A erosão do vento



Os pensamentos sistemáticos, as experiências coesas e as vidas comunitárias sistemáticas sofreram a “erosão do vento”. Restaram dessas sistematicidades apenas fragmentos desconectados uns dos outros.

De tal maneira que, no mundo atual, nossos rostos-máscaras-personas são feitos da colagem impura desses fragmentos oriundos da erosão histórica de diversas fontes de experiência.

Não há nada de mal, de incorreto ou de prejudicial com a impureza. Essa colagem assistemática de sensibilidades, máximas morais, regras de vida, crenças e desejos desordenados e desencaixados é extremamente complexa e, talvez, nos tenha tornado extremamente inteligentes, adaptáveis e resistentes.

Mas essa resistência pode ser também a nossa infelicidade – se a nossa duração terminar por purificar nossas personas novamente em uma experiência coesa (tornando sistemático o assistemático).

Contra-tualismo

O contrato se dá entre duas ou mais partes.

O contratualismo fundamenta a justiça do contrato na ideia da igualdade entre as partes contratantes. Quanto mais as partes são iguais (em seu poder ou em sua ascendência sobre a decisão dos outros), mais o contrato tende a ser justo.

A igualdade absoluta é a identidade. O contrato absolutamente justo seria aquele estabelecido entre partes idênticas.

Partes idênticas, porém, já estão, desde o início, de acordo entre si, como estão de acordo consigo mesmas. Nada precisam, portanto, contratar.

Ou ainda: partes idênticas são, em absoluto, uma só e mesma parte. Como o contrato requer, no mínimo, duas partes, partes idênticas não podem passar um contrato que as ligue uma com a outra.

Conclusão: absolutamente falando, todo contrato é essencialmente injusto.

Cursos da vida (curricula vitae)


Em geral, os pensadores que não gostam de balburdia, discussão, conflito, passeiam pelos campos quase desertos que rodeiam a sua cidade. 

Os que gostam, pelos bairros centrais, em cujas ruas não se pode andar sem se esbarrar em alguém.

Acontece alguns deles mudarem suas rotas. Depois de uma volta no centro, saem atordoados na direção do campo.


C. V.

Para o desempregado, C.V. não indica curriculum vitae, mas “círculo vicioso”. Ou seja, para ele, fica claro que o curso da vida é um giro em espiral de fora para dentro (quando, na virtude, ele deveria girar de dentro para fora).

Monotonia, tédio, angústia

Fora do seu elemento, o humano diz (no campo, a mão estendida acima dos olhos, protegendo-os contra a luz): – aqui, reina a monotonia.

No seu elemento (na cidade, entre os humanos e as suas utilidades): – aqui, reina o tédio.

Em todo lugar (a qualquer momento, surge, ou desaparece): – a angústia.


(Menos com o) Desejo de mais e mais

Dos “quatro remédios” (tetra pharmakon), que Epicuro nos receita, aquele do qual mais carecemos, para ser feliz, é saber que os bens realmente necessários, para tanto, são fáceis de obter.

O “grito da carne” (karkós phoné) não é a voz do desejo ilimitado, o desejo de mais e mais, que mais e mais nos distancia daquilo que é essencial para acalmar o mar de ondas que percorrem nossos corpos e seus humores.

A carne grita de fome, de sede, de frio e de calor...

Porém, quando a carne não grita mais, com que cera vedar os ouvidos para os sussurros do desejo de mais e mais que não se satisfaz com nada?

Ironia

Quando o irônico diz “A” com ironia, ele não quer dizer (não tem em mente) (nem significa) “não-A”.
Ele se posiciona entre “A” e “não-A”.

ironia (ironia (A)) ≠ A


Saussure, eu lhe digo, sussurre...

a guerra a guerra a guerra a guerra a guerra a guerra a guerra a guerra a guerra a guerra
nunca realmente idêntica a si mesma
entretanto... já devo ter perdido a conta
– a quantas andamos? esta será a 5ª, a 4ª GGM?

Em meio a isso, num mar

Estar em meio a isso (issos): um mar de ondas, que nos fazem submergir, uma após a outra, em intervalos muito curtos; suficientemente curtos para que não enchamos os pulmões de ar (e devenhamos balão ou anjo); suficientemente longos para que não percamos o fôlego de maneira absoluta (pedra).

Estar em meio a isso e, ainda assim, ser livre para o pensar (o pensar que se quer, o pensar das ondas). Não façamos da liberdade um vazio. Para além de (ao modo do com) a sobrevivência, a liberdade.

A liberdade, em meio.



Princípio biográfico

A natureza tem seus princípios (archai), suas linhas de pulsão, seu campo de forças, imanente e... histórico, seu campo (não de regras) de canais de escoamento, de condução, de formação, de redistribuição, de concentração de sua causalidade e potência. Assim, também, uma vida humana.

Como exemplo disponível, esse princípio biográfico: – entre dois pontos, inventar e percorrer sempre um caminho complicado. (De tal modo complicado, que, muitas vezes, perde-se da vista e da mente o segundo ponto).

“Conceder”


Somos também obrigados a fazer concessões ao pensamento de humanos cujas vozes, para nós, soam dentre as mais adversas. Assim, seu pensamento repete-se a nosso modo:
A verdade se encobre com a resposta – mas, se desvela com o questionar.