Dupla dualidade



Há duas naturezas: a produtora; a produzida.
E simultaneamente a Natureza é uma só.
Essa sua dupla dualidade (ser duas e junto ser uma só) é a natureza da Natureza.



Fotografias do escuro


O fotografável é o visível, aquilo que se escreve com a luz? Talvez, não. Podemos converter calor ou qualquer radiação não visível, mas captável e mensurável por um determinado tipo de sensor, em imagem fotográfica. Ou isso não seria fotografia?



Um tipo de discurso


Kafka nos mostra que:

1) somos capazes de dizer absolutamente nada, sob o modo de uma afirmação categórica de algo determinado;

2) um castelo se constitui positivamente com esse tipo de discurso.




animal - humano - máquina/aparelho


Os velhos moralistas espirituosos – um pouco ultrapassados, é verdade – sempre insistem para que nós, enquanto humanos, façamos de tudo para nos distinguir dos simples animais, e para que nos apliquemos nisso com as nossas mais nobres forças e faculdades. A moral, para eles, de certa maneira, se resume em afirmar uma atitude especificamente humana, destacada da animalidade (paixões, corpo, individualismo, mera sobrevivência, nudez, liberdade selvagem, libido, etc.).

Os moralistas hodiernos já não se preocupam tanto com isso. O que lhes preocupa é a nossa semelhança com as máquinas, nossa indistinção em relação aos aparelhos. Humanos, precisamos não ser máquinas. Criados segundo a imagem amplificada das nossas potências naturais, as máquinas e os aparelhos acabaram por nos fazer, à sua imagem, agir como autômatos, como máquinas e aparelhos nós mesmos, simples extensões suas.








Mundo-imagem-capital


No mundo de Berkeley: _ser é ser percebido ou perceber.
No mundo-imagem (Sontag): _ser é ser fotografado ou fotografar.

Assim, o capitalismo não é o mundo em que: _ser é ter.
Mas o mundo em que: _ser é ter ou ser tido.



História do futuro 4...



“Poucas coisas reforçarão mais a força fatal do impulso para o nomadismo que alastra do que as restrições à liberdade de circulação; nunca foi tão grande a discrepância entre a liberdade de movimentos e a abundância de meios de transporte.”


BENJAMIN, Walter. Rua de mão única [1928]. Trad. João Barrento. In: Rua de mão única; Infância berlinense: 1900. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. P. 22.

História do futuro 3...


“Mas não se trata das preocupações e dos sofrimentos de cada um, coisa que talvez se pudessem ajudar uns aos outros – é a observação do todo que ocupa a conversa. É como se estivéssemos presos num teatro e fôssemos obrigados a seguir a peça que se desenrola no palco, quer quiséssemos, quer não, e tivéssemos de fazer dela, quer quiséssemos, quer não, o objeto do nosso pensamento e do nosso discurso.”

BENJAMIN, Walter. Rua de mão única [1928]. Trad. João Barrento. In: Rua de mão única; Infância berlinense: 1900. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. P. 21.



História do futuro 2...


“Os alemães perderam definitivamente o mais europeu de todos os bens, aquela ironia mais ou menos evidente com que a vida de cada indivíduo se reclama alguma diferença em relação à existência da comunidade em que está inserido.”
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única [1928]. Trad. João Barrento. In: Rua de mão única; Infância berlinense: 1900. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. P. 20.



História do futuro 1...



Trechos de Walter Benjamin sobre a “inflação alemã” tão aplicáveis à nossa “inflação” de hoje em dia:

Mas toda esperança será vã enquanto todos esses destinos terríveis e sombrios forem apresentados pela imprensa diariamente, de hora em hora, sempre com causas e consequências fictícias, não ajudando ninguém a reconhecer as forças obscuras a que a sua vida passou a estar submetida. 
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única [1928]. Trad. João Barrento. In: Rua de mão única; Infância berlinense: 1900. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. P. 20.



O dia a dia do que não seria notável


A fotografia cotidiana (a foto qualquer) frequentemente nos mostra nada mais que o vulgo ou a coisa qualquer, quem e o que já estão aí como que desde sempre. Ela como que destaca do modo de ser da indiferença ou do tédio o que não merece ser mostrado, dia a dia.





Inteligência poética


Ao que parece, primeiramente apreendemos uma ideia de maneira poética, pela intuição da sua poesia. A poesia seria a primeira apreensão de uma ideia verdadeira, isto é, essencial e original; poesia, a nossa experiência primeva de uma ideia. Depois, a poesia – ou o encantamento da língua com a ideia – dissipa-se, ao se expressar como prosa, argumento, ciência, filosofia.

Acerca disso: a relação de Freud com Goethe (cuja poesia parece envolver de maneira sublime a ciência freudiana).




O que pode um texto de filosofia?


Mais interessante (porque mais importante) que a verdade de um texto filosófico, em si mesmo considerado, é o que se faz com ele. Seus efeitos de verdade.




Infinitas fotografias?


O número de imagens técnicas que um aparelho fotográfico digital pode produzir é muito elevado, mas finito. São, por exemplo: 6.000 x 4.000 pixels, com uma profundidade de 16 tons para cada uma das três cores. Isso possibilita: um total de 1.152.000.000 fotos. Das quais uma enormidade é semelhante a outra.



História num texto de filosofia pura


Num curioso trecho de um texto de filosofia fundamental-transcendental, Husserl escreve: “[...] pessoas sub-humanas [...]”*. Com isso, 1929 entra na metafísica.







(*) HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas [1929]. Trad. Pedro M. S. Alves. In: Meditações cartesianas e Conferências de Paris: de acordo com o texto de Husserliana I. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. P. 105.

Para o lado da imagem


Sinto-me atraído, além das ideias, também, e às vezes até mais, para a imagem (que, assim como ocorre com atração para a ideia, se mostra em seus aspectos passivos – imagem-impressão – e simultaneamente ativos – imagem-expressão).

Ideia-imagem, um mesmo elemento em modos distintos – modos de pensamento. Não há ideia que não implique alguma imagem? E imagem, que não envolva alguma ideia?

Sobre a primeira questão, lembro-me da secular nota de Spinoza : “quase nada podemos inteligir acerca de que a imaginação não forme, imediatamente (è vestigio), alguma imagem”*.



(*) SPINOZA, Benedictus de. Correspondance. Trad. Maxime Rovere. Paris: GF Flammarion, 2010. Lettre XVII, §5. P. 124.





Petição de princípio e a questão da fundamentação (exemplo da psicanálise)


Sim, a relação da psicanálise e do totemismo (enquanto ideias) constitui uma petição de princípio, segundo a análise linear da questão da fundamentação.

A psicanálise explica o totemismo, e essa explicação explicita e confirma a teoria psicanalítica.

Essa circularidade lógica é um problema impeditivo apenas quando se tem uma concepção arquitetônica da filosofia ou do pensamento. Digo arquitetônica, talvez não muito adequadamente, quando se entende a construção do pensamento a partir da metáfora da construção de uma casa, cujas partes mais elevadas se apoiam naquelas mais baixas, e finalmente naquelas assentadas sobre as suas sapatas fundamentais, que por sua vez se assentam num solo absolutamente firme.

A organização do pensamento (sua sistematização), no entanto, não se constrói verticalmente ou linearmente, mas em círculos ou em espiral. As partes ou as ideias do pensamento se desdobram indefinidamente umas das outras, incorrendo nesse processo necessariamente em contínuas petições de princípio, pelas quais aquelas ideias se afirmam, e também se transformam, mutuamente. Uma ideia do pensamento nunca é (realmente) separável da totalidade das outras.

Assim, a lógica da petição de princípio não é um impedimento, mas a efetividade (a lógica efetiva) do pensamento.






A economicidade da filosofia


Para mim, isto é, para alguém que como eu pensar ou não pensar nada acrescenta aos meios de conservação de sua existência, a filosofia é uma despesa improdutiva, uma extravagância. No entanto, ela não deixa de ser econômica.



A destruição espetacular de riquezas


A destruição espetacular de riquezas* é um modo primitivo de atividade econômica. Ela se destinava originariamente ao desafio dos rivais.

Ora, a economia moderna é ainda o espetáculo dessa destruição, mas globalizada, total e sem externalidade. Assim, a questão: – quem faz modernamente o papel do rival?



(*) Conferir: BATAILLE, Georges. La notion de dépense [1933]. In: La Part maudite. Paris: Minuit, 2011. P. 28.

A improdutividade contemporânea da política


Modernamente, as políticas de Estado são pensadas como despesa produtiva: como atividade que serve às condições da produção e à conservação da vida dominada.

Tem se tornado porém despesa improdutiva*, maldita, como o sacrifício, o luxo, o jogo ou a arte. 

Essa improdutividade da política então nos aproxima dos antigos?







(*) BATAILLE, Georges. La notion de dépense [1933]. In: La Part maudite. Paris: Minuit, 2011. P. 23 e sgt.

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A diferença entre acompanhar as notícias e fazer notícias. Teatro e história. Representar e pensar.


Já não devemos mais acompanhar as notícias


...elas nos prendem como capítulos de uma telenovela... não saímos mais do sofá... para nos tornarmos os eternos espectadores do teatro da política...

...as notícias se repetem, num ciclo amortecedor ou mortal... não são as notícias e os jornais que fazem a experiência de vida ou a história...


Para onde vamos?



A função política da crise do acontecimento é imobilizar a potência de pensar. Projeto niilista: o real se torna impensável; a dominação é facilitada. Já não é preciso governo.


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Os humanos inflam o mundo com palavras.
Até o mundo tomar o tamanho da Terra.
Essa é a mais fundamental das poluições.




Fotografia chocha


A exaltação da fotografia chocha é o desejo de transvalorizar uma incapacidade técnico-artística num pretenso estado-final da arte? Ou uma atitude cínica diante da técnica-arte monárquica? Ou os dois ao mesmo tempo?



Pensamento e crise


O acontecimento não é a crise do pensamento nem da ação. A crise do acontecimento é a incapacidade de julgar ou de determinar, definir, parar o pensamento, não de pensar. Justamente é a partir dos impasses de fora que se constitui e se intensifica o pensamento de fora, a modificação indefinida do pensamento, da potência de pensar, da potência de agir.

Não há modo de ser fora do pensamento, mas há o modo de ser do pensamento de fora. “De fora” não indica um objeto do pensamento, mas um modo, uma modificação, do pensamento.




Imagem-coisa


Afirmar, simplesmente, que toda imagem é uma coisa (e que toda coisa é uma imagem) não seria uma tentativa de fuga diante daquilo que constitui toda imagem, a sua dubiedade essencial (simul transparente e opaca) (simul representação e apresentação)? Não seria fugir do problema ontológico da imagem? Não seria obedecer à imagem, à sua ordem de fuga?





Alegria!


A melancolia é uma percepção da falta. Uma, duas taças de vinho. E quando se percebe que nada falta, que tudo é pulsão sem finalidade, que tudo vai adiante sem perseguir um alvo, a melancolia acaba. Alinhar-se à verdade é alegria.



A fotografia, um instantâneo?

Se prologamos o tempo de exposição fotográfica, por exemplo, por uns trinta segundos, aquilo que acontece em qualquer ato fotográfico, mesmo naqueles com um tempo de exposição bastante curto, torna-se perceptível. A fotografia não fixa o real, ela mostra, pelo contrário, o movimento de tudo. A fotografia se mostra como ela é, não um recorte instantâneo no fluxo real das coisas, mas como um procedimento de compressão do fluxo imagético real numa única imagem (que tomamos por instantânea).




A imagem mediatriz de Bergson


O esteta não se interessa tanto pela intuição filosófica, é verdade, mas pela imagem mediatriz, ligada a ela, e que é mais próxima dela que os conceitos de uma filosofia. Mesmo prisioneiro da imagem, e a intuição filosófica lhe permanecendo inacessível, ele estaria mais próximo da intuição do que o estudante de filosofia preso aos conceitos.




O endereço


É muito instigante e inquietante quando nos é dada a localização para um futuro encontro por meio de um endereçamento bastante complexo e burocrático, que aponte o local, ao qual devemos nos dirigir, como a pequena parte de uma parte mais ampla, que, por sua vez, é parte de uma outra ainda maior, e assim sucessivamente. A impressão se amplifica se são atribuídas a essas subpartes e partes de partes, de maneira incompreensível, ora nomes pomposos, galantes, ora siglas obscuras, ora sinais algébricos que parecem pressupor alguma lógica territorial que desconhecemos. Ir até o local, então, nos parece uma viagem para dentro de um corpo obscuramente organizado, que nos engole monstruosamente, como uma porção de alimento que percorre algum aparelho digestivo.







Massa amorfa, massa amorfa!!!


Lembro-me daquela mulher que – ela mesma bastante atraente, isto é, aglutinadora – gritava, bêbada... na direção dos outros, juntos, todos: – Massa amorfa, massa amorfa!!! Seu grito de guerra ao ano de 2016 que se ia inexoravelmente.

Hoje, essa expressão ressurge para mim, como que do nada, num texto de Flusser. Segundo ele: as imagens técnicas não foram “capazes de reunificar a cultura, mas apenas de fundir a sociedade em massa amorfa”.





Imagem e palavra


A imagem escreve um texto (conta uma história com palavras). A escrita figura uma imagem (desenha traços pretos, cinzas, azuis, vermelhos no papel). Não, não! Não levar, reduzir, transpor a imagem em palavra. A imagem é para ver – sem história, não para falar. A imagem que não fale. Como a escrita é pra falar. Ver a imagem, não algo através dela. Na fala, ouvir a música? Assim, um estrangeiro, de olhos fechados, num país em que se fala uma língua que ele desconhece absolutamente.

“O discurso e a figura têm cada um seu modo de ser; mas eles entretêm relações complexas e intrincadas.”
FOUCAULT, Michel. Les mots et les images. In: DEFERT, Daniel; EWALD, François; LAGRANGE, Jacques (Orgs.). Michel Foucault: Dits et écrits. Vol. I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001 [1994]. P. 650.


Duas determinações cruzadas do horizonte


1) Plano frontal: anterior-posterior. O horizonte não se deixa jamais apreender objetivamente. Não há conceito-objetivo de horizonte. Já que ele sempre circunda, está à frente, mas, também, sempre ao mesmo tempo, por trás. Revela de si um aspecto, e oculta, simultaneamente, outros.

2) Plano horizontal: acima-abaixo. O horizonte é o limiar do visível-inteligível. Marca o limite entre o que se manifesta (acima do horizonte) e o que permanece latente (abaixo do horizonte, invisível, impensável)

O horizonte é propriamente o cruzamento desses dois planos.


+++ gás


uma cobra infalível ataca dois gatos
que morrem virados
com a barriga inchada para cima
as patinhas moles dobradas
– não sei de onde
surge e insiste
uma esperança-sem-razão
de que ressuscitem



Percursos entre imagens e essências


As imagens parecem se oferecer à imaginação num prazer imediato, que demanda aderência.

As essências, à inteligência num labor dolorido, que impele a um afastamento.



Esquecer-me?


Eu sei A, eu sei B, C, D...
Preocupa-me saber A e não esquecer disso na hora H.
Um mal do saber está nessa preocupação.

Despreocupado, eu já não sei A, B ou D, como sabia, mas de outro modo, se o que eu passo a saber sempre me transforma.


++ gás



Vivo, ou envelheço, no ponto-limite de uma linha esticada imaginariamente a partir de um outro ponto, este real, segundo a ideia arbitrária de um certo habitante da Terra. Na ponta do real, diríamos. Um passo além, e caio no inexistente.




+ gás



Em geral, tomo um grupo de palavras estranhas, sonoras, como se fosse o convite erótico de uma porta semiaberta por um amante desconhecido. Sem o desejo de se conter, meu corpo se expande por ali, como um líquido, ou melhor, um gás. Não sai de onde está, mas vai através da abertura também, perdendo sempre algo da sua densidade. Cada vez mais gasoso.