Por que não fazer o mal?

Afinal, por que devemos aderir à boa ação? – pergunta que deixa muita gente inquieta. Suponhamos que podemos conhecer o que é o bem e o correto. O que nos leva, afinal, fazer o bem e não o mal? Por que aderir ao valor do bem? Em outras palavars, qual o fundamento do valor da moral?

Acho que Hannah Arendt, envolta com Sócrates, nos dá uma boa resposta*. Por que não se tornar um assassino, quando já não há um Deus onisciente, mesmo quando temos a certeza de que nosso crime passará despercebido aos olhos de todos?

Ora, responde Arendt, quem gostaria de estar junto a um assassino, para sempre? Se nos tornarmos assassinos, estaremos na obrigação de estar junto a um. Pior, estando na companhia de um assassino, perceberemos o mundo, como que povoado de assassinos. Viveremos perseguidos pela ameaça do nosso próprio assassinato. Já não suportaremos estar junto a nós.

Isso, esse estar junto a si, porém, não é tão simples. Nem todo mundo está junto a si, entra em contato consigo mesmo. Nem todo mundo convive consigo mesmo. Só quem pensa. Quem está incapacitado para o pensamento, perde a capacidade de estar junto a si, perde a consciência de si e a consciência moral. Quem não pensa mais, quem está impedido de estar consigo, enfim, pode acabar matando...



(*) Cf. ARENDT, Hannah. Filosofia e política [1955]. Trad. Helena Martins. Ou ainda: Pensamento e considerações morais [1970]. In: A dignidade humana: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

Passar II

Como escapar da finitude, senão pela religião?

Não há, diante do paradigma político de um certo Ocidente (que obviamente não é o Ocidente geográfico), apenas o paradigma teológico-político de um certo Oriente?

Aliás, Platão inventa, no Político, o mito dos dois ciclos da Terra*. (1) Durante uma era, gira o astro numa direção. Nesse giro, todos os seres terrestres estão submetidos diretamente aos cuidados dos deuses e de seus emissários também divinos. Os seres humanos têm a Deus como pastor. (2) Mas esse girar se esgota por si, o astro pára e volta a girar, em direção contrária. Nesse ciclo, os deuses abandonam a Terra, e deixam os terrestres entregues à sua própria natureza.

Esses dois ciclos ilustram bem os dois paradigmas políticos contemporâneos: (2) o biopolítico (o governo das populações vivas pelo pastor humano) e o (1) teocrático (o governo dos fiéis diretamente por Deus).

Na saudade, no padecer, dos tempos passados [um tempo lógico: o (2) na imaginação do (1)], os humanos constituem, entre pares, uma organização pastoral. Como ovelhas, na carência do rebanho e do pastor, aceitam, ou escolhem, seus governantes, no desejo de ser governados.

Se prestarmos um pouco de atenção, encontramos logo a diferença fundamental entre a teocracia (como governo direto de Deus) e o regime teológico-político (como governo dos que representam a Deus na Terra). Apenas ressalto o óbvio: a religião e o clero são figuras do regime teológico-político e não da teocracia. Nos termos de Platão, portanto, o regime teológico-político faz parte do mesmo ciclo da Terra, em que a biopolítica, o regime político do Ocidente, se insere.

Não é por nada que a biopolítica pode ser interpretada, também, como a incorporação dos mecanismos de poder do pastorado cristão pelos Estados modernos. Com a crise do pastorado religioso, nos séculos XVI-XVIII, é o Estado soberano que paulatinamente absorve as funções do pastor, e passa a governar, a cuidar, da população como se fosse um rebanho. A passagem da compreensão da política como soberania para a política como governo equivale à governamentalização do Estado. O Estado soberano se torna governo, pastor laico de um rebanho laico.

(*) PLATÃO. Diálogos: Político. Col. “Os Pensadores”. Trad. diversos. São Paulo: Victor Civita, 1972. 272 p.

Passar I


Tenho pena até... nem sei...

Do próprio mal que passei
Pois passei quando passou.*


Enquanto passar for o critério da pena, penaremos sempre, pois passamos, independentemente da vida ser boa ou má, digna ou indigna de ser vivida. Sofremos simplesmente porque a vida passa e, nesse passar, se extingue. Sofremos enfim da finitude da vida, porque de todo modo passa a vida.

No passar do tempo, na duração, exaurem-se a saúde e o vigor de nosso corpo, escoam continuamente de nossas mãos os frutos de nosso trabalho, retomamos o eco inútil das palavras já ditas, somamos páginas redundantes à biblioteca infinita, em que tudo já foi escrito.

No viver a sofrer a vida, entristecemo-nos, continuamente. E nessa tristeza está a dimensão política de nosso padecer, pois a tristeza é sinal da redução de nossa potência. Pergunto-me se não é essa a condição política da modernidade ocidental, dos mecanismos de poder do Ocidente – ditos biopolíticos – que nos apreendem enquanto seres finitos. Pergunto-me se não nos enrolamos nas malhas do poder, enquanto concebemos nossa vida, como vida que passa e decai, como corpo que trabalha infrutiferamente, como falante da fala falada. A biopolítica é a política da vida, mas da vida enquanto finita, a biopolítica é a política da finitude. Nesse enrolarmo-nos nesse rolo, vai de nossa autonomia, é de nossa potência que se trata e de nossa alegria.


(*) PESSOA, Fernando. Poesias coligidas. Inéditas 1919-1935. Poema 630, p. 520 [1929]. In: Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.

O que é a anorexia na moda?


Para conhecer o pano de fundo dessa discussão, consulte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/09/070925_anorexia_ga_ac.shtml.

Foucault, em os Anormais (pp. 191 ss., na edição francesa), instala as freiras possuídas pelo demônio como instâncias de resistência ao incremento do poder pastoral, do poder eclesiástico, nos séculos XVI-XVIII. Diferentemente das bruxas, as possuídas pelo demônio são religiosas que pertencem à Igreja e conhecem o Cristo. No interior dos corpos fragmentados das possuídas, digladiam-se não só as forças maléficas do diabo e as benéficas dos exorcistas, mas também a própria vontade ambígua das possuídas, resistindo ora a um ora a outro dos poderes. A convulsão da possuída é a expressão desses confrontos. Na possessão, a carne cristã é agenciada pelo poder eclesiástico-pastoral até o limite, até o extremo, de sua conversão em carne convulsiva.

Gostaria de pensar a anorexia das modelos em analogia com o fenômeno da possessão. A anorexia da modelo é essa configuração paradoxal de um corpo submetido, até o seu próprio limite, a um poder que o modela. Mecânica de um corpo que, num determinado momento, se desgoverna. Mas a resistência desse corpo é tão inapreensível, que ela não se mostra como afronta direta; não é o corpo que engorda, que contraria simplesmente o padrão que lhe é imposto. Pelo contrário, o corpo anoréxico da modelo é um corpo em que a forma idealizada do corpo da moda se aprofunda, até o extremo, até a beira do nada. Corpo que segue, para além do razoável, as injunções do seu senhor, mas que, nessa submissão total, encontra a forma absurda de uma resistência. A modelo anoréxica é a religiosa possuída do dispositivo da moda. Seu corpo é agenciado por esse dispositivo, até o momento paradoxal, em que ele, desgovernado, passa a manifestar, da forma mais bruta, e em si mesmo, o absurdo desse dispositivo. Desgoverno que é resistência ao governo da moda.

FOUCAULT, Michel. Les anormaux: Cours au Collège de France, 1974-1975. Paris: Seuil/Gallimard, 1999 [1975]. 218 p.


Io

Io, a virgem desejada por Zeus. Io, a vítima do ciúmes divino de Hera, esposa de Zeus. Io, a mortal perseguida pelo moscardo. O moscardo que turva sua visão, que a faz perder a razão, de tal forma que ela chega a perder seu aspecto humano; crescem-lhe, na fronte, pequenos chifres. Io, por causa do moscardo, não pode deixar de ir adiante, nem ver clara e distintamente.

Na sua fuga sem fim, Io chega ao fim do mundo. Ali encontra Prometeu acorrentado, o deus que lhe revela a verdade de sua própria sina, misteriosamente articulada à sina do próprio sofrimento do deus.*

Para Sócrates, a função do filósofo é a do moscardo. Incomodar os mortais da pólis quando, em sua doxa (sua opinião ou a perspectiva pela qual o mortal interpreta o mundo), eles crêem tratar-se da verdade; quando em sua política, crêem tratar-se de filosofia. **

A verdade e a filosofia não são pertinentes ao mortal (aliás, segundo Simonides: "só Deus pode gozar desse privilégio").

O moscardo de Io, entretanto, afinal, a conduz à verdade na presença divina.


(*) ÉSQUILO. Prometeu acorrentado. Trad. J. B. Mello e Souza. Ediouro.
(**) ARENDT, Hannah. Filosofia e política. In: A dignidade humana: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

Ética e política, alegrias articuladas

Gostaria de assinalar duas proposições da Ética de Espinosa, porque extremamente sintéticas, potentes e alegradoras:

O ódio nunca pode ser bom. (E4, P45)
Nada mais útil ao homem que o homem. (E4, P18S)*

A ética de Espinosa trata da busca do bom, em vista da mais potência. Espinosa exclui desse domínio o ódio e tudo o que nos deixa mais tristes. O bom é útil porque nos alegra, isto é, aumenta nossa perfeição, nossa força de existir ou nossa potência de agir e pensar.

O mais bom se alcança junto a outros homens. Por isso, a Ética das afecções de Espinosa é radicalmente criadora do vínculo político.

Para entender a ética de Espinosa, apenas, talvez, falte falar da liberdade.

(*) SPINOZA, Baruch. Ética. Trad. Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes e Antônio Simões. In: Espinosa. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

Terra – Rudimentos da economia (VIII)

A terra é uma matéria-prima à disposição. Enquanto não é apropriada, não é uma propriedade.
A terra não é uma ferramenta. Além da energia corporal, a terra, ao produzir mercadorias, consome a energia material solar disponível. A terra é uma máquina.

Anjos ou demônios? (2)

O característico do anjo e do angelical é a potência ativa. Nesse sentido, a criança não é um anjo. O angelical da criança, com o qual nos admiramos, é sua potência passiva. A potência passiva da criança é a sua afetabilidade e formatabilidade máximas, em termos humanos.

Oximoro da escravidão


  1. Sepulto vive quem é a outro dado.
  2. E quem ao outro que há em si, sepulto
  3. Não poderei, Senhor, alguma vez
  4. Desalgemar de mim as minhas mãos?*


Gostaria de propor uma interpretação deste fragmento poético póstumo de Pessoa.

(1) Sepulto viver é viver encoberto. Sepulto viver é viver morto. Quem sepulto vive é o vivo morto, oximoro da escravidão. Está como morto quem é dado a outro, quem pertence a outro, e não a si – o escravo do outro.

(2) Mas também age como morto, não vive, não é livre, quem está sepulto sob o outro que há em si, quem se submete a esse sujeito em nós, que é outro e que nos submete – o escravo de si.

(4) Acontece que o escravo do outro é sempre o escravo de si e, o que dá no mesmo, o escravo de si é sempre o escravo do outro. O outro em si, o si que é outro, é o sujeito cuja forma da subjetividade, cujo modo de subjetivação, deriva do modo de assujeitamento próprio ao mecanismo de poder histórico em que está inserido. A servitude voluntária, a escravidão completa, é a coincidência plena do sujeito próprio ao modo de assujeitamento histórico-político com o sujeito próprio ao modo de subjetivação. Esse é o vivo morto, o que já não é humano.

No humano, no vivo vivo pleonástico, permanece a potência da diferença entre as duas configurações do sujeito. Não se trata de uma diferença plena, em que uma imagem é disposta ao lado de outra que lhe é diversa, mas de um diferencial, de um limite de diferença, de uma irredutibilidade, de um limite infinitesimal de incongruência entre as duas figuras do sujeito.

A essência do humano é essa diferença consigo mesmo, o sujeito infinitesimal.

(3) No poema de Pessoa, entretanto, o clamor de liberdade não se dirige a Si, mas ao Senhor. Mas isso é história para outra conversa.

(*) PESSOA, Fernando. Poesias coligidas. Inéditas 1919-1935. Poema 564, p. 499 [1921]. In: Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005.

Religiosidade: superstição e espiritualidade

Um caminho que devemos investigar, na transcendência da finitude biopolítica – a religiosidade. Afinal, Deus é o pensado concreto da infinitude.

Na religiosidade, é preciso distinguir a parte de superstição. Enquanto superstição, a religiosidade é temível, embriagante, alienante. A superstição é a imaginação corrompida, que permanece a voltas com o medo. A piedade supersticiosa obedece porque tem medo. Nesse contexto, pode-se dizer, "a religião é o ópio do povo".

Agora, a religiosidade expurgada da superstição é espiritualidade. Porém, não é pela razão sozinha que se passa da superstição. Além da razão, há imaginação na espiritualidade. A espiritualidade não é o puro conteúdo racional da religião, a metafísica, a teologia purificada, a ontologia. O que vem a ser a espiritualidade se alcança melhor mediante seu conteúdo prático: uma confiança que se traduz como esperança, oposta ao medo da superstição, esperança produzida por uma imaginação constitutiva. A espiritualidade obedece quando quer.

2

A vida – disse Monique – é um perigo de morte.

1

Aquele que anseia por conhecer o que será feito de seu futuro, tem seu futuro feito de passado.