Fotografia

No trem, de pé, o velho senhor (fora de seu tempo) leva consigo, em uma agenda de capa de couro e folhas com beiras gastas e amareladas, muitas informações úteis para a sua vida de comerciante. 

Então eu penso isso: – somos todos comerciantes.

Gentileza II

Nesta vida, tudo o que fazemos é buscar, no próximo ônibus, um lugar para se sentar.

Gentileza

Ele se levanta para deixar a velha dama se sentar, quando percebe ao mesmo tempo chegar o momento – para ele – de sair do trem.

Ilusão

Ontem, eu soube, por ouvir-dizer, ainda, a verdade que minha ilusão, a cada vez, se esforça em destruir, gerando a si mesma.

– A questão é...

(1) ou você faz do pensamento um meio para viver;
(2) ou você vive para pensar.

Colocada desse jeito, eu optaria por (1). Mas, a questão, de fato, está sempre no modo como é colocada a questão. O pensamento e a vida estão encaracolados um no outro, numa relação que não é de meios para fins.

InfoBLOG

ISSO às vezes quer dizer: isso que eu não digo.

Desejo de estátua VI

O grande Sujeito, em geral, não precisa se apresentar, pois “Ele é aquele que é”. Quando, no início, uma apresentação é requerida, esta se dá sob a forma da interpelação ( – Ei, você aí!* ). Na interpelação, o grande Sujeito apresenta-se, apresentando o pequeno sujeito a si mesmo.


(*) ALTHÜSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 7 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985 [1970]. P. 96.

Duas ideias para o pensamento

Ideia-fundamento: o pensado.
Ideia-trampolim: o dar a pensar.

O fundamento suporta todo o edifício e, assim, o envolve inteiro em si – o edifício permanece ligado ao fundamento e preso a ele. Ideia fundamento: apoio-garra.

O trampolim lança, desprende, ejeta o projétil. O saltante se desliga da ideia que o impulsiona. Ideia trampolim: apoio-impulso.

Tarefa II

A verdade não contradiz a verdade.
Isso quer dizer: – o múltiplo deve se submeter a um.

Tarefa

Ele fala. Um outro fala também. E um e outro não falam entre si (não expressamente). Mas nos é dada a tarefa de colocar ou deslocar os cruzamentos entre essas falas de um e de outro. Não podemos simplesmente ouvir um e ouvir outro. Devemos ouvir um sob as condições do que ouvimos do outro, e vice-versa.

Essa tarefa nos é dada (sob este princípio: a verdade não é contrária à verdade). Por isso mesmo (porque ela nos é dada e porque ela nos é dada sob este princípio), desobedientes, resistiremos em executá-la.

Bifurcações da ideologia


     AB1
A              AB2C1
     AB2                      AB2C2D1 

                 AB2C2
                                  AB2C2D2

“Uma última parcela chega ao final do percurso... para cair num semi-desemprego intelectual...”*



(*) ALTHÜSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 7 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985 [1970]. P. 79.

Teoria negativa


Uma teoria negativa (nos moldes de uma teologia negativa) é aquela que se fundamenta na negação dos fundamentos de uma outra teoria, e com isso adquire sua positividade.

Moral e violência


“A moral serve, ao menos, para travar a violência”. Sim, parcialmente – eu diria. No restante, porém, a moral apenas nos faz perdê-la de vista.

Desejo de estátua V


Quem – ao encontrar um outro pela primeira vez – não se apresenta se crê já presente, evidentemente, na imaginação e na memória do outro (como uma estátua que é uma referência no centro da cidade). De fato, considera a apresentação apenas uma reapresentação desnecessária.

Desejo de estátua IV

Pensadores que não têm a crença na formação espontânea de sua própria escola, publicam, eles mesmos, suas próprias reedições críticas, em geral, precedidas de afirmações como esta: “algumas explicações sobre as circunstâncias da composição deste livro podem ser úteis ao leitor”*.


(*) CASTORIADIS, Cornelius. L’institution imaginaire de la société. Paris: Seuil, 1975. Prefácio. P. 5.

Desejo de estátua III

Como metamorfosear o pensamento em estátua, o movimento em repouso? – publicando livros, multiplicando bibliotecas.


Desejo de estátua II

Imortalidade! – esse desejo individual de permanecer entre os humanos, mesmo depois da morte do corpo.

Para tanto: outro desejo: o de aparecer, em vida, com sua opinião-imagem sinalizada para a imaginação dos outros, afim de marcar indelevelmente a sua memória.

Linguagem-vírus VI

Tratá-la como vírus é tomar a linguagem biologicamente.

Mas, podemos tratar o biológico como um estrato real e subjacente que precede a linguagem? O “biológico” e o “viral” não são, pelo contrário, produtos da linguagem? O “viral” não é apenas um reflexo da linguagem em si mesma?

Linguagem-vírus V

O que seria do corpo não contaminado pelo vírus da linguagem? O que significa viver, agir e pensar sem a linguagem? O que é viver sem significados? Sem signos, sem intermediações, sem “abertura”? O que seria viver livre dessa dominação?

Linguagem-vírus IV

Interpretar a “biblioteca” como o fruto-objeto do desejo do vírus que domina o nosso corpo humano vivo. No fruto, residem as sementes de muitas outras contaminações.



Linguagem-vírus III

A história não seria mais do que o curso e a narrativa da dominação da língua-vírus sobre os nossos corpos humanos vivos?

Linguagem-vírus II

Contaminados por um vírus – no nosso desejo, esforça-se o desejo camuflado de um outro.

Linguagem-vírus

Não percamos de vista a ideia (originalmente de W. Burroughs?) de que a linguagem é um vírus que domina o nosso corpo humano vivo, para se reproduzir, se desenvolver e contaminar outros corpos humanos vivos.

Notas sobre o início da metamorfose X

O devir barata de G. Samsa é uma figura (morphé) que cai em sua forma própria (eidos)? Ou implica, não metamorfose, mas transformação?

Eu, eles – e essa recorrente vontade de nós III

Quanto mais idiota (sozinho e impotente) eu me sinto, mais eu os invejo. E quanto mais eu os invejo, mais idiota eu me sinto. O que fazer dessa idiotice e dessa inveja? Parece-me que só consigo acabar com uma, se acabar também com a outra. 

Só haveria o amor de si – si como singularidade – para tornar potente o idiota (sem que se junte aos outros) e acabar com a inveja? 
Pois o que haveria de mais singular do que permanecer idiota?

Eu, eles – e essa recorrente vontade de nós II

Quando o porteiro barra a minha passagem pelo estreito corredor à esquerda, não consigo me impedir de me imaginar no lugar de um daqueles que estão no largo saguão à direita.

Eu, eles – e essa recorrente vontade de nós

[AO PORTEIRO]: – O senhor poderia me dizer, se não for incômodo, como eu posso obter um crachá, um passe?