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Paradoxalmente, a morte de Deus elevou o Cristianismo à sua perfeição: tornou-se impossível pecar.

Serviços de ignorância

Depois do caso Snowden, os serviços de inteligência precisarão insistir, mais a fundo, em recrutar seus quadros entre os menos inteligentes.

Véus da apatia II

– “Vive-se sob a venda dos véus”. Assim, o que vemos em realidade são as vendas?

Mas, quando se dá o desvendamento, algo se vela, ocorre ainda e sempre o velamento. Não há como nos desvendar? Por isso, deveríamos, filosoficamente, até mesmo nos afastar da tentação de ver através das vendas. E, mantermo-nos, filosoficamente, na ingenuidade de ver nas vendas, afetados.

– Ora, isso não faz qualquer sentido! Pontas. Uma ponta não engata na outra. Uma espécie de insuficiência, do gênero da insuficiência cardíaca.

Véus da apatia


Quando a ferida e a dor surgem, desejamos mascará-las. Como se, por trás e por si, cicatrizassem e passassem. Um véu, então, chega a encobrir tudo. Muita força ideológica e violência física (tranquilizantes e analgésicos) são necessárias para não se desvendarem os pensamentos e os olhos, para nos mantermos na apatia.

Que liberdade?

[...] se me abstenho, como em liberdade o posso fazer e de fato o faço, de toda e qualquer crença de experiência [...]*
Que liberdade? Não é este poder de liberdade um pressuposto, um preconceito, que a autêntica filosofia deveria colocar entre parênteses? E este fato de liberdade, uma ilusão?



(*) HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas [1929]. Trad. Pedro M. S. Alves. In: Meditações cartesianas e Conferências de Paris: de acordo com o texto de Husserliana I. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. §8. P. 57. Grifo meu.

O que é o fato, o que é a essência?

Ora, indistinguíveis reflexos de um no outro, se, essencialmente e de fato, há o fato das essências e a essência dos fatos.

Aqui, lá, acolá II

Em vez de uma Filosofia unitária e viva, temos uma literatura filosófica crescendo sem limites e quase sem coerência; em vez de uma séria confrontação de teorias conflitantes que, porém, tornam manifesta, pelo seu próprio confronto, a sua solidariedade íntima, a sua comunidade nas convicções fundamentais e a sua fé imperturbável numa Filosofia verdadeira, temos uma atividade de recensão e de crítica aparentes no lugar de um sério filosofar com outros e de uns para os outros.*
O naufrágio da unidade do pensamento. A esquizofrenia da consciência filosófica. Isso, de fato, nos dá a pensar. Isso nos alegra. Não perdemos, com essa alegria, a seriedade. Mas, a sisudez. Esta é a disposição da filosofia atual; não, talvez, a sua “decomposição atual”, em “sua atividade desorientada”.




(*) HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas [1929]. Trad. Pedro M. S. Alves. In: Meditações cartesianas e Conferências de Paris: de acordo com o texto de Husserliana I. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. §2. P. 42.

Tudo é questão de método IX

Podemos, por outro lado, fazer do embaraço outra coisa que um problema. Antes, uma potência de ser! Fazer da imaginação como que uma potência livre. Não procuraremos respostas, não nos colocaremos problematicamente. Afinal, como diz a sugestão elísia:
A maneira de questionar prescreve um certo tipo de resposta, e fixá-la, desde já, seria decidir de nossa solução.*

(*) MERLEAU-PONTY, Maurice. Le visible et l’invisible. Paris: Gallimard, 1964 [1960]. P. 208.




Aqui, lá, acolá

As filosofias (apesar de sua pretensão) não remetem a um mesmo e único universo. Por isso, não se ligam, complementam, afrontam. Elas abrem universos, como que paralelos.
– Você diz ter encontrado a verdadeira filosofia. Como sabe disso, em relação a todas já propostas e que serão propostas?*

(*) Albert Burgh. In: SPINOZA, Benedictus de. Correspondance. Trad. Maxime Rovere. Paris: GF Flammarion, 2010. Lettre LXVII. P. 337.

Realismo radical

Com a realidade das essências singulares, com certeza, não só escapamos da síntese, da ideia de que o conceito é “a unidade característica do que está nele subsumido”*, como, também, da análise.

Não é pela análise (contramovimento da síntese) que apreenderemos o que realmente é o que é (sem ser também o que não é), o singular.



(*) ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985 [1944]. P. 29.

Isto é evidente! IV

O sujeito transcendental é um sujeito de carne e osso? Ao menos, como “espectador transcendental”* ele parece possuir olhos. Afinal, ele vê. Mas, ele vê sem os órgãos da visão? Ou os olhos do corpo serão mais propriamente seus do que do eu-no-mundo (o eu separado de si)?

Além disso, veja, o espectador transcendental tem o poder de ver tudo no mundo (todas as coisas visíveis, nessa possibilidade), mas não o olho mesmo do eu-no-mundo, como se o olho mesmo não fizesse parte do mundo.

Onde, no mundo, dá-se a observar um Sujeito metafísico?
Tu dizes: aqui ocorre exatamente como com o Olho e o Campo de Visão. Mas o Olho, na realidade efetiva, tu não o vês.
E nada no Campo de Visão permite concluir que ele seja visto a partir de um olho.**




(*) HUSSERL, Edmund. Conferências de Paris [1929]. Trad. Pedro M. S. Alves. In: Meditações cartesianas e Conferências de Paris: de acordo com o texto de Husserliana I. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. P. 14.

(**) WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. 3 ed. São Paulo: Edusp, 2001 [1921]. Prop. 5.633. P. 246.

“Agir por interesse”

O “agir por interesse”*, entre outras coisas, é parte da vida de apego. Só o desapego permite a livre ação, uma ação sem outra motivação (ou determinação) além de si mesma: agir por agir, desejo sem objeto.

Desapego, vida livre, vida feliz – é desfazer a “união gloriosa”* do nosso ser esclarecido com “conceitos vagos e experimentos erráticos”*.




(*) Francis Bacon apud ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985 [1944]. P. 19.

Embaraço

Afinal, relativamente a um certo aspecto do real, somos aristotélicos ou spinozistas?

Para nós, há uma ciência de tudo – tudo é, na sua singularidade, inteligível (Spinoza)? Ou há, sim, um domínio do real que excede à inteligência – a infinita gama real de singularidades, que existe apesar de inapreensível (Aristóteles)?

Só no desdobramento político desses princípios, se desfará o impasse metafísico.