza própria (deslocar-se fora d’água sobre o chão seco, por exemplo). O peixe é o conatus de ser peixe, pelo qual faz o que faz.

Conforme a natureza, mas dessa vez considerada como um todo, o peixe nada. E nisso tudo que ele faz, o peixe o faz assim determinado por todas as outras coisas da natureza. O peixe é o nexus de causas exteriores que o faz ser peixe.

A natureza toda e a natureza própria do peixe convêm sem falhas. No peixe, o conatus de ser peixe e o nexus de ser peixe convergem, ponta a ponta, sem falhas.

Mas acontece o peixe ser fisgado para fora da água e arrastado pelo chão seco. E isso não contraria o que foi dito antes. Porque, nesse devir, o peixe deixa de ser peixe para se tornar outra coisa.

Conatus-nexus

Somos o que somos, isto é, o que fazemos ou praticamos. Nossa interioridade se liga sem falhas (sem imperfeição) à nossa exterioridade.

O Conatus próprio pelo qual afirmamos nosso ser na existência se junta, ponta a ponta, com o Nexus de causas exteriores que determina nosso ser a fazer e praticar o que fazemos e praticamos.