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A carne não é fraca; a sua pretendida fraqueza (seu estremecimento) é a prova da sua força.


Arché – ontologia e política

Aliás, quando Heidegger explica a arché da filosofia, ele diz algo assim:

Arché – aquilo de onde algo surge, mas que não é deixado para trás no surgir; arché como aquilo que impera.


Conferir: HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a filosofia? [1956]. Trad. Ernildo Stein. In: Conferências e escritos filosóficos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1989. P. 21-22.

Eu-no-não-mundo



A ideia de que tudo a que tenho acesso são apenas as minhas próprias percepções (e não diretamente o mundo mesmo das coisas) é tão absurda e doentia quanto a ideia de que eu jamais possa pisar a luz (sequer sob o mais radiante sol), mas sempre somente a minha própria sombra, a sombra do meu pé.


Poliarquia



Taylor* nos mostra como, se Aristóteles levasse a fundo as suas próprias definições, o tipo de poder numa comunidade humana ideal seria o poder democrático.

Este poder (exercido entre homens iguais e livres), Aristóteles, é verdade, não o chamava de democracia, porque ele definiu a democracia como a sua perversão. A democracia, para Aristóteles, é o poder da maioria em vista da maioria e não do comum.

Ao poder exercido entre “homens livres e iguais” (com exclusão daqueles que não têm a autoridade – as mulheres –, que não sabem deliberar – os escravos, ou que não sabem falar – os infantes), para o bem comum, Aristóteles dá o nome de politeia.

Isso causa alguma confusão.

Pois, para Aristóteles, politeia é gênero e espécie. É o gênero de todas as formas de governo que visam ao bem comum. E é também uma espécie desse gênero, aquela em que o poder é exercido por todos os homens.

Politeia, como gênero, na tradução latina, é a república. Na tradução latina, fica ressaltada a finalidade da politeia, a res publica, a coisa pública ou o bem comum.

Republica traduz politeia como gênero e não como espécie.

A politeia como gênero, como aquele poder que visa ao bem da comunidade, é qualquer forma de forma de governo verdadeira e não pervertida. Como poder que cuida (que cura, que se preocupa) da coisa pública, a politeia é dita, também, monarquia e aristocracia – formas de governo em que somente um ou alguns poucos exercem o poder.

A tradução latina de politeia como republica nos esconde, então, aquele outro sentido, presente no grego, e que nos remete àquela forma específica do poder de todos, a pólis propriamente dita.

Nesse sentido específico, a pólis é uma comunidade composta de cidadãos (Política, III, 1, 1274b41). E um cidadão é definido como aquele que é capaz de participar nas áreas deliberativas e judiciais do governo (1275b18-20).

Na pólis ideal, todos os seus membros componentes, todos os cidadãos exercem o poder (não apenas a maioria) com vistas ao bem comum (e não ao bem exclusivo da maioria).

Quando Aristóteles fala da pólis e do tipo de poder exercido nela, ele fala de:
δ πολιτικ λευθέρων κα σων ρχή (I, 7, 1256a20)
Aí, aparece o termo politiké arché. Que é traduzido, no inglês, por “constitutional rule”, como “a government of freeman and equals”**. Que, no português, daria algo como “poder ou império constitucional, governo de homens livres e iguais”.

Arché para os primeiros filósofos designava o princípio ontológico que explica o ser das coisas existentes.

Para os primeiros filósofos, a filosofia era investigação da natureza (istoria peri physeus), “explicação da realidade, em seu conjunto e em seu estado presente, a partir da sua origem – a physis como arché – e explicação fazendo intervir apenas processos naturais”***.

E a arché, o princípio ontológico constituinte das coisas, variava: água para Tales, ar para Anaxímenes, fogo para Heráclito, apeiron (infinito ou indeterminado) para Anaximandro.

O termo arché está presente em monarquia (na qual o princípio constituinte da comunidade dos homens é mono, único, um).

Na comunidade ideal, o princípio constituinte é plural, não é um princípio, mas cada um dos membros componentes da comunidade é um princípio constituinte, cada um é uma arché, um poder, uma fonte de comando.

Poderíamos dar o nome de poliarquia a esta comunidade política ideal, constituída por uma multiplicidade de princípios.



(*) TAYLOR, Christopher C. W. Politics. In: BARNES, Johannes (Org.). The Cambridge Companion to Aristotle. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

(**) ARISTÓTELES. Politics. Trad. Benjamin Jowett. In: MCKEON, Richard (Org.). The Basic Works of Aristotle. New York: Random House, 1941.

(***) CONCHE, Marcel. Anaximandre: Fragments et témoignages. Paris: PUF, 1991. P. 79.

Elasticidade afetiva – saudades do presente


Quando uma brisa ligeiramente mais fresca penetrou o ar ambiente de meu escritório, veio-me, de imediato, uma certa nostalgia deste mesmo lugar onde eu estava (ligada certamente à simples percepção da variação da temperatura).

|Os acontecimento nos interpelam – II| ou |O indivíduo pluricorporal – V| ou ainda: {|Os acontecimento nos interpelam| ou |O indivíduo pluricorporal – IV|} – II


Para o indivíduo pluricorporal, não se trata de “tomar partido”, mas de multiplicar, estrategicamente, as suas próprias posições.
O dilema das respostas é que elas nos tranquilizam. 

A velha questão epicureia da “paz na vida” (eggalènizôn tôi biôi). A imagem da vida como um mar calmo. A terapia contra as inquietações da alma pela produção de respostas (Epicuro) ou pela eliminação das questões (Wittgenstein).

Como dizia Ch. S. Peirce: 
“A dúvida é um estado de desconforto e insatisfação do qual lutamos para nos libertar e passar ao estado de crença; enquanto este último é um estado calmo e satisfatório que não desejamos evitar, ou alterar por uma crença noutra coisa qualquer. Pelo contrário, agarramo-nos tenazmente, não meramente à crença, mas a acreditar exatamente naquilo em que acreditamos”*.
A resposta é problemática, justamente, porque, diante do acontecimento, não se trata de responder, posicionando-se para se tranquilizar, mas de problematizar.



* PEIRCE, Ch. S. A fixação da crença. In: Popular Science Monthly, Nov. 1877.


|Os acontecimento nos interpelam| ou |O indivíduo pluricorporal – IV|


Certamente, como as obras de arte, os acontecimentos nos interpelam. Nos atraem, nos questionam, nos convocam.

– Como te posicionas frente a isso que acontece?

Mas essa interpelação, essa exigência de “tomar partido” é também uma cilada. Não todas as vezes. Mas tende a uma armadilha, a um aprisionamento, a uma redução, a uma captura, quanto mais o campo da posição se coloca de maneira estreita e estritamente bipolar.

 – Tu estás deste lado ou do outro? Do nosso lado ou do lado dos outros? Tu és amigo ou inimigo? Estás na mira do nosso amor ou do nosso ódio?

– És por Kadafi ou torces pelos rebeldes? Em Florianópolis e São Paulo, és pelos criminosos ou pela polícia? No Oriente Médio, pelos judeus ou pelos palestinos?

A exigência de posicionamento frente ao acontecimento é também uma interpelação subjetivante. De fato, não o acontecimento, mas a interpelação do acontecimento quer ser uma função para o sujeito. O sujeito interpelado que se posiciona, que se posicione em função do acontecimento.

Toda tomada de posição, na unidade do sujeito, exige o alinhamento de todos os outros posicionamentos, genuinamente, coerentemente, seus.

Assim, à medida que respondemos à interpelação do acontecimento, à medida que nos posicionamos, que nos estabelecemos em uma posição fixa diante do acontecimento, vamos constituindo, também como uma exigência, também sob interpelação, uma posição única e unificada, desde a qual olhamos e avaliamos tudo o que acontece.

O pensamento estratégico, quando multiplica os posicionamentos e desunifica os sujeitos, combate a captura da interpelação.

Para o indivíduo pluricorporal, não se trata de “tomar partido”, mas de multiplicar, estrategicamente, as suas próprias posições.


E o que seria pensar o acontecimento?

Pensar o acontecimento seria, entre outras coisas, poder pensar o acontecimento como bom ou mau, certo ou errado. E, a partir disso, condená-lo e agir para impedir sua efetuação, ou concordar com ele e favorecê-lo.

Mas, como se trata, aqui, de mal ou bem, para pensar o acontecimento, não deveríamos “tomar o partido” divino, isto é, assumir uma perspectiva afastada, separada ou transcendente, que teorize o mundo desde fora e como sua criatura.

Deveríamos, enquanto humanos que somos, pensar o acontecimento estrategicamente, isto é, a partir do que realmente é bom ou mau para nós enquanto criadores.

Indivíduo pluricorporal III

A respeito de arte, Jean Luc Chalumeau disse o seguinte:

“Perante qualquer obra que se afirme arte, se deve adotar um ponto de vista e tomar partido, sob pena de renunciarmos a uma parte essencial da nossa humanidade”*.

“Tomar partido” quer dizer: colocar-se de um lado ou de outro, e concordar ou não com a afirmação: – isto, de fato, é arte!

Talvez pudéssemos dizer o mesmo, e ainda com mais urgência, acerca do presente:

“Perante o acontecimento, se deve adotar um ponto de vista e tomar partido, sob pena de renunciarmos a uma parte essencial da nossa humanidade”.

Com certeza, nós (eu falo por você também...) nos engasgamos com a palavra “partido”. O indivíduo não precisa ser um “partido”, para ser pluricorporal. “Tomar partido”, sem justificar a decisão tomada, é, para nós, a corrupção não só da humanidade como do pensamento.

Por outro lado, ao nos transpormos da arte para o presente, “tomar partido” não seria, para nós, emitir um juízo do tipo “isto é ou não é um acontecimento”. Mas “tomar partido” seria um juízo sobre a relevância do acontecimento para o presente: “isto merece ou não merece ser pensado”.

E o que seria pensar o acontecimento?


* CHALUMEAU, Jean Luc. As Teorias da Arte: Filosofia, crítica e história da arte de Platão aos nossos dias. Trad. Paula Taipas. Lisboa: Instituto Piaget, 2005. P. 12.

Indivíduo pluricorporal II

Cada um conta por cem ou mil.
E cem ou mil contam por um.

Quer dizer, a unidade não é mais o corpo, mas os cem ou mil corpos humanos agregados. As estratégias racionais então modificam-se. A estratégia do indivíduo pluricorporal é uma, a do indivíduo unicorporal é outra.

O número de indivíduos humanos sobre a Terra, a população mundial, seria, por exemplo, cem ou mil vezes menor. O que representa uma vantagem estratégica.

– Sim, talvez, mas em que isso nos importa, de fato? Há acontecimentos no mundo, agora, urgentes, sobre os quais você silencia, por quê? Por que você não toma partido, não se soma a um grupo? Por que não ousa expor a lógica, a sua lógica e interpretação para o acontecimento urgente? Afinal, a filosofia não é a “totalidade do saber”, não é “apreender seu tempo em pensamentos”?

– Talvez. Porém, parece-me, a filosofia não apenas é capenga (faltam-lhe as pernas) para dizer como deve ser o mundo no futuro, mas também para dizer a lógica do presente (na sua disparada). Se a filosofia é apreender o presente em conceitos, parece-me, então, que a filosofia é ou tornou-se uma atividade impossível. O presente é pensável em estratégias, e como tal, lugar de ação, mas inapreensível, ao menos, como verdade.

– Então, o acontecimento presente e urgente, pense-o sem apreendê-lo, posicione-se. Seu blá-blá-blá é preguiça e covardia. Ou você despreza o presente?


O indivíduo pluricorporal


A fórmula “um indivíduo = um corpo humano” (ou: “cada um conta por um e não mais do que um”) tem perdido a sua racionalidade, isto é, a sua eficacidade. O indivíduo humano unicorporal vem se tornando um impossível (na atualidade, já quase não cai sob o intelecto da natureza das coisas). O indivíduo pluricorporal será, talvez, a alternativa humana viável.

Cada um contará por cem ou mil corpos.


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Entre a busca pela independência e o egoísmo a fronteira não se desenha com um traço.

Sempre elogiar o acontecimento III – amor fati



Epicuro: – “O sábio se posta diante da Fortuna como um combatente”*.

Não há Providência divina. É preciso saber tirar proveito de tudo que acontece. Mejor! – como disse aquele sábio espanhol, na travessia do deserto sul-americano, ao ver morrer de sede seu cavalo.

Mejor! E repelir a melancolia.

Tudo vale a pena, aumenta a experiência, se a alma não é pequena.
E a alma (a própria experiência) não é finita por natureza, mas indefinida.
A morte não está inscrita na própria alma. É a duração indefinida que é conatural à alma.



(*) LAÊRTIOS, Diôgenes. Vie et doctrines des philosophes illustres. Trad. diversos. Paris: Le livre de poche, 1999 [250]. Livro X (Epicuro), §120. P. 1307. Mas a partir da tradução de M. Conche: “Le sage se dresse en face de la Tychè comme un combattant”.

Progresso da humanidade


O nosso progresso pode se medir pela quantidade de corpos humanos vivos (nunca fomos tantos) ou, inversamente, pela nossa ingente capacidade de matar-nos (nunca pudemos ser tão poucos).

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[Relativamente ao morto:]
A morte é como picada de mosquito-maruim, só dói na hora.

Thor, thar

O corpo ensanguentado do mártir, salpicado de areia e terra, não precisa ser lavado para purificar-se, nada é mais purificador – diz-se – que o sangue.

Thor, amado, companheiro


O princípio constituinte (αρχη) da vida e da filosofia – do aproximar-se distanciando-se.

– Isso de que há, para os seres, geração, é disso também que há destruição, conforme o devir; pois eles se fazem justiça e reparação uns aos outros de sua mútua injustiça, conforme a ordenação do tempo.

– A arché (αρχη) dos seres é o infinito, pois dele nascem todas as coisas, e nele todas as coisas se resolvem.

Anaximandro  (séc. VI, A.C.)



Thor, querido, maravilhoso


*
A honra de um grande caçador é morrer caçado.

*
Tudo passa.

*
Tudo que é deixa de ser, e assim é sempre.

*
Uma ausência. Um buraco no ser.

*
A respeito das coisas mais intensas silenciamos.

*
A alma é uma maneira de ter o corpo mais por perto.

*
Acostumada também ao silêncio, a terra dessa terra é macia, abre-se suavemente no parir, abre-se novamente com suavidade para recolher no derradeiro abraço.

*
Suprimir da língua os pronomes possessivos talvez empobrecesse a expressividade do presente, mas diminuiria a possessividade do devir.