Mito e história

Há duas maneiras de contar a experiência? 
Uns a contam por meio dos mitos. “Nós, os modernos”, a contamos por meio da história. Nosso ser, para nós, se constitui por patamares históricos. Mas, esta história, como fundamento da nossa experiência, pode ser um mito.

– O que ele quer dizer com “participação”?


O poeta alcança a ideia e a sente.
“Participação de cada coisa à natureza; impossibilidade de se sair dela. Leis físicas envelopantes”*.
Mas sua incursão é uma incursão na língua. O poeta perfaz um desdobramento na língua, pelo qual o ser da língua (uma essência potente) se desdobra em fala (um ente existente, que é como uma propriedade, ela mesma potente, da língua).

Não diz, não defende o poeta, porém, que o ser da língua seja o ser real, existente e único, onipotente, onisciente, misericordioso, escatológico. Nem que as falas sejam entes reais. Afinal, o poeta sabe, há outras línguas, talvez, uma infinidade delas.

Por isso não podemos perguntar ao poeta: – o que ele quer dizer com “participação”?


(*) GIDE, André. Les nourritures terrestres. Paris: Gallimard, 1936 [1897]. P. 58.

Junto ao ordinário III


Um engano da filosofia está em fazer da vagueza de uma palavra da língua ordinária um universal extraordinário.

Junto ao ordinário II


Acontece que, não fosse a vagueza das palavras da língua ordinária, não poderíamos nos comunicar.
Para não ser vagos, em absoluto, precisaríamos dispor de uma palavra para cada estado de coisas (para cada acontecimento); o que é humanamente absurdo.
Assim, a filosofia não pode acabar ou não pode ter a ilusão de acabar com a vagueza da língua, ao exprimir o claro e o distinto (um pensamento que não é vago) com palavras.

Junto ao ordinário I – e a partir dele


A partir das palavras e das definições (muitas vezes muito vagas) da língua ordinária, a filosofia procura dar uma definição que se conjugue com suas outras definições extraordinárias.
Na designação de uma definição ou de um pensamento, o filósofo pode optar por inventar novas palavras ou por se manter na língua ordinária. Porém, mesmo quando inventa palavras extraordinárias, para defini-las, ele precisa recorrer à língua ordinária.
Assim, mesmo no extraordinário, estamos sempre próximos ao ordinário.
Rigorosamente, a filosofia não é fora (extra-) do ordinário, mas se dá a partir do (ex-) ordinário. A filosofia não é extraordinária, mas exordinária e exordial. Na filosofia, mostra-se o princípio (o exórdio ativo) de uma outra prática discursiva.

Ponta de iceberg

Somos, na dobra que constitui a nossa existência, do modo mais geral, apenas a ponta finita e emergente de um corpo imerso e infinito. 

Eufemismo

Usar “sugestão” em lugar de “comando”.
– Meu caro, se me permites, uma sugestão...

Quase-quase-um


Um corpo social é quase-um corpo. Isto é, apesar de composto por vários corpos, um corpo social funciona quase como um.
Por outro lado, um corpo individual, na medida em que é também um corpo composto de partes convenientes entre si, é quase um corpo social.
Assim, o corpo individual é quase-quase-um corpo.

Mudar o vocabulário?


Não falemos de Estado, mas de quase-um corpo. Constituímos juntos, em certa medida, um corpo coletivo, cujas partes constituintes, muitas vezes, porém, a tal ponto, são atraídas em direções opostas umas às outras, que o corpo como um todo não sabe mais para onde se virar.

Espíritos geniais II


Moral: – os espíritos geniais elevam-se sobre o peso dos espíritos menos geniais, mas toda produção é uma produção coletiva, toda ideia é comum. Isso que sustenta a ponta do iceberg é seu corpo submerso. 

Esta é, porém, uma moral do ressentimento?


Espíritos geniais


Alguns lograram exprimir com maior clareza aquilo que outros também souberam exprimir, porém, menos claramente. Nessa medida, os primeiros são reverenciados como os expoentes de uma corrente constituída pelos segundos; eles são porém como a ponta de um iceberg, o cúmulo de um esforço (muitas vezes oculto e esquecido) que é sempre coletivo e comum.

Poder/potência


Poder se refere ao que pode ser feito e ao que pode não ser feito. Potência, ao que se faz efetivamente. A potência se mostra toda em ato (um pavão de cauda aberta ou fechada); o poder é como uma insinuação (de que a cauda pode se abrir ou, ao contrário, se fechar). A potência é atual. O poder, hipotético. O poder decorre da ideia de possibilidade. A potência, da necessidade de uma ideia.

O cárcere ou o campo dos desejos


O cárcere ou o campo é aquele desejo que é apenas desejo de um desejo, que, por sua vez, também, se mostra como desejo de desejo, e assim indefinidamente.


Como o dia que, de repente, se torna apenas a espera do dia seguinte, que, por sua vez, também, se mostra como a espera do dia seguinte, e assim indefinidamente.

Memória e história


Seja Lorenzo o nome de um evento passado qualquer (isto é, considere Lorenzo uma variável numa função cujo domínio é o universo no seu aspecto temporal).
A história de minhas relações com Lorenzo é, ao mesmo tempo, longa e curta, simples e enigmática. É uma história que pertence a um tempo e a circunstâncias hoje abolidas, que nada na realidade presente poderia restituir, e que não acredito que ela possa ser compreendida de outro modo do que esse pelo qual são hoje compreendidos os fatos lendários ou aqueles dos tempos mais recuados.*
Os acontecimentos estão de tal maneira inscritos nas circunstâncias de sua emergência que, uma vez desfeitas estas circunstâncias, eles se tornam inexoravelmente uma lenda ou uma lembrança muito remota.
Por isso, a história dos acontecimentos não se faz a partir do testemunho da memória, ela precisa ser reinventada no presente, pela reconstrução imaginária das circunstâncias nas quais aqueles acontecimentos puderam emergir. O esforço da historiografia científica é apoiar esta reconstrução em remanências materiais.
A reconstrução da ligação entre o acontecimento e as circunstâncias de sua emergência pode ser positiva e negativa, de toda maneira, ela torna o acontecimento em evento de circunstâncias particulares.
É negativa quando engessa o presente. É positiva quando nos adverte para circunstâncias presentes que podem repetir os eventos do passado.

(*) LEVI, Primo. Si c’est un homme. Col. Pocket. Paris: Julliard, 2008 [1947]. P. 185.

Definir uma coisa

A definição de uma coisa mostra a relação que se estabelece entre a sua causa próxima e as propriedades ou efeitos que dela se seguem.
– [a causa próxima de uma coisa indica o modo pelo qual a coisa se produz ou vem a ser]
– [os efeitos são coisas que advêm da coisa definida, eles indicam a coisa como um modo de produção]
A boa definição da coisa mostra tudo (a coisa mesma: mas como fluxo de sua causa para seus efeitos).

História do presente



O presente? Numa primeira consideração, ele parece se amparar sobre uma base constituinte extremamente sólida: – o passado, esse monte de pedras que o sustenta, o orienta, lhe dá as suas razões.


Mas, olhando melhor, o passado não parece assim tão sólido.
Hoje, ainda, no momento em que escrevo, sentado à minha mesa, eu hesito em crer que estes acontecimentos realmente ocorreram.* 
Cada presente precisa refazer a sua história desde o presente.




(*) LEVI, Primo. Si c’est un homme. Col. Pocket. Paris: Julliard, 2008 [1947]. P. 160.

Apreender a causalidade, sem reduzi-la


Primo Levi: “[...] nós conhecemos mal a natureza do nosso estado depressivo, e como nos enganamos, ao dar a causas múltiplas e hierarquicamente subordinadas o nome único de causa principal [...deste nosso estado...]”.


LEVI, Primo. Si c’est un homme. Col. Pocket. Paris: Julliard, 2008 [1947]. P. 111.

Escolher é desejar, porque...

...porque desejar é escolher.
Não apenas desejamos isso que escolhemos,
mas só escolhemos isso que desejamos.
Nossa escolha nunca está separada do nosso desejo; 
nem nosso desejo, de nossa escolha.

Espirituralidade, nexus, política III

A “espiritualidade política” se explica como a ruptura de um nexus na vontade de um nexus outro ainda-não já-presente.

Diagnóstico

Todos os casos são graves, certo, mas alguns são mais graves do que outros. Assim, tudo está normal, e não há motivo para pânico.