Acerca da providência

No capítulo XVII, da terceira parte do seu Guia para os perdidos, Maimonides (1135-1204) discute as cinco teorias acerca da providência divina conhecidas até então. Quatro são positivas; uma, negativa.

1. A teoria negativa diz simplesmente que não há qualquer providência. Tudo o que acontece no universo e tudo o que ocorre, para qualquer ser humano, é devido ao acaso puro.

Maimonides diz que, entre os judeus, alguns ateus defenderam tal teoria. Mas ele a atribui propriamente a Epicuro.

2. A segunda teoria, a primeira positiva, Maimonides diz ser a de Aristóteles. Há providência, mas apenas parcial. Uma parte do universo vincula-se à providência, enquanto a outra é abandonada ao acaso.

A parte universal sob o governo direto de Deus é a celestial. A abandonada ao acaso é aquela abaixo da esfera da lua, o corpo celeste mais próximo a nós.

Deus governa o que é permanente e de movimento constante, deixando ao acaso desregrado a variação e a duração do aleatório individual.

A influência da providência divina, na esfera sublunar, assegura permanência e imortalidade até o nível das espécies, mas deixa os indivíduos à sua sorte.

De fato, nem mesmo os indivíduos foram inteiramente abandonados.

Aquela porção de matéria prima purificada e refinada, ao receber a faculdade de crescer, foi provida com propriedades que a permitem durar um certo tempo na existência, atraindo o útil, repelindo o inútil.

A porção de matéria prima sujeita a um desenvolvimento ainda mais acentuado foi provida com outras propriedades para sua proteção e preservação: ela recebeu uma nova faculdade, a faculdade da sensação, para se mover na direção daquilo que é favorável ao seu bem-estar e na direção contrária ao que é desfavorável.

A porção de matéria prima ainda mais refinada foi provida com a faculdade intelectual. Com esta faculdade, ela possui uma propriedade especial pela qual cada indivíduo, de acordo com o grau de sua perfeição, é apto a gerir, calcular e descobrir o que é favorável para a sua existência temporária e, ao mesmo tempo, para a permanência da espécie.

Todos os outros movimentos, entretanto, feitos pelos indivíduos de cada espécie, são acidentais e não o resultado de lei e de conduta divinas.

Neste aspecto, segundo Maimonides, Aristóteles não vê diferença alguma entre o que acontece a um punhado de formigas e o que acontece a um punhado de homens pios. Não discrimina o que se dá a uma mosca que cai numa teia de aranha daquilo que se dá a um profeta que se encontra com um leão selvagem no deserto.

Para resumir, a opinião de Aristóteles é a seguinte: _tudo o que é constante na natureza está em estreita relação com a providência divina. Mas o que não é constante não segue lei certa, e é resultado do acaso.

3. A terceira teoria é aquela à qual aderem os maometanos Ashariyah. De acordo com eles, tudo no universo é resultado de vontade, intenção e leis. Nada é deixado ao acaso.

Tudo, absolutamente tudo, no espaço e no tempo, acontece segundo o decreto prévio de Deus, no lugar e no instante previamente determinados por Deus.

Os Ashariyah são então compelidos a assumir a predestinação de todo movimento e repouso dos seres vivos e a reconhecer que não se encontra no poder dos humanos fazer ou deixar de fazer qualquer coisa.

Segue-se disso, segundo Maimonides, a inutilidade dos preceitos, pois as pessoas, às quais as leis são dadas, são incapazes de fazer qualquer coisa, nem fazer o que a lei lhes obriga, nem deixar de fazer o ela os proíbe.

De acordo com esta teoria, apesar de tudo ser predestinado, as ações divinas não possuem uma causa final, nenhum modelo ou fim que as guie.

Tudo no universo acontece segundo a vontade de Deus, mesmo as injustiças e os pecados, mesmo as recompensas para os ímpios e as punições dos pios. Ocorre até mesmo Deus infligir dor a seres humanos bons e justos. Desgraças desse tipo, como tudo no universo, os Ashariyah atribuem à vontade de Deus.

4. Para a quarta teoria, o ser humano possui uma vontade livre. Com isso, a lei que comanda e proíbe, pune e recompensa torna-se inteligível e tem razão de ser.

Todas as ações de Deus são devidas à sabedoria. Não há injustiça em Deus e ele não aflige os bons.

Os Mutazila professam esta teoria. Eles defendem que Deus está ciente de tudo, inclusive do vento que faz cair a folha da árvore, e que Sua providência se estende sobre todas as coisas do universo.

Esta teoria implica alguns absurdos e contradições.

Os absurdos são os seguintes. Aqueles que nascem defeituosos ou o massacre dos inocentes acontecem, segundo a sabedoria divina, sem porém nós sabermos como, para o bem dos deficientes e dos injustiçados. Estes desgraçados não sofrem nenhuma punição divina, mas gozam da sua bondade, em vista de uma vida futura. Até mesmo as moscas e os carrapatos massacrados receberão numa vida futura a recompensa por sua morte prematura.

Eles se contradiziam porque criam que Deus tudo sabe, enquanto, por outro lado, também, que o ser humano tem a vontade livre. Basta refletir um pouco, escreve Maimonides, para descobrirmos a contradição que há nisso.

Para os Mutazilites, Deus não inflige dor arbitrariamente, mesmo quando aflige os justos, mas por sabedoria. Todo ser afligido por alguma dor neste mundo terá sua recompensa na vida futura.

5. Segundo a quinta teoria, a vontade do ser humano é perfeitamente livre. Mas para tanto é preciso uma dose de acaso. Essa é a teoria dos judeus ou da lei mosaica.

O ser humano faz o que está em seu poder, segundo sua natureza, sua escolha e sua vontade. E sua ação não se deve a nenhuma faculdade criada com esse propósito. Todas as espécies animais irracionais também dispõem de vontade livre.

É da vontade divina todos os seres vivos se moverem livremente. Ninguém entre os judeus nega isso.

Outro princípio mosaico fundamental é que o incorreto não pode ser creditado a Deus de modo algum. Todo os males e as aflições, assim como todas as felicidades, são distribuídos com justiça infalível.

Toda a mínima dor de qualquer ser humano lhe é infligida por razão de algum pecado seu, enquanto todo seu prazer decorre como recompensa por alguma boa ação.

Tudo nos negócios humanos acontece segundo o mérito. Tudo é conduzido com justiça. Deus só pune aqueles que merecem.

A opinião própria de Maimonides é uma subespécie desta quinta teoria.

Segundo ele, na porção sublunar do universo, a providência divina se estende apenas sobre os indivíduos da espécie humana. Apenas para a humanidade a variação das fortunas individuais, os bens e os males incidentes, é resultante da justiça divina. No tocante aos outros indivíduos, ele concorda com Aristóteles. Se uma folha cai com o vento, não é por intervenção divina, mas por puro acaso.


MAIMONIDES, Moses. The Guide for the Perplexed. Trad. M. Friedländer. 2 ed. New York: Dover Publications, 1956 [1881, 1904].

Classificação dos atributos

Maimonides (1135-1204) e os cinco tipos de descrição de um objeto mediante um atributo positivo.

1) Descrição por definição, definição nominal, isto é, mediante a explicação do nome do objeto. Definição que estabelece a essência do objeto.

2) Descrição por parte da definição do objeto. Aqui se descreve parte da essência. Definição que complementa a essência do objeto.

3) Descrição mediante qualidades, que propriamente são diferentes da essência do objeto, nem a estabelecem, nem a complementam.

A qualidade pode ser (a) intelectual, moral; (b) física; (c) afetiva, passiva; (d) derivada da quantidade.

4) Descrição de um objeto mediante a sua relação com outra coisa.

5) Descrição de um objeto por suas ações.

Destas cinco possibilidades: somente a quinta pode adequadamente descrever a Deus. Deus como agente, descrito como Criador do mundo.

Mas o que isso tem a ver com o que aconteceu em Kopenhagen?



MAIMONIDES, Moses. The Guide for the Perplexed. Trad. M. Friedländer. 2 ed. New York: Dover Publications, 1956 [1881, 1904]. Part I, chap. LII, p. 69.

Aos ignorantes

Frequentemente, quando, num momento, estimamos dominar uma situação com toda clareza e distinção, estamos o mais cegos, enganados e afastados da verdade.

Nossos olhos são facilmente ofuscados pela luz da certeza mais duvidosa.

O impossível não é

Impossível, aqui, quer dizer o impensável.
Não é, aqui, quer dizer o sem essência.


O pensável é pensado segundo a essência ou segundo a existência.


O pensável tem essência.
Pensável, aquilo cuja essência pode ser pensada segundo uma definição genética, aquela que mostra um vir-a-ser.

O existente tem essência.
Pensável, aquilo cuja existência pode ser pensada segundo razões e causas de um vir-a-existir.
Pensável, aquilo cuja existência pode ser, em certa medida e de algum modo, imaginada.


O impossível não é.
A proposição permite várias inversões.

O existente é pensável.
Interessante complemento: mesmo que não seja pensável por uma mente humana.

O possível é.
O possível é o pensável. Se pensável, pode ser imaginado. Se imaginável, tem entidade.

Mas, o que isso tem a ver com o atentado no avião que vinha de Amsterdã?
Mas, o que isso tem a ver com a manifestação antiditadura, no dia de Ashura, no Irã?
Mas, o que o atentado tem a ver com a manifestação?

O valor do rebelde

A beleza e o valor do rebelde repousam na sua singularidade.

Por isso, quando os rebeldes se multiplicam, a rebeldia desaparece no mimetismo, e a sociedade aparece com uma forma deformada, monstruosa, defeituosa.

Perde-se então a possibilidade da contemplação estética da rebeldia.

Razão e pedagogia V

Em geral, porém, a pedagogia não trata propriamente do conteúdo, mas apenas do método de ensino. Como se o conteúdo da ciência, a verdade, fosse consensual, determinado, imóvel.

Assim, o problema não se põe tanto, comumente, no que ensinar, mas no como.

Deixar o como a cargo do professor, então, é visto como ausência de pedagogia.

Razão e pedagogia IV

Hobbes discute a autoridade no cap. XVI do Leviatã, logo antes de entrar propriamente na parte política do seu tratado.

Temos o autor e o ator. O ator é a pessoa cujos atos e ditos pertencem propriamente ao autor, autor que o ator representa, ator que é autorizado pelo autor a agir e dizer em seu nome. Neste caso, o ator atua por autoridade.

“[...] in which case the actor acteh by authority.”


Hobbes compara autor e proprietário, autoridade e propriedade. A autoridade remete ao autor, como a propriedade ao proprietário.

Como a propriedade, a autoridade é um direito. A autoridade é um direito de agir e de dizer. Aquele que age ou atua por autoridade (como no caso do ator autorizado pelo autor) o faz com a devida licença daquele a quem cabe o direito.

No caso do professor, tudo o que ele faz e diz, ele o faz e diz por autoridade, isto é, autorizado pelo autor. O autor é aquele a quem cabe o direito sobre o que é dito e feito.

Digamos que o autor é autor de um conteúdo e de um método. Ele autoriza o professor a agir e a dizer tal conteúdo sob condição de que o faça segundo seu método e não segundo outro método.

Razão e pedagogia III

Quem tem autoridade para ensinar? Quem sabe a verdade.

correção: _Mas, não! É preciso saber também como ensiná-la. _Correção metodológica.

correção: _Mas, não! A verdade é apenas uma hipótese, uma suspeita. É preciso criticá-la, saber como se chegou até ela, isto é, quais são os critérios da verdade, e quem estabeleceu estes critérios e com que interesses. _Correção sistemática.

Razão e pedagogia II

“...quem tem autoridade para ensinar, tem também autoridade para escolher a via, o método, de ensino que preferir”.

Talvez o problema aqui esteja na separação, um tanto tradicional, entre conteúdo e método de ensino. De fato, conteúdo e método, conteúdo e expressão, mensagem e canal, não se distinguem tão absolutamente.

Quem percebe este problema como uma ameaça é aquele que defende com mais veemência uma pedagogia menos livre e quer desautorizar o professor.

Razão e pedagogia I

Spinoza coloca, como uma simples evidência da razão, um princípio da pedagogia mais livre:

“[...] qui authoritatem docendi habet, habere etiam authoritatem eligendi, quam velit viam.”*

Traduzo: “...quem tem autoridade para ensinar, tem também autoridade para escolher a via, o método, de ensino que preferir”.

Quando retiramos ao professor essa possibilidade de escolher o método pelo qual quer ensinar, retiramos também sua autoridade de ensinar. Fixamos o método, então, subtraímos a autoridade ao professor. Quando o método é autor, o professor é apenas ator.


* SPINOZA, B. Tractatus theologico-politicus, cap. XI, p. 143 da primeira edição.

O governo da incerteza




Até pouco tempo atrás, os governos haviam abandonado o ideal da polícia, o sonho de um controle absoluto dos indivíduos. Contentou-se com artes de governo mais incertas, e também mais econômicas, ou seja, com o controle estatístico da população. Os acontecimentos aleatórios e singulares eram aceitáveis dentro de certos limites.

O aleatório, o incontrolado, porém, tornou-se insuportável para os governos. Ligado a isso, o desenvolvimento da informática e da burocracia digital parece permitir o rastreamento individual eficaz e econômico.

Se um conhecimento certo já não é mais pensável, pelo menos, tornou-se preciso reduzir drasticamente as margens de erro do conhecimento estatístico.

Divinitus

Do ponto de vista humano, o acontecimento é o aleatório, o singular; o evento, o programável, a manifestação particular de um universal.

Do ponto de vista divino, divinitus, entretanto, não há acaso nos acontecimentos.

A episteme da incerteza

Com o conhecimento de quinto gênero, o estatístico, a ciência humana atinge um novo patarmar epistemológico. Não se sabe nada ao certo.

Não se sabe o certo, mas o provável. Não se sabe nada com certeza, mas apenas provavelmente. Já não se pergunta pela causa, mas pela probabilidade da relação entre dois eventos.

Dado A, qual a probalibilidade de que B se dê também?

A incerteza pode estar apenas do lado epistemológico, no modo pelo qual nos conhecemos o ser das coisas. A incerteza, nesse caso, estaria ligada à nossa incapacidade momentânea de conhecer absolutamente a causa das coisas.

Mas a incerteza pode estar – como diria Epicuro – do lado ontológico. O próprio ser das coisas é incerto e envolve o acaso, o aleatório, o absolutamente singular que não se deixa subsumir a um princípio universal.

A ciência estatística é uma solução para o controle do aleatório, do acontecimento. Deixa-se de lado a causalidade, como princípio explicativo, e procuram-se, no devir do acaso, certas regularidades, certos padrões de probabilidade, embora dentro de limites.

O impasse do humanismo

Para libertar-se do arbítrio divino, o ser humano inventa a episteme, a causalidade. Mas na causalidade absoluta, ele perde a liberdade do seu próprio arbítrio, como no mito trágico, sob uma deusa ainda mais inflexível, Ananke, a Necessidade.

Duas saídas para o humanismo (não as únicas). Ou aceitamos que o mundo é governado por deuses, não por Ananke, mas por deuses flexíveis às nossas preces e homenagens, deuses influenciáveis; ou introduzimos o acaso, e com ele a possibilidade da liberdade. Mas o que é o acaso senão outra divindade?

Novamente, pode ser o Acaso (Tykhe) uma divindade surda, insensível ao apelo humano, ou uma divindade sem cera nos ouvidos. Nesse segundo caso, teríamos de volta a religião institucionalizada, a teologia como a ciência do que agrada aos deuses.

No primeiro caso, uma episteme da incerteza.

O acaso, a singularidade, para além do trágico

Encontramos uma versão elaborada daquela frase lapidar, abrupta e grega – “nihil ex nihilo” –, em Lucrécio (De natura, livro I, l. 150):

nullam rem e nilo gigni divinitus unquam”.

A qual poderíamos verter assim:
Nada vem do nada, nem mesmo sob inspiração divina.

A física (episteme humana) tem seu impulso no desejo de provar essa tese, para tranquilizar o ser humano, para fazer com que ele perca o medo do extraordinário, do sobrenatural, daquilo que do nada adviria.

Fique tranquilo, do nada nada vem. Sequer divinamente. Tudo tem uma causa. É virtualmente possível encontrarmos as causas de tudo.

Isso (esse trabalho, essa função da física de eventualizar os acontecimentos) tem inicialmente uma função emancipadora e humanista.

Então, por que Epicuro se insurge (DL, X, 134) contra os físicos ou fisicalistas?

Porque, levada ao extremo, a tese de que “tudo tem uma causa” nos conduz ao determinismo e subtrai a liberdade ao ser humano enquanto sujeito (aqui, no sentido de causa própria de suas ações). O determinismo suprime o sujeito no humano, apaga o projeto humanista. Com isso, tendencialmente, caímos no fatalismo. Na aceitação do que é como o que é racional.

Se nada vem do nada, sequer divinamente; se tudo, na matéria, tem uma causa também material; se o corpo não sofre nenhuma influência do imaterial, do espiritual; então a ação humana, a práxis, que tem um desdobramento na matéria, não pode encontrar seu impulso no livre-arbítrio do sujeito nem na sua alma, e deve ser explicada apenas pelo corpóreo, próprio ou alheio.

No final das contas, para a episteme do determinismo da natureza, o ser humano não é a causa própria de suas ações, mas seu agir é determinado por causas exteriores que lhe escapam completamente.

Obviamente, Epicuro é um fisicalista. Mas um fisicalista humanista. Ele quer liberar o ser humano do medo dos deuses (sem porém negar a existência divina), mas também não quer deixá-lo entregue ao simples jogo natural.

Por isso, Epicuro questiona a causalidade absoluta. Nada vem do nada, correto. Tudo tem uma causa, correto também. Entretanto, o efeito não tem sempre uma única causa determinada.

Epicuro não eventualiza completamente o acontecimento.

Um acontecimento, afirma Epicuro (D. L., X, 133) pode surgir de uma causa necessária, a única que aceitam os deterministas, ou pode depender da fortuna (da Tykhe, do acaso), ou, ainda, pode depender de nós mesmos.

Ora, essa contingência da causa, porém, subtrai as condições para o sucesso absoluto da episteme humana. Preserva-se o papel do acontecimento, do incognoscível.

Maquiavel e Epicuro

Um acontecimento, afirma Epicuro (D. L., X, 133), pode surgir de uma causa necessária, a única que aceitam os deterministas, ou pode depender da fortuna (da tykhe, do acaso), ou pode depender de nós mesmos.

Lembro-me que, para Maquiavel, no cap. XXV do Príncipe, nossas ações são 50% determinadas pela fortuna, 50% por nosso governo. Ou seja, para Maquiavel, as coisas dependem do acaso ou de nós mesmos, ou parcialmente de um e de outro, mas nada é necessariamente. Embora, possa ser dito que Maquiavel estivesse tratando exclusivamente dos negócios humanos, por outro lado, é verdade, uma pedra cai necessariamente. E necessariamente, também, por exemplo, amamos aquele que imaginamos ser a causa de nossa alegria.

Episteme e ciência do ser humano

Tenho falado de episteme humana e não de ciência do ser humano para distinguir esse saber humano da forma positiva da ciência, tal qual a conhecemos atualmente. A episteme envolve, além dos critérios empíricos do positivismo, critérios de conhecimento puramente racionais, isto é, metafísicos.

O trágico e a episteme II

“...pois seria preferível seguir o mito, no tocante aos deuses, do que se submeter ao destino dos fisicistas: o primeiro, com efeito, esquiça a esperança de tornar flexíveis os deuses, ao honrá-los, enquanto o outro apresenta a inflexível necessidade”.

Epicuro, Carta a Meneceu, in: LAÉRCIO, Diógenes. Vida e doutrina dos filósofos ilustres. Livro X, §134.

Isso, como tudo, fica para ser pensado.

No fragmento, aparecem o elemento mítico e o fisicista, e não, pelo menos não expresamente, o trágico.

O trágico apresenta o divino surdo ao apelo humano. O deus absconditus, insondável e inflexível. Tudo no humano é pré-destinado, mas ele não é consciente disso.

A religião mítica, supersticiosa, do mundo encantado, abre os ouvidos dos deuses. Retira a cera. Os deuses passionais se encantam com o canto humano in gloriam dis. Isso deixa uma abertura para o humanismo, mais precisamente, para uma religião humanista. Os deuses em parte sondáveis são, porém, flexíveis. Os deuses concedem aos homens os meios de sua justificação. Mas tudo aqui pode ser superstição e medo.

Os fisicistas, no fragmento, representam a episteme humana, mas não emancipadora, que apresenta a necessidade do acontecimento como algo cognoscível, como evento. Deus, enquanto natureza (physis), é sondável, mas inflexível. O projeto humano deve flexionar-se. O humano resigna-se diante do dado. Pois o dado, o fato, é o divino. Os fisicistas, aqui, são os deterministas fatalistas. É a dissolução da situação trágica no fatalismo.

O trágico e a episteme

Confusão na alma humana, o trágico, muito simplesmente, é o lance de liberdade contra a necessidade; o embate do que gostaríamos que eventualmente acontecesse com o que acontece inevitavelmente; a discrepância do evento com o acontecimento.

O evento é o que compete ao humano, o previsível. O ideal projeto do humanismo. O projeto humano.

O acontecimento, embora necessário, é imprevisível, além do humano. É pertinente ao autodesdobramento do não-arbitrário, mas seu projeto é divino.

Do ponto de vista humano, o acontecimento é arbitrário, e o evento, justo. Do ponto de vista divino, o acontecimento é sempre justo, e o evento, simplesmente, não existe como tal.

A episteme humana torna previsíveis os acontecimentos, os eventualiza. Com isso, o acontecimento é como que domesticado, mas deixa de ser acontecimento e divino. A eventualização dos acontecimentos nos aparece como divinização da humanidade.

Apenas detalhes, ou não são?

Foto: Huynh Cong Ut


Para Hegel, história é a Grande História, a história dos Estados, dos vitoriosos, das suas guerras, dos seus grandes homens, que magistralmente passam o umbral do esquecimento para a “glória imortal”*.

O sujeito da história é a divindade encarnada nestes homens, que, através destas guerras, levam adiante, mesmo sem saber, inconscientemente, o plano da razão no mundo.

Todo o resto múltiplo, as minúcias, são desprezíveis; deve ser esquecido. Os meros adornos do progresso não merecem consideração histórica. O que importa são as transformações efetivas do espírito, a afirmação da razão acima do sofrimento dos indivíduos, simples meios da história.

Já Walter Benjamin enaltece o cronista, que conta toda a história, em todos os seus mínimos detalhes, minúcias, meandros intermináveis. Só assim o gesto da menina nua, que chora para sempre, adquire um sentido histórico**.

Para a história da menina da foto, ver: estadão.

* HEGEL, G. W. F. Principes de la philosophie du droit. Trad. Jean-François Kervégan. Paris: Quadrige / PUF, 2003 [1821]. §348, p. 435.

** Cf. a tese III de Walter Benjamin, Sobre o conceito de história.

Anotações sem fim

A informaçãoBLOG é uma anotação que compõe, também com sua decomposição, uma anotação sem fim. Não se sabe o que ela compõe; e o que ela informa não tem forma.

Mera camada posta sobre outra. Mas, com interpenetração. Com fusão. Com desaparecimento.

Um processo informador de seu processo de deformação.

Suicídio como contradição performática IV

Riobaldo, o filósofo, conta a história de Davidão, que, morto de medo de morrer, faz um pacto, garantido pelo Não-há, com Faustino.

Se, nos percalços e peripécias das batalhas, chegasse a vez derradeira de Davidão, seria Faustino que morreria em seu lugar. Para tanto, Davidão passava para Faustino, em avanço, algo como 10 mil contos.

Ocorreu que, depois de uns tempos, e com o recrudescimento das lutas, Faustino se arrepende do pactuado, quer desfazer tudo e devolver o dinheiro para Davidão.

Porém, para Davidão, pacto é pacto, tem que ser respeitado. Faustino não concorda, porque ele não quer mais isso. A discussão se acende e se aquece. Os dois lutam, primeiro com as palavras, depois com os corpos.

E vai nisso, cada vez pior, até que Faustino encontra o punhal e desafia de morte seu amigo.

Esse é o impasse de Faustino. Se mata, morre-se.

O punhal na mão de Faustino, empunhado. A ponta, a sua máxima ponta, tocando a pele do peito de Davidão, empurrando já ela para dentro. Mais um pouco, e o ataque de Faustino entra em contradição performartiva.

Isso é o suicídio.


Riobaldo, apud ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. P. 85.

O que é a filosofia, segundo Riobaldo

“Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai adiante. Invejo é a instrução que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!

Sendo isso. Ao dôido, doideras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção”.


Riobaldo, apud ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. P. 100.

Secularismo político

"There's a call for political secularism emerging in Iran"
Behzad Yaghmaiam, Iranian author, fonte: Al Jazeera

Essa reivindicação por secularismo político surpreende. Parece inverter o que se reivindicava 30 anos antes: a espiritualidade política.

Logo, talvez seja preferível o Irã não voltar atrás. Mas ir adiante na transformação da política.

Suicídio como contradição performática III

Acontece que, para Spinoza, não há sujeito existente que não imagine.

Entendamos o sujeito, aqui, o mais tradicionalmente, como aquilo que é a causa própria de suas ações, e que é consciente de si (apenas não consideramos o terceiro critério da tradição, o sujeito que é substância, subsistente por si mesmo ou causa de si mesmo).

A imaginação e a paixão fazem parte da existência, da vida, dos encontros, do percurso, sempre também à revelia do sujeito.

Somente, ao imaginar, ao se apaixonar, ao se afetar, ao esbarrar, ao encontrar e conhecer os entes do mundo, o sujeito toma consciência de si mesmo, como existente, como ente-aí, entre outros.

Suicídio como contradição performática II

Muitas vezes, resta um testemunho. Como este, que se indica aqui.

Então, se aí já não fala o sujeito mesmo, seria preciso lê-lo como um documento da imaginação, da potência imaginativa.

Suicídio como contradição performática

Para Spinoza, o suicídio não é só uma contradição performática, um ato que nega a si mesmo, é mais, é uma impossibilidade ontológica, não pode se dar, não acontece, não é.

Como poderia uma potência que só quer se afirmar, só quer saber de se afirmar, negar-se na sua ação, ser a causa mesma, afirmativa, da sua própria negação? Impossível. Logicamente e ontologicamente.

Ora, de fato, acontece que as pessoas se matam.

Então, ou somos também uma potência negativa, o que é impensável na ontologia afirmativa de Spinoza, ou não somos, propriamente, adequadamente, a causa mesma de nossa negação.

No suicídio, portanto, a causa mesma envolve outra coisa além do suicida. Isso é, a sua paixão, a paixão pela qual é tomado.

O sujeito apaixonado já não é mais totalmente o sujeito, a causa própria de seus efeitos. Ele continua sendo causa de suas ações, mas apenas parcialmente. A outra parte compete à paixão, às paixões.

A paixão possui uma dinâmica própria, um conatus próprio, um desejo próprio de persistência, de afirmação, de desdobramentos, de efeitos. Ela é como um indivíduo, mas parasita. No sujeito, ela já é um fora.

A paixão envolve a potência do seu substrato, do sujeito apaixonado, mas enquanto a costura, em seu vórtice de paixão, com uma potência ou a marca de uma potência alheia. No eu, ela é já um outro.

4 minaretes na Suíça



O democrático pressupõe a liberdade de expressão, desde que a expressão não ameace a própria democracia.

Não se pode dizer, racionalmente, que o Islam, de modo geral, seja uma ameaça à democracia. Muito pelo contrário, é a possibilidade de uma decisão como esta – a de banir constitucionalmente a construção de minaretes – que a ameaça.

Se a democracia não é acompanhada da liberdade de expressão, torna-se instrumento do irracional, então, não é mais necessária a democracia.

Leia-se o artigo no Al Jazeera.