Do outro a narciso, de narciso à massa


Quando diante do mundo, a vida entre os iguais é uma espécie de suplício, dor e sofrimento, quando o mundo recusa ao indivíduo prazer, glória e riquezas, deixando-lhe apenas humilhação e fraquezas, é compreensível, para evitar a total falência e gerar um tanto de satisfação consigo mesmo, o recuo e a retroflexão, sobre o próprio eu, do amor aos outros e às coisas do mundo. Nessas condições, o próprio eu individual se torna objeto do seu amor (que, em condições opostas, está dirigido para fora, para o mundo); e o mundo, um reino de narcisos (essas flores cuja beleza interessa e apraz somente a si mesmas).

A intensidade retroflexiva da força amorosa (libidinal) é, porém, instável. Ao se acumular no eu, ela procura, ao mesmo tempo, cada vez mais intensamente, a sua destinação primeira: o fora. Mas, marcada pelo movimento de retroflexão, essa destinação impulsiva já não se pode dar no mundo na direção dos outros, da alteridade, da pluralidade. Ela precisa apenas repetir, ou refletir, o seu objeto (o eu) fora de si, identificando-se com o mundo. Nessas condições, só é possível amar o mundo se o mundo se torna o eu; o eu, o mundo. Isso é a forma da massa.






O imprevisível, o improvável e o preferível


O imprevisível é o acontecimento (que ainda escapa ao cone espacial e temporal do conhecimento determinado). O previsível, por sua vez, o mero evento.

No limiar do imprevisível, está o improvável (no limiar da eventualidade e à beira do trágico).

Situar-se ali ou aqui: às vezes, é uma questão de preferência (isto é, de acomodação/disposição do narcisismo).






O sensível mais próximo do puramente inteligível


O céu de estrelas é a imagem que, para nós, mais se aproxima da eternidade: ainda assim, move-se, perceptivelmente.

(Aristóteles pensava as estrelas como substâncias sensíveis eternas)







O devir sob controle


Nós atribuímos a geração e a corrupção, o devir, o aparecer ou o desaparecer de tudo o que aparece ou desaparece de nossa vista, sentidos, cabeça e humor, a quatro causas, à arte, à natureza, à fortuna (a deusa dos bons e dos maus ventos, da sorte e do azar) ou, ainda, ao acaso.

Mas, para Aristóteles (Metafísica, 12, 1070a5-10), na realidade, as causas são apenas de dois tipos. As coisas existem ou a partir da arte ou a partir da natureza.

A fortuna (Tyche) significa, de fato, apenas uma privação de arte. Se uma coisa de arte dá certo ou não (um bolo, por exemplo), isso não depende da sorte ou do azar, mas só da competência do artista. Um artista pleno, certo, sempre produz artes plenas, certas, infalivelmente. Um artista incerto, que não domina totalmente a sua arte, ora produz coisas certas, ora incertas. E isso não depende da fortuna, mas da capacidade do artista.

O acaso (ou a contingência sem causa, automática, automatos), por sua vez, é apenas uma privação de natureza (como necessidade causal). Se uma coisa natural não vem a ser de modo pleno (uma monstruosidade, por exemplo), isso não se deve ao acaso, mas a uma privação, uma insuficiência, de natureza.

Nada, porém, nos força a pensar como Aristóteles. Nada nos força a pensar de um jeito ou de outro, senão a própria realidade, a própria verdade do real, que conduz o nosso pensamento (ocasionalmente, para o lado da sorte ou do azar, ocasionalmente, para o monstruoso).





Filosofia sociológica do tipo humano normatizado, na sua relação com a massa

O tipo humano normatizado (ou, como se costuma dizer, complexo), vinculado a mentalidades e comportamentos padronizados, enquadrados em normas, constitui um sistema de diferenças.

Um sistema de diferenças é um mecanismo de confinamento e isolamento do humano em sua individualidade; individualidade essa, determinada por sua persona, pelo seu papel específico no sistema de diferenças.

A individualização normatizada é um efeito de uma multiplicidade de ordens (comandos), por isso, a um sistema de diferenças corresponde um sistema de poderes, uma hierarquia.

Indivíduos isolados uns dos outros, de fato, se desconhecem (ou, o que dá no mesmo, só se conhecem, a si e aos outros, em razão do seu isolamento e normatização). Em seu isolamento, os indivíduos são dotados de um poderoso “temor do contato do desconhecido”*. Pois todo contato se apresenta como uma possibilidade de ruptura do isolamento em sua persona que constitui o indivíduo normatizado.

Para o indivíduo, todo contato com um outro é uma ameaça erótica ao isolamento ou à descontinuidade individual**.

Todo contato é uma ameaça de morte. E isso se liga, diretamente, ao fato de que a essência da ordem é a ordem de fuga. Foge, senão te mato! A obediência à ordem é a fuga, ou seja, o envolver-se, o dobrar-se para dentro de uma persona, de um indivíduo normatizado que obedece a ordens. As ordens são as mais variadas injunções que perfazem o espírito humano.

A maneira cada vez mais moderna de se desfazer da normatização e do isolamento individual (tão modernos), no sistema de diferenças, é abolir as diferenças, a normatização e a descontinuidade pela produção mais ou menos espontânea de uma massa humana aberta (ou contínua).

Mais ou menos espontânea... A espontaneidade ou não, esse é o enigma político da massa.






(*) CANETTI, Elias. Massa e poder. 4ª reimpressão. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

(**) BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2013 [1957].