A verdade não pode contradizer a verdade

A verdade não pode se opor a Deus, se Deus está acima de tudo.
A verdade não pode tampouco se opor à razão, pois a razão tem sua fonte em Deus.

A verdade não pode contradizer a verdade.
Ou seja, a verdade revelada não pode contradizer a verdade racional, pois ambas são divinas, têm sua fonte em Deus, e Deus não se contradiz.

Porém, com isso, não colocamos o princípio de não-contradição acima de Deus?

Amor!

Dizer “amor!” diz, em latim, amor, reconhecendo, sendo, amando, e, ao mesmo tempo, eu sou amado.

Amor, eu sou amado.

Diga apenas uma palavra e...

De Descartes, o cogito.
Em uma palavra latina, toda a intelecção da filosofia de Spinoza: o amor.

Em Descartes, o eu é o evidente como coisa pensante.

Em Spinoza, o eu não é o evidente, porque o amor extrapola o eu. O evidente torna-se o amor. O eu, quando aparece, aparece como coisa amada.

Angústia, foguete, balão, amor

Nossa extremada modernidade...
Como ondas do mar vivemos agitados por ventos contrários.

Sempre a incerteza? Não há nada a respeito do que nós possamos estar certos e nos repousar? Nada a que nós possamos aquiescer?

Estamos absolutamente soltos, nisso aí? Indo e sendo levados, por aí, sem nenhum sentido além da morte certa? Colocar a certeza no ser-para-a-morte é colocar a certeza num limite. Mas o limite, propriamente, não é nada de positivo. A morte não tem em si nada de positivo. Ela apenas traça um contorno, nega, interrompe o ser. A morte não é ser, mas deixar de ser.

Somos ser-para-deixar-de-ser? E ficamos na angústia. A angústia é o sentimento intelectual a que corresponde esse nihilismo do ser que é ser negado.

Somos ser-para-deixar-de-ser? Uma resposta logo poderia ser dita: confunde-se aqui o ser com o existente. E não há entre ser e existir alguma diferença? Mas, deixemos assim essa resposta sem responder.

Em meio ao incerto, Descartes havia encontrado um porto seguro, do qual a modernidade toda, até se livrar dele também, fez um ponto de apoio, o eu-penso, o cogito. Nietzsche e Freud largaram ainda desta amarra.

Para chegar aí, no princípio do eu-penso, Descartes parte das beiras, e vem retrocedendo. Vai cedendo ao incerto tudo aquilo que não pode, por probidade intelectual, manter agarrado consigo. Um foguete, isto poderia corresponder ao devir de um mundo-foguete, que vai largando suas partes até restar só a cápsula.

Em Spinoza, um moderno que olhava para trás e para nós, tudo se constrói intelectualmente ao inverso do devir-foguete. O certo está dado na própria beira. Não se carece de achá-lo, mas de se estar em cheio nele. Um balão, isto poderia corresponder ao devir de um mundo-balão. Que vai se enchendo até chegar na certeza plena, cheia de si, na mais certeza do amor. Estar mais certo do seu amor, como o ser enquanto tal. Do seu amar e do seu ser amado.

Amor em latim tem dois usos: como amor, substantivo, e como eu-sou-amado, voz passiva do verbo amar.

O certo em Descartes? Cogito, eu-penso.

O certo incerto na extrema modernidade? Angústia, sentimento intelectual do não-ser.

O mais certo em Spinoza? Amor, o amor-eu-ser-amado. Esse inteligir-se ser-sentimento da plenitude do ser infinito.

Voltando à questão de nossa modernidade nos seus extremos: _não há mesmo nenhuma bússola, nenhum astro que nos indique um caminho certo? A modernidade nos indicou não haver uma direção certa, um fim final e guia para tudo isso. E isso é mesmo uma maravilha. Somos andarilhos e não viajantes ou peregrinos.

Há só sertão, diria em último Guimarães Rosa, “O diabo não há! É o que digo, se for... Existe é homem humano. Travessia”. Infinito.

Pura travessia, isso é do ser andarilho. Atravessar, como se houvesse o fora do sertão, isso é do ser viajante, que vai de um lugar ao outro.

Mas, além do rumo, perdemos a fórmula do modo de ser certo e tranquilo. Ser tranquilamente um andarilho? Só no amor. E para isso, não basta puro sentir, mas também pensar muito.

Quando a ideia é a matéria e não a forma

assopra um vento ou até brisa
e a peteca já se assanha
acorda, frui, logo quer voar

***

No caso do versificar, na forma ritmada e rimada, é a ideia que é matéria,
precisa ser posta em forma de palavra, de metro e de ressonância.

Escapa, com isso, à ideia a agência absoluta. Com isso, que é a estrutura formal do versificar, o em si próprio do princípio do verso não está inteiro com a ideia, mas também em algo que lhe é alheio.

Quem compõe o verso não é de todo a ideia do poeta, mas em parte o isso, a estrutura formal da língua e do versificar.

Crer e saber

É possível ignorar a falsidade de uma opinião, sem afirmar, ao mesmo tempo, que se sabe que ela é verdadeira.

E isso de duas maneiras: eu ignoro a falsidade de algo em que creio; ou eu ignoro a falsidade de algo sem porém chegar a crer.

(1) Suponha-me diante da proposição A, na qual eu acredito. Eu ignoro que A seja falso. Ao mesmo tempo, eu não sei, porém, que ela é verdadeira.

A plausibilidade disso está na diferença entre o significado de saber e o significado de crer.
Dizer “eu creio em A” não significa o mesmo que “eu sei que A”.

Muitas vezes, confundem-se crer e saber. Em geral, esse é o problema com o fanatismo de qualquer espécie.

É nesse sentido que Spinoza, comentando a religião (Tractatus theologico-politicus, XIV, p. 162), diz que ela não requer tanto que consideremos os seus dogmas verdadeiros, mas apenas que ignoremos que eles sejam falsos.

(2) Ou ainda de um outro modo. Eu ignoro a falsidade de uma opinião porque não sei que ela é falsa. Mas eu tampouco me comprometo com ela. Apenas suspendo meu juízo.

Este é o passo, recomendado pelo primeiro movimento de Descartes, da liberdade de ser indiferente às simples opiniões. Mesmo assim, o prudente Descartes, por outro lado, aconselha que, momentaneamente, apesar dessa indiferença, nós nos comportemos conforme com as opiniões dos seres humanos entre os quais vivemos.

O latente e o manifesto

Muitas vezes, a opinião de um autor é a mais absurda. Por isso, ele dissimula a sua opinião absurda, com uma série de opiniões plausíveis em conformidade com ela.

Suponhamos, A ser absurdo, e B e C, que são plausíveis, não contradizerem A.

Então, para não afirmar o que não se pode afirmar, A, o autor afirma B e C.

Por isso, muitas vez também, os hermeneutas buscam, por trás do manifesto (B e C), o latente (A), e a atividade hermenêutica só se interessa por deduzir do manifesto o latente (isto é, a perfazer o caminho inverso àquele supostamente feito pelo autor).

Entretanto, essa dedução hermenêutica pode ser sempre acusada de mera adivinhação. Em todo caso, ela é típica daqueles que, como os sacerdotes, desprezam o aparente, como desprovido de realidade e perfeição.

Para uma filosofia de superfície, o manifesto basta, porque é real e perfeito.

Lei divina – as maneiras de dizer

Uma lei pode ser dita divina de três modos:

1) A lei divina propriamente dita é a lei de natureza, a que rege os acontecimentos absolutamente, e por isso não pode ser desobedecida de modo algum.

2) A lei pode ser dita divina de um segundo modo, na medida em que comanda aquela razão de viver ou modo de vida que conduz o ser humano à beatitudo. É a lei ética, uma lei de transformação e aperfeiçoamento do ser humano (corpo e espírito). 


Ela nos concerne individualmente, e obviamente não pode ser uma lei humana, no sentido de lei política. Estabelecer uma lei ética como lei política implica produzir um sistema político unidimensional, em que a via para a beatitudo é afirmada como única, e em que o criminoso, que dela se afasta, é considerado inimigo de Deus.

3) Finalmente, pode ser dita divina aquela lei humana que foi sancionada por Deus.

Inteligir _ palavra de jagunço

Inteligir é palavra que não figura nos dicionários de português.
Presente no espanhol. Presente no latim.
Temos inteligência, inteligente, inteligível. Por que não inteligir?

Pode ser interessante, para falar o que ‘entender’ e ‘compreender’ não dizem, retomar seu uso, como fez Guimarães Rosa (Grande sertão: veredas).

“ ...alguma causa que ele até de si guardava, e que eu não podia inteligir”.

Palavra de jagunço.

A filosofia de entremeio

Entre nós e as coisas de ser, querem sempre pôr alguma coisa de entremeio: a consciência, a linguagem, a história, o direito, a imagem ou a mercadoria...

Devemos lutar por nossos direitos?

Nem sempre. Às vezes, podemos lutar por outros motivos.

A cada vez que lutamos por direitos, lutamos também pelas instituições do direito. Lutar por direitos significa lutar para abandonar as relações diretas entre as pessoas.

Lutar por seus direitos pode dizer duas coisas muito distintas

Significa lutar para fazer valer um direito já instituído.

Significa, também, lutar para instituir um novo direito, o que é algo totalmente diferente.

Lutar por direitos instituídos é exigir a reafirmação de uma vitória obtida no passado. Nisso, o ato jurídico encontra o seu momento mítico, procura restabelecer o que haveria ocorrido na origem.

E lutar para instituir direitos, por outro lado, é uma boa maneira de garantir, no futuro, com maior estabilidade, o resultado vitorioso de uma luta.

O direito pelo direito

A cada vez que se defende o direito pelo direito, pode-se ouvir a voz do mais fraco.

O mais fraco apela para o direito pelo direito. Com isso quer subtrair ao mais forte a sua força.
O mais forte apela para o direito pela força.

Lutar por nossos direitos

Dizem, a vida é uma luta pela sobrevivência.

Dizem, também, que, se ao invés de lutarmos diretamente pela sobrevivência, lutarmos primeiro pelo nosso direito, teremos a sobrevivência garantida de maneira mais estável e humana.

Como se, com o direito estabelecido, a vida deixasse de ser a luta que eles dizem que é.

Com o direito, dizem, a luta pela sobrevivência toma uma outra forma. Deixa de ser uma luta violenta, em que ganha o mais forte, para se tornar uma luta pacificada, em que ganha o que é justo, se necessário, com a força.

Ora, esse recurso à força, se necessário, mostra que a força habita o interior do direito.

E quem estabelece o que é justo? Quem foi forte o suficiente, no passado, para poder afirmar o justo. Mas que, no presente, pode ser o mais fraco.

A vida como luta

A vida, dizem, é uma luta pela sobrevivência.

Uns dizem que a vida é luta entre indivíduos, outros, que ela é luta entre espécies ou classes de indivíduos.

Mas talvez a vida não seja essencialmente luta. E, antes, simplesmente, vida. Vida como potência.

A vida como potência não se define pelo confronto com outra coisa, mas pela afirmação de si mesma, por si mesma.

Apenas essa afirmação encontra seu limite no confronto com outras vidas, com outras potências. Mas, nessa perspectiva, não é o confronto que define as vidas. O confronto apenas delimita a vida. O confronto só define o que a vida não é, não o que ela essencialmente é.

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A vida não é um direito simbólico, a vida é uma potência.

Catástrofes naturais

Note-se que as catástrofes ditas naturais, que consomem a vida de milhares de ser humanos (terremotos, tsunamis, furacões), são sempre acompanhadas, nos jornais, de explicações científicas (movimentos das placas tectônicas, grandes diferenças de pressão atmosférica). Isso, atavicamente, para aplacar nossa tendência, também atávica, para considerar essas catástrofes como manifestações da ira de Deus ou dos deuses.

Para um exemplo contrário a essa regra conferir link.

O direito da natureza

Se o direito é natural, atribuir direito aos animais ou à natureza é apenas uma forma humana de representar o direito que os animais e a natureza fazem valer por si mesmos, e que nós somos forçados a reconhecer.

A naturalização do direito

Dizíamos, ao pensarmos o direito como símbolo, o direito ser sempre humano, cultural. Então, o direito se opunha à natureza.

Mas pode parecer ingênuo opor cultura e natureza.

Se naturalizarmos o direito, ao invés de pensá-lo como um artefato humano, somos obrigados a dizer que o direito é apenas a representação de uma relação direta entre potências.

Nesse caso, o direito é um símbolo natural, isto é, tem uma relação direta e imediata com aquilo que representa. Varia a proporção entre as potências, varia imediatamente o direito.

A luta por direitos animais

Dizem, só os humanos podem lutar por seus direitos, pois, ao que parece, os animais não podem ter com outros viventes uma relação simbolizada.

Animais só estabelecem relações diretas, não intermediadas pelo símbolo.

Por isso, o direito é quisto como um símbolo. Sinal de cultura. Sinal de humanidade. Sinal de elevação. Por isso, o direito é uma imagem.

Dizem, também, que podemos lutar para atribuir direitos aos animais.

Entretanto, nessa perspectiva, o direito animal será sempre um direito negativo. Obviamente, pois o direito animal não pode impor nenhum dever positivo aos bichos, mas somente limitar o direito humano.

O direito animal só pode ser um direito de autolimitação do ser humano. Assim, sempre será visto como um direito que se retira à humanidade. O direito animal seguirá sendo um direito humano.

1º casamento gay na América do Sul

Eles se casaram.

Casar-se é juntar-se com direitos.
Por isso, quando se casam, os amantes se separam;
o direito, permanecendo entre eles, os afasta.

O estado de direito e a sociedade do espetáculo

No limite, no estado de direito, os seres humanos já não se relacionam como seres humanos, mas apenas como pessoas jurídicas.

No estado de direito absoluto, todas as relações sociais são intermediadas pelas instituições jurídicas, e assumem, consequentemente, a forma dessas instituições.

A crítica de Guy Debord à sociedade do espetáculo corre muito paralelamente à crítica do estado de direito:

“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens” *.

Na sociedade do espetáculo, é a imagem que se interpõe entre os seres humanos.

Mas, o que é o direito, senão um tipo de imagem?


* DEBORD, Guy. La société du spectacle. 3ª ed. Paris: Gallimard, 1992 [1967]. §4.

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O “meu direito” não é algo que eu possa exigir diretamente de você.

_ Eu exijo de você os meus direitos

Quando digo:

_ Eu exijo de você os meus direitos

aceito, ao mesmo tempo, que entre eu e você se interponha uma terceira pessoa.

Com isso, nossa relação, entre mim e você, deixa de ser imediata.

Os “meus direitos” não é algo que eu possa exigir diretamente de você, mas apenas pelo intermédio de um outro, da pessoa do juiz e, mais além, do executor da justiça.

Ver o desemprego com bons olhos

Não sei porque ainda brincamos de nos espantar com a taxa de desemprego,
quando devemos apreender a nos regozijar com o emprego que podemos fazer do desemprego.

Boas alocações aos desempregados e boas oportunidades culturais e espirituais.
É tudo o que a humanidade pediu.

Homens diligentes


Estranhas imagens do contraditório cotidiano de trabalhadores cuidadosos com o descuidado destrabalhador.

Nós, os geométricos

Mesmo limitando nosso conhecimento ao mundo, como conhecimento a posteriori, como conhecimento positivo, Kant salva a matemática apriorística.

Ele preserva a possibilidade do conhecimento a priori matemático, atribuindo as leis do número e do espaço não ao mundo, mas, antes, à forma do nosso conhecimento do mundo.

Não precisamos ir ao mundo, por exemplo, para fazer geometria, porque só podemos conhecer o mundo geometricamente. A própria forma do mundo é geométrica, porque a forma pela qual nós conhecemos o mundo é desde sempre geométrica.

Nós somos os geométricos, não o mundo propriamente em si mesmo.

A geometria é da razão. Na medida em que apreendemos o mundo racionalmente, nessa mesma medida o apreendemos geometricamente.

Tradução para designers

We, however, hold that all things in the Universe are the result of design, and not merely of necessity; He who designed them may change them when He changes His design. But not every design is subject to change; for there are things which are impossible, and their nature cannot be altered [...].

Nós, entretanto, defendemos que todas as coisas no Universo são resultado do design (desenho, plano, intenção refletida), e não meramente da necessidade; Ele, que as desenhou, pode mudá-las, quando Ele muda Seu design. Mas nem todo design é sujeito a mudança; pois há coisas que são impossíveis e sua natureza não pode ser alterada [...].



MAIMONIDES, Moses. The Guide for the Perplexed. Trad. M. Friedländer. 2 ed. New York: Dover Publications, 1956 [1881, 1904]. Part II, cap. XIX, p. 184. Original em árabe.

Matemática e religião

O que nos interessa no conhecimento de tipo matemático?

Seu caráter puramente racional ou a priori, sua necessidade, sua universalidade e, sobretudo, sua exigência de adesão. Todo ser humano, enquanto dotado de razão e, portanto, honesto, se vê coagido a aquiescer às verdades matemáticas. A matemática detém o ideal de uma fé irrefutável.

Toda religião sonha alcançar esse nível de exigência e capacidade de persuasão que só a matemática e a física matemática possuem. Mas, o religioso, para justificar sua crença, só pode apelar para outro argumento, justamente o oposto do matemático, o fantasmático credo quia absurdum. Creio justamente porque é absurdo.

Se não possui as fórmulas racionais, as religiões possuem as fórmulas irracionais: o relato dos milagres, o medo, eventualmente, a fé pura, dom da graça divina.

Uma segunda maneira de afirmar, sem conhecê-los, os atributos de Deus

Uma outra forma de teologia negativa é a que apela para a eminência divina.

Aqui já se aceita uma certa relação entre criador e a criatura, mesmo que seja por via da eminência infinita do criador sobre a criatura.

Deus não é mundo, senão eminentemente.

Deus é belo, mas apenas eminentemente. Deus possui a beleza, mas a beleza de uma outra forma que a mundana, uma beleza infinitamente mais perfeita.
Não podemos ter nada além de uma vaga ideia do que seja a beleza divina, ao contemplarmos o belo no mundo.

A teologia negativa de Maimonides

Como foi dito, para Maimonides, o conhecimento humano deve limitar-se ao nosso mundo.

Se Deus criou o mundo e discrepa absolutamente dele, se criador e criatura são absolutamente incomensuráveis e incomparáveis, a única alternativa que resta à teologia, ciência de Deus a partir da revelação, é negar a Deus qualquer atributo mundano que possamos conhecer.

O único conhecimento de Deus que podemos ter é o que lhe nega qualquer atributo desse mundo que podemos conhecer.

Acerca de Deus, somente podemos afirmar o que ele não é.

Deus não é folha verde de árvore. Deus não é humano. Deus não é finito. Deus não é corpo. Et sic in infinitum.

Os limites da razão

A teologia, essa ciência baseada em revelações ditas divinas, na sua briga com a metafísica racional, recebeu um grande apoio da crítica positivista.

O positivismo impõe limites ao conhecimento humano (nossas ciências devem se restringir ao nosso mundo) e desacredita da metafísica.

Com isso, o positivismo deixa livre o espaço para os procedimentos irracionais, como a fé nos ditos revelados, ali, naqueles domínios, em que a razão humana deve se calar.

Tudo o que o positivismo diz à religião é que ela não ouse se dizer uma ciência do ser humano. A religião pode falar qualquer coisa, desde que não se diga ciência.

Em si mesmo, o positivismo não é um ateísmo. O ateísmo, que afirma a inexistência de Deus, do ponto de vista estritamente positivista, é ainda uma forma de metafísica.

Até onde vai o nosso mundo?

O nosso mundo para Kant vai desde as menores partículas até as estrelas mais distantes, até onde alcançar o nosso tato, ou a nossa vista, ou o nosso conhecimento inferido a partir do que podemos alcançar com nossos sentidos, e nisso se limita.

O nosso mundo para Maimonides vai no máximo até a lua, isto é, nem mesmo tudo aquilo que é visível e, portanto, ao alcance dos nossos sentidos pertence ao nosso mundo.

O nosso mundo para Pascal vai que vai. Ele é duplamente infinito. É infinito tanto para fora do nosso alcance, quanto para dentro.

Crítica à razão metafísica

Muito antes de Kant, Maimonides (século XII) já colocava limites ao conhecimento humano, limitando-o não somente à física, mas, mais estritamente, à física sublunar, isto é, ao nosso mundo.
“Somente Deus tem um conhecimento perfeito e verdadeiro dos céus... Mas Ele nos deu a faculdade de conhecer as coisas que estão sob os céus; aqui é o mundo do ser humano, aqui é a sua morada, no qual ele foi colocado, e do qual ele mesmo é uma porção... As faculdades humanas são demasiado deficientes até mesmo para compreender a prova que os céus contêm para a existência Daquele, que os coloca em movimento. De fato, é ignorância ou um tipo de loucura cansar nossas mentes tentando descobrir coisas que estão além do nosso alcance, sem dispor dos meios para aproximarmo-nos delas. Devemos nos contentar com o que está a nosso alcance, e o que não pode ser aproximado por inferência lógica deixemos para aquele [o profeta] dotado daquela grande e divina influência...” (Maimonides, p. II, chap. XXIV, p. 198)
Maimonides dirigia sua crítica até mesmo à metafísica de Aristóteles, o filósofo excelente:
“Eu defendo [com base nos princípios da própria ciência aristotélica] que a teoria de Aristóteles é sem dúvida correta enquanto trata das coisas que existem entre a esfera da lua e o centro da terra. [...] Mas o que Aristóteles diz a respeito das coisas acima da esfera da lua é, com poucas exceções, mera imaginação e opinião”. (Maimonides, p. II, chap. XXII, p. 192)
Isso é mais ou menos o que Kant diz, na sua crítica à metafísica (embora para Kant, é claro, a astronomia esteja ao alcance da ciência humana).

Guardadas as devidas diferenças históricas, ambos os autores, defensores de uma ciência positiva, limitada ao nosso mundo, baseada apenas nos dados dos sentidos e nas inferências que podemos fazer a partir deles, vêm com bons olhos, porém, o conteúdo revelado pela religião verdadeira.

Kant também enxergava perfeitamente o interesse da razão, no seu aspecto prático, em aceitar certos postulados religiosos como a existência de Deus, a imortalidade da alma, a liberdade do ser humano.

MAIMONIDES, Moses. The Guide for the Perplexed. Trad. M. Friedländer. 2 ed. New York: Dover Publications, 1956 [1881, 1904].