Ética do olhar

Sendo assim, procuro me habituar a olhar docemente.

Pois, generalizando a intuição obtida, e passando da pessoa singular para a plural (de tu a vós), seria possível eu mudar o olhar que tenho, ou lanço, sobre mim mesmo, ao mudar o olhar que tenho, ou lanço, sobre todos os outros.

Mundo


Quando digo “mundo” [em “não há lugar para o amor no mundo”], não penso apenas no “le monde”, esse enredamento dos humanos uns com os outros e com as coisas que produzem ou que encontram a seu dispor. Penso no mundo das coisas (res), isto é, na re(s)alidade que envolve também os seres humanos e suas relações.

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Algumas vezes, no amor ou no ódio, eu me olho com o mesmo olhar que, em outras, eu te olhei. A tal ponto que já não sei quando o olhar, com o qual eu me olho, é alheio, sendo o teu, ou próprio, sendo o meu.

Polir ideias para obter ideias mais claras e mais potentes

Spinoza (além de pensar ou enquanto pensava) polia lentes.

A partir de um certo nível de polimento da superfície da lente, enxerga-se satisfatoriamente bem com ela. Entretanto, se a polirmos ainda mais, passaremos a enxergar com ela as coisas ainda mais claramente.

A ideia que temos de uma coisa qualquer também pode passar por esse processo de polimento.

Mesmo que tenhamos uma ideia satisfatoriamente clara da coisa pensada, ainda a podemos polir para que tenhamos da coisa uma ideia ainda mais clara.

Por exemplo, de uma elipse podemos produzir uma definição A que descreva o modo pelo qual a elipse pode ser engendrada. Podemos ainda produzir uma definição B de elipse, ainda mais clara que a definição A, no sentido de que, a partir de B mais do que de A, consigamos deduzir ainda mais propriedades da elipse. Dessa maneira, a definição B de elipse é mais potente do que a definição A (de B se geram, se demonstram, ou se veem, um número maior de coisas claras).

Lugar do amor no mundo

Aqueles que dizem não haver lugar para o amor neste mundo, talvez pensem que aquela frase oracular – Tu no entiendes nada del amor – seja a enunciação da condição humana e não, na realidade, um princípio constituinte do mundo.

Ali, em lugar nenhum

Li em algum lugar uma frase que não está escrita em lugar nenhum:

– Tu no entiendes nada del amor.

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Não é mau amar um cachorro ao invés de amar um humano. Não é mau amar uma fotografia ao invés de amar o humano fotografado.

Quimera



Impossível conceber, na ordem conceitual do mundo, o princípio de sua própria consumação (como nadificação) [um dispositivo constitucional de suspensão da sua própria constituição]. Pode-se porém imaginá-lo e concebê-lo [um mundo disposto] como princípio de sua própria metamorfose, isto é, transformação (mas não deformação | porque não há avarias no mundo).

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Talvez, porque uma folha de jornal ao vento tenha de si mesma e do mundo somente uma ínfima imaginação, ela seja, na sua vida – que na nossa perspectiva é absolutamente passional –, mais livre do que nós.

Papel no vento da necessidade

De todos os modos (é inevitável), somos todos como papel no vento; flutuamos, levados de um para outro lado, para baixo, para cima, não de acordo com nossa livre decisão, mas segundo as oscilações do vento, a direção instável do seu sopro.
 
Seremos livres nas nossas decisões somente à medida que elas coincidirem com a liberdade do fluxo da necessidade – ou seja, somente à medida que assumirmos nosso ser papel no vento.

Sobre a premissa: a ordem do mundo não muda

Sejam A e B ordens do mundo.

Se B deriva de A (segundo uma autotransformação de A que leva a B) então B é conforme a ordem A, ou seja, B=A.

Se B não é uma autotransformação de A, mas deve sua ocorrência a si mesmo, então devemos supor: ou que B coexiste com a ordem A, ou que B criou-se do nada.

Se B coexiste com a ordem A, então B e A são da mesma ordem e, novamente, B=A.

_ Então, nos resta uma nova premissa, talvez mais aceitável: ex nihilo nihil fit.

Segundo esta premissa muita grega, B não pode se criar do nada.

O amor no mundo

Dizem o amor não ter seu lugar na ordem atual deste mundo.
 
Se o amor (e com ele a paz e a justiça) só tem lugar num outro momento deste mundo (e não neste), então tem seu lugar aqui e agora, porque o mundo é e será sempre apenas uma configuração diferente do mesmo mundo (da mesma ordem).

Se o amor não tem lugar neste mundo, então não terá nunca.

– Premissa: a ordem do mundo não muda.

Mas se o amor não é deste mundo, então o que mantém o mundo (em certa medida) unido?

Junto à vontade


Na nossa concepção (intelecção, maneira de ver, ficção, como queira), nunca estamos aquém ou além da nossa vontade (voluntas). Não há nenhuma operação (movimento, gesto, disposição) do nosso corpo que possa ir contra ela, ou que não a realize plenamente. Nesse nível de presença da vontade, não pode haver vontade insatisfeita (insatiabilis).

– Muito bem, até concordo com isso quando se trata de um corpo solto. Mas, o que se passa em relação à vontade, quando o corpo é literalmente forçado a fazer alguma coisa, quando, por exemplo, violentamente, empurro um corpo pela janela, para que esse corpo caia?

Nós, em relação à vontade, não fazemos nenhuma diferença entre o corpo solto e o corpo preso. Então, quanto ao corpo empurrado, a sua vontade de cair, totalmente passional, era, no momento do empurrão e durante toda a queda, maior do que a sua vontade racional de não cair. 

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O destino é como uma linda égua a galope desenfreado, que não olha para os lados nem para cima, mas somente para baixo e para frente, ou seja, para ali de onde podem surgir seus obstáculos.

Filosofia e psicanálise


Na minha atenção, pululam imagens. Porque, como dizem os paraenses, meu passado está me “brechando”, está me mirando através das brechas da minha concentração.

A filosofia fala do presente, do eterno-presente (nos seus conceitos). Todo o seu esforço é para a atenção ficar aí, na luz sem flutuação de sombras, na luz sempre presente.

Mas sob a pressão das imagens do passado, o esforço se abre em brechas, pelas quais aquelas imagens ingressam na atenção. A atenção, então, sente falta da psicanálise.

Metafísica nas montanhas

Por que “os Tarahumaras são obcecados por filosofia”? Porque “eles não creem em Deus”, porque “eles desprezam o corpo”, e porque “vivem somente de suas ideias” – três características dos filósofos segundo Artaud.
Porém – nossa premissa, aqui: – não existe, nem existirá, nunca, a metafísica acabada, perfeita. Disso, duas alternativas.
OU (1): a tarefa metafísica é inverter as metafísicas, ou seja, é caminhar na contramão do seu sentido lógico, é ir dos seus conceitos para as suas definições e postulados, para encontrar, ainda aquém deles, a sua fonte primeira, da qual jorra a sua inspiração. E talvez só haja uma única fonte para todas as filosofias: “o Essencial, quer dizer, os princípios segundo os quais a Natureza se formou”. Assim, a tarefa da metafísica é tornar-se uma mística.
OU (2): a tarefa da metafísica é reinventar-se (reencontrar-se), numa nova ficção – que afinal define não tanto uma outra posição do ser, mas uma nova posição do sujeito que ficciona, frente ao ser de que fala: “os Tarahumaras se dizem, se sentem, se creem uma Raça-Princípio”*.

(*) Para todas as citações: ARTAUD, Antonin. Les Tarahumaras [1936]. In: Oeuvres. Paris: Quarto Gallimard, 2004. Pp. 753-755.

(Sensação ou) sonho da impotência II

De fato, porém, a impotência não é nada, não tem realidade em si mesma, pois a coisidade (res in re) é potência e não falta de potência.

Impotência (de fato, no destino e na duração) é só negação de potência (mediante outras potências).

A contemplação da sua própria impotência é, propriamente concebida, impossível; portanto, a contemplação da sua própria impotência é a atenção dada ao jogo das potências além da sua.

Reinterpretar o sonho passado, não como a impotência das pontas quebradas do lápis apontado, mas como potência de apontar.

(Sensação ou) o sonho sobre a impotência


Ao tornear o lápis, com um apontador de escola, atormentado, vejo, repetidamente, a cada vez que percebo despontar do interior de madeira a matéria do grafite, quebrar-se a ponta afinada. Entre a aflição e a esperança, repito agitadamente a operação, apenas para novamente me desapontar com a sua inutilidade.

O anjo da noite (Chagall)

Tarde da noite, você anda sozinho por uma rua vazia da cidade que ama. Alguém se aproxima, pega-lhe gentilmente no braço, para lhe dizer:

– Vem. Eu te ofereço o paraíso.

Você pensa que ele ou ela está de brincadeira, ou que se trata de um louco.

Mas se, tudo o mais permanecendo igual, ele ou ela lhe dissesse:

– Eu sou teu anjo. Vem. Eu te ofereço o paraíso.

Você ainda duvidaria?

Um corpo enquanto dura, vive politicamente

Enquanto dura, um corpo é uma forma atual, ou seja, também uma extensão e uma intensão.

A extensão do corpo envolve uma multiplicidade variante de corpos, os quais envolvem extensão, intensão e forma próprias.

Nesse sentido, como forma ou relação certa e singular entre corpos componentes, todo corpo é corpo político.

Na duração, a forma do corpo político regula a comunicação (do comum) das partes, mas sob dois aspectos:

(1) primeiramente, das partes “internas” constituintes do corpo político;
(2) em segundo lugar, em relação às partes “externas” com as quais o corpo político constitui um corpo político mais potente.

Obviamente, estes dois aspectos da forma, o interno e o externo, se influenciam mutuamente enquanto dura a forma do corpo.

Repetindo e completando

Repetindo:

Uma mera extensão não tem forma porque não tem intensão.
A intensão é impensável sem uma forma extensa.
Uma forma não dura sem uma extensão intensa.

Completando:

Uma mera extensão corpórea não tem forma singular porque não tem intensão divina.

A intensão e o desejo de um corpo são uma e mesma coisa. Esse desejo é uma potência. Ainda em termos corporais, porém, podemos dizer que não se trata de uma potência separada.

Em termos espirituais, pode-se dizer que a alma individual, enquanto ideia de um corpo singular, não é inteligível em si mesma, mas somente pela ideia do todo da qual ela se deduz.

Ou seja, a potência de um corpo singular depende da potência de Deus, do modo pela qual Deus afirma a existência singular do corpo.

Intensão, desejo, potência se confundem. Mas a intensão não é uma intenção. 

A intensão do corpo singular é um desejo, mas não é uma intençãoIsso quer dizer que o desejo corporal, como intensão, não tem um objeto intencionado; é uma intensão sem objeto ou não intencional.

Uma intensão só se torna intenção, quando surge um objeto para o desejo. Mas a intenção não é a razão ou a causa do desejo. O desejo não surge do objeto. O desejo surge como corpo desejante.