Diário de Moscou XXII

Na verdadeira Moscou, entre verdadeiros moscovitas, nós, berlinenses, estamos como que entre índios.

Disposição índia V – vivernisso!

Vivernisso, por outro lado, não é uma regra! Nem ética nem política. É uma disposição: um estado habitual ético-político adquirido (que, portanto, nada tem de natural).

Vivernisso, no favorável, é um comunismo democrático sem soberano, para além do justo e do injusto, do “toma lá, dá cá” de mercado.

Mas “vivernisso” não é o contrário de “superar-se”. Não é viver dentro dos limites, porque nisso é o ilimitado, o fértil, o abundante.

“Superar a si mesmo” como regra política

A regra ética, “Superar a si mesmo”, pode ser uma regra política? Em certo sentido, sim.

Provavelmente não pode ser uma regra política (no sentido de uma regra universal comum, quando a superação é uma produção coletiva). É muito improvável uma coletividade política subsistir, se ela visa à superação de cada um dos seus membros (isto é, de todos, individualmente).

No entanto, nessa impossibilidade da superação universal, a coletividade, por vezes, concebe, produz e sustenta, politicamente, o verdadeiro soberano (o que supera):
– a desaparição de outros soberanos que não aqueles que ainda sobrevivem (em grande parte domesticados, reduzidos à razão) priva-nos da visão do “homem integral” [super-homem, aquele que supera o homem] que a humanidade de outrora queria ter, em sua impotência de conceber um sucesso pessoal igual para todos.*

As cidades de “outrora” sacrificavam-se para liberar seus mestres dos limites impostos aos cidadãos comuns. Pelo menos, eles podiam contemplar o que se supera.

Estas cidades, por suposto, não podiam ser democráticas. A democracia é a sociedade de seres humanos medianos, justos, isto é, que não tomam mais para si do que lhes é devido, humanos insuperados. Na democracia, quem se supera é condenado ao ostracismo.





(*)BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2013 [1957]. ESTUDO II – O homem soberano de Sade. P. 192.

Ops!!!


Ops!!!


Índia-horizonte-deusa

A que nunca se opõe, nem se deixa jogar-julgar diante. Nem limitar e apreender. Para a qual não há perspectiva. Da qual não há conceito. Nem retrato. Mas que não deixa de se mostrar e dar a pensar.

Disposição índia (III) e cinco determinações da essência do capitalismo

O essencial é o além (Platão). – capitalismo para os excluídos.

O essencial é o fim (Aristóteles). – capitalismo para os neoliberais.

O essencial é o princípio de desdobramento (Spinoza). – capitalismo do capital-potência.

O essencial é o limite (Heidegger). – capitalismo da finitude, ser-para-a-morte ou consumismo.

O essencial é o superar-se (Nietzsche). – capitalismo como civilização ou negação da disposição índia.

Disposição índia (II) e capitalismo

Uma vassoura de palha de buriti. Preço de venda: 5 reais; puro ganho.

Todos os materiais de sua produção estão-aí, simplesmente dados e disponíveis (vorhandene). Não calcule o tempo de sua produção; não relacione tempo e custo.

Diário de Moscou XXI

Moscou: a existência é vivernisso: essência do comunismo.
Berlim: a existência é renascerdisso: essência do capitalismo (mascarado de nacional-socialismo).

Disposição índia

Já tratamos disso como esterilidade e fertilidade, conferir:
esterilidade-ou-fertilidadeesterilidade-ou-fertilidade-iiesterilidade-ou-fertilidade-iii.

Mas é justamente isso que em tempos nossos precisamos pensar. Agora, sob outros nomes.

São duas disposições ou estados habituais (hexis, habitus) humanas: a disposição índia e a disposição superação-de-si.

Na primeira, tudo pode permanecer como-está, pois como-está está bem. Um modo epicureu de ser. Somos um pedacinho de um mundo acolchoado e ilimitado. Estamos diante de e frequentemente envoltos por um rio muito largo, longo e fértil, que não para de fluir. A existência é viver nisso (não, disso).

Na segunda, trata-se antes de morrer do que de permanecer assim, como-está. É preciso sobretudo superar-se, superar seus próprios limites. Somos o limite do mundo. Um modo nietzschesco de ser. O mundo é um limite coercitivo, que é preciso perfurar (per-forar), transgredir. Estamos em um lago secante e estéril. A existência é renascer disso.

Ambiente kafkiano

Afinal, como somos promessas de sociedades político-morais, é aceitável que todos nós sejamos injustamente condenados, que um juiz nos condene por um ato que não cometemos (daí a injustiça), pois sempre o juiz há de ignorar no seu julgamento a totalidade dos nossos atos (daí a aceitabilidade da condenação).

Não é isso que Proust significa quando escreve que não há “quase nunca, condenação justa nem erro judiciário, mas uma espécie de harmonia entre a falsa ideia que o juiz se faz de um ato inocente e os fatos culpáveis culposos que ele ignorou ”*?






(*) PROUST, Marcel. Albertine disparue. Col. Folio Classique. Paris: Gallimard, 2009 [1923]. P. 30.

A origem da alma

O velho já não tinha o corpo. Extenuado, o corpo já não obedecia aos desejos persistentes (possivelmente imortais) e cada vez mais vigorosos do velho. Por isso, o velho serviu-se do corpo de um outro, muito mais jovem, a quem deu o nome de escravo-trabalhador.

Diário de Moscou XX

Não que eu deseje retornar a Berlim (já não sei mais em que direção geográfica Berlim se encontra). Mas a crescente impossibilidade de trabalhar, de pensar, que domina meu cérebro nestes últimos tempos, começou a me aterrorizar com a suspeita de que eu nunca mais consiga deixar Moscou.

Logo percebi, no entanto, que esse terrorismo é sinal de que me aproximo das fronteiras siberianas – do inapreensível ao pensamento-trabalho.

Pastagens

A filosofia em geral se restringe ao domínio da redução do commons contínuo a enclosures descontínuos e racionalizados. Ela vive disso, ela vive ali.

A filosofia específica, pelo contrário, avança às fronteiras desses campos fechados e racionais. Desde dentro para fora, para onde não pode mais, digamos, respirar.

açúcar-pré-sal

A história da filosofia pode ser vista como um grande manancial, uma grande reserva, uma inesgotável fonte de prazer, da qual você pode usufruir solitariamente (numa relação verbal pronominal) ou mesmo para dominar os outros (numa relação verbal transitiva).

Pronominal ou transitiva, a entrega à filosofia é fricção de pensamento com pensamento. Daí, o gozo.

Pronominal ou transitivamente, leva-se às vezes uma vida inteira, para se perceber que, além do seu gozo, é também a história da filosofia, vampírica, que goza de você.

Inkling

A mais simples suspeita (que é nitidamente um afeto) já é um grau de conhecimento.

Um afeto é qualquer alteração de estado, prazerosa ou dolorosa.

A história de um homem

Ele é estritamente humano, quer dizer, repugna-lhe tudo o que se diga sagrado (ou violento).

De fato, movido pelo mesmo terror dos primitivos, esse homem nega, ao invés de afirmar, como fazem os arcaicos, tudo o que, essencialmente e não só contingentemente, escape à sua inteligência humana, tudo o que seja humanamente inapreensível.

Inconscientemente, ele nega o que teme, e tão pavorosamente que chega ao ponto de tornar-se violento, sem compreender por quê.

Dispositivo-crocodilo ou capitalismo

Somos uma presa na mandíbula cerrada de um crocodilo que gira sobre seu próprio corpo.

Mas, enquanto isso, precisamos ainda e sempre nos ocupar com nossa própria digestão, com o que se passa em nosso próprio ventre, como se fosse isso o que mais nos importasse.


Capitalismo negativo

O capitalismo move-se em eras. Entramos em outra, a do capital negativo. Capital? Uh! Que batata quente!


NYT: BREAKING NEWS Thursday, June 5, 2014 7:53 AM EDT
European Central Bank Cuts Deposit Rate to Negative


O capitalismo move-se em eras: como um crocodilo que gira sobre seu próprio corpo, com a sua presa entre as suas poderosas mandíbulas, para dilacerá-la. Sua presa? Pode ser até mesmo o seu próprio rabo, se nada há por fora. Mas, isso é absolutamente natural. Não se veja maldade nisso. Só o humanismo enxerga o bem e o mal.