A coruja só levanta voo ao entardecer...



A filosofia é um tipo de discurso que cria conceitos ou ideias, ou os apreende em suas teias discursivas, quando já existentes. Os conceitos de uma filosofia estão intimamente articulados e atrelados uns aos outros. De modo que cada um interfere em cada outro, e não é possível suprimir ou modificar um conceito sem ajustar os restantes. As ideias/conceitos são os elementos de uma filosofia, elas se invocam, convocam, provocam. Inauguram uma possibilidade de perceber, descobrir ou inventar, e dizer o que há no mundo e como isso vai.

Na medida do presente, o conceito é sempre um passado.

Na medida em que não se deixa medir pelo seu tempo (unzeitgemäss, extemporâneo), no entanto, o conceito abre uma percepção/inteligência ou um modo de perceber/inteligir, que pode ser até futuro.






Pontes ou muros entre as américas? Um experimento de fisiologia...


A ideia de que um muro ou uma ponte possa separar ou unir os espíritos de dois povos é uma ideia política originada da fisiologia(*) – portanto, é uma velha biopolítica. E, da fisiologia coletiva, que considera um povo como a união entre uma mente e um corpo formados pelas muitas mentes e corpos individuais dos seus membros.

Essa crença fisiológica, a ser comprovada, aparece nesse enunciado de um experimento possível: “Se o cérebro de um homem pudesse ser dividido com uma faca em duas partes e cada uma delas continuasse a funcionar, sua consciência seria então dividida em duas consciências; e, inversamente, se uma ponte funcional de matéria nervosa pudesse ser estabelecida entre os cérebros de dois humanos, sua consciência iria se fundir em uma única consciência.”**



* “FISIOLOGIA. Propriamente, estudo das funções dos corpos vivos [...] – por extensão, diz-se algumas vezes dos estudos da funções mentais; mas, em geral, para dar a entender que essas funções, se fossem mais conhecidas, seriam aquelas do sistema nervoso”. LALANDE, André. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. 2 ed. Paris: Quadrige/PUF, 2006 [1926]. P. 780.

(**) MCDOUGALL, William. The Group Mind. 2 ed. London: Cambridge University Press, 1927 [1920]. P. 33.


Consciência Frankenstein: ponte ou muro?


As investigações das relações entre indivíduo e coletividade parecem requerer a urgência de ousados experimentos. Indivíduos que vivem em grupo formam uma nova consciência ligada ao corpo coletivo formado pelas relações físicas entre os corpos individuais? E nós mesmos, os indivíduos, somos mesmo indivisíveis? Podemos imaginar...

“Se o cérebro de um ser humano pudesse ser dividido com uma faca em duas partes e cada uma delas continuasse a funcionar, sua consciência seria então dividida em duas consciências; e, inversamente, se uma ponte funcional de matéria nervosa pudesse ser estabelecida entre os cérebros de dois humanos, sua consciência iria se fundir em uma única consciência.”*

Disso dependem a construção de uma ponte e a construção de um muro.



(*) MCDOUGALL, William. The Group Mind. 2 ed. London: Cambridge University Press, 1927 [1920]. P. 33.



Carência de liderança, índice da massa


Perdemos todos os nossos guias! Uma catástrofe?

O amor do líder, a louvação do herói redentor são sempre afetos reativos, regressivos, massificantes. 

A multidão deseja e luta para se salvar na liberdade; a massa, por sua vez, “por sua servidão como se fosse por sua salvação”*. 

Essa seria a distinção da massa: “Não é a necessidade de liberdade, mas a da servidão, que sempre domina a alma das massas. Elas possuem uma tal sede de obedecer, que se submetem por instinto a quem se declara seu senhor”**.



(*) SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres III: Traité théologico-politique. Trad. Jacqueline Lagrée et Pierre-François Moreau. Paris: PUF, 2009 [1670]. Prefácio, §7 [G. 6]. P. 61.

(**) LE BON, Gustave. Psychologie des foules. Paris: PUF, 1963 [1895]. Disponível em: . Acesso em: 04.04.2015.P. 65.




A relação entre a criminalidade elevada e a inadequação da lei


A criminalidade, em geral, não surge de escolhas imorais.

O crime é uma ilegalidade, portanto, é dependente da lei. Sem leis, sem crimes. Não são os crimes que produzem as leis; pelo contrário, são as leis que os produzem, que fazem com que certos atos sejam atos criminosos.

A criminalidade aumenta exponencialmente quando um regime de leis é inadequado à realidade de uma sociedade, inadequado às condições materiais (a disposição das riquezas) e imateriais (a disposição dos desejos) de sua existência efetiva.

O índice elevado do crime reflete a tensão entre a lei e a realidade da multidão social que a lei pretende regular. A criminalidade elevada expressa a irracionalidade da lei, quer dizer, expressa o caráter incomum ou a parcialidade da lei, a inadequação da lei vigente com o comum à multidão social, quando a lei é feita apenas por uma parte da multidão, quando a lei é válida apenas para uma parte da multidão, ou quando, na reunião das últimas duas condições, a lei é feita por uma parte para a obediência da outra parte.

Uma multidão social com alto nível de criminalidade é, portanto, a exigência de transformação do regime de leis, da sua adequação ao real comum, ao que é produzido em comum. A exigência de que a própria lei se torne uma produção comum, em outras palavras, uma produção racional e democrática.

A lei racional não é a causa da organização democrática, mas a sua expressão adequada. Não são as leis racionais que fazem uma democracia. É a democracia que faz as leis racionais.




O Brasil carcerário


No Brasil atual, grosso modo, há um total de 700 mil presos para uma população de 200 milhões. 1 em cada 285 pessoas está atualmente numa prisão. Isso nos parece uma consequência natural e óbvia da degradação de uma sociedade. Mas, de fato, ela é a sua gradação. Não é uma consequência, mas uma causa produtora de um tipo de sociedade.

O cárcere é uma parte essencial do nosso nome, da nossa designação. 

Vale lembrar: o aprisionamento do criminoso é uma das técnicas, aliás, já velha de 200 anos, pelas quais um ser coletivo constitui a sua essência por exclusão. O elemento interior se constitui pela exteriorização, pela ejecção do não-dentro. De maneira semelhante, o Eu individual, a consciência de si, se forma junto à formação da consciência do fora.

Foucault: “Poderíamos fazer uma história dos limites – destes gestos obscuros, necessariamente esquecidos assim que realizados, pelos quais uma cultura rejeita algo que será para ela o Exterior; e, ao longo de sua história, este vazio escavado, este espaço em branco, pelo qual ela se isola, a designa tanto quanto os seus valores.”*





(*) FOUCAULT, Michel. Préface [1961]. In: Dits et écrits. Vol. I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. P. 189.

Os indivíduos e o meio


A arte de governar o múltiplo dos indivíduos na modernidade baseia-se, cada vez mais, na compreensão (e na constituição) das relações causais desses indivíduos com o meio em que estão supostamente imersos. Isso é o que se compreende por biopolítica. O meio biopolítico é um meio natural, ligado à essência corporal do humano-animal.

Esse tipo de governo não é então uma ação direta sobre os indivíduos, mas principalmente sobre as condições do meio no qual seus corpos se encontram.

Essa naturalidade corporal do humano pode ser expressa também em termos incorporais, anímicos, psíquicos, como nesse trecho de Le Bon (1895): “Só a uniformidade dos meios cria a uniformidade aparente dos caracteres. [...] todas as constituições mentais contêm possibilidades de caracteres que podem se revelar sob a influência de uma brusca mudança do meio”*.

Basicamente, para Le Bon, qualquer carácter é um virtual em qualquer mente. As mentes se determinam pelo meio psíquico, o conjunto de sentimentos, opiniões e ideias circulantes em que estão inseridas. Trabalhar sobre esses elementos do pensamento, desde fora, desde o meio, é a forma de governar o múltiplo das almas, de produzir o seu carácter.

Apesar de ser um governo psíquico, o que Le Bon propõe é, historicamente, uma espécie de biopolítica. A charada da biopolítica está em compreender o por quê.



(*) LE BON, Gustave. Psychologie des foules. Paris: PUF, 1963 [1895]. Disponível em: . Acesso em: 04.04.2015. P. 17.



Um mundo cujos habitantes não possam senão copiar ou fotografar...


A projeção de um mundo composto exclusivamente de imagens – um mundo absolutamente virtual – não é uma conjectura recente:
Se nós supomos um mundo, cujos habitantes não possam senão copiar ou fotografar os objetos sem ter a possibilidade de tocá-los, eles não conseguiriam, senão com muita dificuldade, se fazer uma ideia exata da sua forma. O conhecimento dessa forma, acessível somente a um pequeno número de sábios, não apresentaria senão um interesse muito fraco*.
Aparente no texto de Le Bon, essa projeção parece derivar da desconfiança, historicamente enraizada, em relação às “foules” (termo que significa, em Le Bon, uma “potência unicamente destrutiva”**, e que costuma ser traduzido por “massas”, mas precisamente designa as classes populares, que o autor considera “pouco aptas ao raciocínio”***). Já discutimos aqui como essa desconfiança pode estar associada a uma miopia, que leva à indistinção entre massa e plebe.

O mundo das imagens é o mundo das aparências dominantes. Tão dominantes que, de fato, sob esse domínio, só as imagens importam; um mundo em que as verdadeiras formas, acessíveis apenas a uma minoria esclarecida (a única potência capaz de construir as civilizações – “até agora, as civilizações foram criadas e guiadas por uma pequena aristocracia intelectual, nunca pelas foules”**), já não possuem qualquer efetividade. Isso prenuncia a “era das massas”****, a iminência de uma época de “transição e anarquia”****, resultante da “transformação progressiva [das classes populares] em classes dirigentes”****.

Nessa projeção, trata-se ainda de uma atualização da alegoria platônica da caverna, em que as modernas “cópias e fotografias” substituem as antigas sombras.





* LE BON, Gustave. Psychologie des foules. Paris: Félix Alcan, 1905 [1895]. Disponível em: . Acesso em: 04.04.2015. P. 8.

** LE BON, Gustave. Psychologie des foules. Paris: PUF, 1963 [1895]. Disponível em: . Acesso em: 04.04.2015. P. 12. Trata-se de uma outra versão da mesma obra, com um prefácio diferente. Essa versão foi traduzida para o alemão em 1912. Foi a ela que teve acesso Freud.



*** Versão Alcan. P. 11.

**** Versão PUF. P. 11.


A corrida do ouro


Ali onde quase já não havia ninguém “de repente preteja de gente”*. A corrida do ouro atual é a corrida religiosa. O fundamento desse curso é positivo ou negativo.

Provavelmente negativo. A corrida é uma fuga, se dá por “horror vacui – o medo diante do vazio governa essas pessoas”**. Vazio aberto no coração da emancipação humana pelo individualismo clássico e aprofundado, nos últimos decênios, pelo neoliberalismo.

Provavelmente não positivo, como desdobramento no real de um princípio efetivo positivamente existente, como por exemplo aquele “sentimento oceânico”*** de que falou Romand Rolland a Freud.





(*)CANETTI, Elias. Massa e poder. 4ª reimpressão. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 [1960]. P. 14.

(**)KRACAUER, Siegfried. Aqueles que esperam. Trad. Carlos Eduardo Jordão Machado, Marlene Holzhausen. In: O ornamento da massa. São Paulo: Cosac Naify, 2009 [1963]. P. 152.

(***)FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização [1930]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 18 (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P. 15.

“Capitalismo selvagem”


“Selvagem”: amoral, agressivo, voraz, descontrolado, desmedido, incivilizado, ingovernável, destruidor.

“Capitalismo”: esse é o sentido que, acima de tudo, precisamos buscar?

A expressão “capitalismo selvagem” é analítica, e não sintética... O termo “selvagem” na expressão apenas evidencia uma propriedade essencial do primeiro termo (ora, para as consciências, isso não é pouca coisa!). “Selvagem” não se junta a “capitalismo” desde o seu exterior, não é um acidente do “capitalismo”. Ou há “capitalismo selvagem”, ou não há “capitalismo” tout court. Mas “não haver capitalismo” soa, em nossas circunstâncias, como uma expressão absurda, internamente contraditória, um escape da ordem da fantasia: um prazer puramente mental, sem desdobramentos efetivos na operação do real.

Muito bem... mas ficamos, paramos, nisso? E ficar nisso não seria a maior das fantasias?

“Selvagem”, nesse contexto, significa destruição. Se a destruição é da essência do “capitalismo”, então, não haveria no capitalismo nenhum lugar para Eros, nenhuma operação? Parece que há, sim. Podemos duvidar que o capitalismo opere a humanidade, que dê uma forma à realidade do humano, que faça obra ao mesmo tempo do real e do humano?

O par destruição-operação, ódio-amor, dor-prazer, constitui a essência do “capitalismo”. A oposição interna não impede a sua essência. Talvez seja, então, uma oposição aparente?

Destruição-operação constitui a essência atuante de toda coisa. De toda coisa finita.

Na essência da coisa infinita apenas o absoluto, o eterno presente no próprio fluxo das essências atuantes (ou em termos humanos: na própria história) – o trágico, para nós, é que esse eterno não é humanista, é supra-humano, humano e mais do que humano.

A evidenciação da destruição-operação na essência “capitalismo” indica que ele não é o absoluto, mas uma coisa (ou uma disposição, se preferirem) finita – quer dizer que, pelo menos, está ao nosso alcance.








Prisão II – metonímia


até a boca ocupar o nome do rosto todo
até falar só da prisão em lugar da cidade

...construir mais presídios...



Prisão


Já pensamos, com Freud, a origem oral dos juízos morais, aqueles acerca do bom e do mau. Por seu lado, Canetti persegue a origem do poder a partir da captura e da incorporação. Desta última um dos estágios é a oralidade. “Os dentes são os guardiões armados da boca. Esta, sendo um espaço realmente exíguo, constitui o modelo de todas as prisões”*. Para Canetti, portanto, a prisão é a boca desdobrada como aparelho de poder; as grades são o desdobramento dos dentes.

A palavra “oral” nos vem do latim oris (genitivo de os). Oris é isso que é da boca, que é pertinente à boca. Os, a boca, mais tarde, assume, no latim, por metonímia, o sentido do rosto todo – assim como no francês gueule diz boca ou rosto. Os Gorgonis é a boca ou a cara horripilante de Medusa**. A boca sobressai no rosto, a tal ponto que o rosto todo se resume à boca (veja aqui uma imagem disso).

Por meio da oralidade, se compreende a vinculação da moralidade com o poder, afinal: “Tudo o que se come é objeto do poder”**.

Leva-se à boca o que é bom; mas, à prisão, o que é mau. – Se a boca é o modelo para a prisão, o bom, de certa forma, também é modelo para o mau. A prisão é, como aparelho de poder, um pôr para dentro; e, como aparelho moral, um pôr para fora.

Para o poder, a prisão está cheia de maus humanos. Mas humanos têm bocas. A prisão está cheia de bocas. Presos são decapitados. Cabeças (ou bocas) de Medusa jazem inertes, cortadas, como troféus. Cortar a cabeça é cortar o pênis e a boca****, símbolos do poder.

Canetti é exato na distinção real entre boca e prisão. A boca remete à força. A prisão, ao poder. Entre poder e força, entre prisão e boca, uma certa “ampliação do espaço e do tempo”*****. Como a brincadeira do gato com o rato é um exercício de poder, não exatamente de força.

Quando a prisão mata, ela é boca, o poder é força.



(*) CANETTI, Elias. Massa e poder. 4ª reimpressão. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 [1960]. P. 207.

(**) Para Freud, esse horror está ligado ao temor masculino de que a vagina seja uma boca, que ela possa morder. Mas esse temor aparece junto com o desejo sexual. “A visão da cabeça de Medusa torna rígido de terror” e de desejo. É talvez a vagina da mãe: desejada e interdita. FREUD, Sigmund. A cabeça da Medusa [1922]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 15 (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 327.

(***) CANETTI. Op. Cit.  P. 218.

(****) Conferir: FREUD, Sigmund. Uma relação entre um símbolo e um sintoma [1916]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Obras completas. Vol. 12 (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 291.

(*****) CANETTI. Op. Cit. P. 282.