Fixando-me em objetos

Não tenho nada em que pensar, então, penso nas qualidades de meu relógio de pulso.
Mas, meu relógio tem essa qualidade especial – se eu tirá-lo do pulso, ele para.

A aranha e o humano


Uma aranha que jamais se viu num espelho vai até o espelho, olha sua própria imagem, toma-a por um outro ser, recua um pouco, levanta as patas dianteiras, em sinal de agressividade.

Se a aranha fosse um humano, mesmo se não se reconhecesse na imagem, eventualmente, como aconteceu com Narciso, ao contrário, poderia se apaixonar pela imagem.

Família, velho lar de nossos bens e males


Assim como especulava com os títulos de suas empresas, espalhando por toda parte um punhado de boatos, para sobrevalorizá-las, a burguesia dos novecentos, na sua afirmação histórica, sobrevalorizava a família (como condutor, por hereditariedade, ao mesmo tempo, de cargas biológicas e morais de fundo religioso). É o que fica patente no diálogo que se segue.
OSVALD – Era um dos grandes médicos daquele lugar. Foi preciso descrever-lhe o que eu sentia; depois, ele começou a me fazer uma série de perguntas que me pareceram sem qualquer relação com o meu estado; eu não percebia aonde ele queria chegar.
MADAME ALVING – Continue.
OSVALD – Ele acabou me dizendo: Há em você, desde o seu nascimento, alguma coisa de “vermoulu”; foi a expressão que ele usou.
MADAME ALVING, escutando com uma atenção concentrada – O que ele queria dizer?
OSVALD – Era isso precisamente o que eu não compreendia, eu lhe pedi para que se explicasse mais claramente. Ele disse, então, o velho cínico... (Fechando o punho.) Oh!... 
MADAME ALVING – Ele disse?
OSVALD – Ele disse: Os pecados dos pais recaem sobre seus filhos. 
MADAME ALVING, levantando-se lentamente – Os pecados dos pais...!

IBSEN, Henrik. Les revenants [1882]. Trad. Moritz Prozor et alii. In: Ibsen: Drames contemporains. La Pochothèque. Paris: Librairie Générale Française, 2005. P. 333. 

Entre fantasmas

Goetz*, meu fantasma, não é exatamente Deus que reencontramos, quando o matamos? O Deus vivo não é o Deus morto?


(*) SARTRE, Jean-Paul. Le diable et le bon dieu. Col. Folio. Paris: Gallimard, 1951. 

Anarquia purificadora

O Estado é o freio do karma. Com o Estado, entre a causa e o efeito, são intercalados outros efeitos e causas. Por isso, o Estado retarda o karma, o retorno purificador do efeito sobre a causa. Se queremos alcançar o nirvana rapidamente, devemos promover a anarquia. Mas, nessa questão do nirvana, quem se interessa pela rapidez ou pela lentidão? Só mesmo aquele que está muitíssimo distante do nirvana.

Digno de amor? Quem? – II


Quem é digno do nosso amor? Aquele que toma para si toda a nossa culpa? Ou aquele que nos acusa?

Se só é digno de amor aquele que nos redime de nossa culpa, então, numa certa lógica, só Cristo é digno de amor. Pois só ele toma para si toda a nossa culpa (ao pagar por ela e apagá-la)... ninguém mais. Só Cristo nos salva, ao se sacrificar por nós.

[Por isso, Nora abandona seu marido, Tornvald Helmer]

Entretanto, nossa culpa, implica alguma acusação. Se há culpa, afinal, deve haver também alguém que nos acuse. Quem nos acusa originalmente de nossa culpa, da nossa culpa original, da culpa que vem de nossa própria origem? Ora, o Deus Pai. Mas, nessa mesma lógica, devemos amar a Deus acima de tudo. Assim, devemos amar, acima de tudo, aquele que nos acusa.

São dignos do nosso amor, ao mesmo tempo, aquele que nos salva e aquele que nos acusa de toda a nossa culpa. Por isso, ainda segundo a mesma lógica, estes dois equivalem a um. Cristo é Deus. O filho de Deus é Deus.

Na purificação da nossa culpa ou da culpa no mundo, Deus envia seu próprio filho, ou a si mesmo, ao sacrifício.

[Por isso, o Consul Bernick, para acabar com a sua culpa, envia, sem saber, é verdade, seu próprio filho, Olaf, ao naufrágio do Indian Girl

Nesse passo, completamos uma pequena volta pelo teatro de Ibsen, e chegamos a como eliminar o podre.

Digno de amor? Quem?


[esquema da peça de Ibsen]

_ Quem é digno do nosso amor?

Só é digno de amor aquele que “quisesse tomar tudo, tomar para si toda a [nossa] culpa”* – e assim nos desculpasse de toda a nossa própria acusação.

Ou, ao contrário, só é digno de amor aquele que nos acusa.

 [a luz está sobre os personagens menores]

(*) IBSEN, Henrik. Une maison de poupée [1879]. Trad. Moritz Prozor et alii. In: Ibsen: Drames contemporains. La Pochothèque. Paris: Librairie Générale Française, 2005. P. 240.


Epidemia de ódio


Acontece um humano ser de tal maneira atraído pelo que tanto odeia, que, sob esse domínio, também se torna odiável.

Espaço e ficção


Nada parece mais real ou anterior ao próprio real do que o espaço. Mas, o espaço, eu penso, se define no próprio jogo da realidade, no qual o real se enuncia (ou no jogo da ficção). Isso fica evidente no teatro.
“Primeiro Ato 
Grande salão que dá para o jardim. No primeiro plano, à esquerda, uma porta. Um pouco atrás, outra porta semelhante. No meio da parede oposta, uma grande porta. No fundo, uma divisória inteiramente envidraçada, com uma porta aberta, através da qual se percebe uma larga varanda coberta e uma parte do jardim, que é cercado por uma grade com uma pequena porta de entrada. Ao longo da grade passa uma rua. Do outro lado da rua, casinhas de madeira pintadas com cores claras. Em uma loja, ao final da rua, entram alguns clientes.”*


Aqui, o espaço, embora seja definido no início da fábula, não é o seu pressuposto. Ao contrário, é a organização espacial que pressupõe a fábula (o número de personagens, a sua ordem de entrada e saída de cena etc.). É em função da fábula que o espaço se configura.




(*) IBSEN, Henrik. Les Piliers de la société [1877]. Trad. Moritz Prozor et alii. In: Ibsen: Drames contemporains. La Pochothèque. Paris: Librairie Générale Française, 2005. P. 67.

A minha definição e a sua


Por relativismo, eu entendo a teoria da verdade que afirma que os enunciados verdadeiros envolvem em si mesmos a relação que os sujeitos desses enunciados mantêm com a realidade que eles pretendem enunciar.

Talvez, você prefira entender por relativismo algo mais amplo: toda concepção filosófica que não admita verdades absolutas.

Nisso, porém, você deixa de lado o real. Enquanto eu, eu digo que, para o relativista, a realidade é uma coisa e a verdade uma outra. Se o relativista diz que não há verdade absoluta, é porque ele acredita que, acerca da absoluta realidade, nós só podemos enunciar opiniões.

Eliminar o podre


Eu gostaria de desaparecer com toda esta sociedade podre. Mas, outras gerações virão depois de nós. Tenho meu filho, por quem eu devo trabalhar. Eu quero prepará-lo para uma grande tarefa. Virá a época em que a verdade encontrará seu lugar na vida social; talvez sua existência será mais feliz do que aquela de seu pai.*

Biopolítica. A ideia de que da dolorosa eliminação da podridão possam-se abrir os campos e os tempos para o que é bom e verdadeiro, como parte da ideia de que a destruição se justifica por sua capacidade criadora...

Na maioria das vezes, senão sempre, porém, a eliminação da podridão elimina junto as sementes dessa esperança.


(*) IBSEN, Henrik. Les Piliers de la société [1877]. Trad. Moritz Prozor et alii. In: Ibsen: Drames contemporains. La Pochothèque. Paris: Librairie Générale Française, 2005. P. 157, in fine.

Corpos compostos pelo nosso corpo


Se o processo de individuação de um corpo se exprime pela sua capacidade de produzir efeitos no real que se explicam apenas pela natureza do corpo, então, nosso corpo incessantemente convém com outros, no processo pelo qual corpos compostos do nosso se individuam.

Por exemplo, o violinista e o violino, no momento da música, formam um corpo composto. Ambos, além disso, formam o corpo da orquestra. E todos os músicos da orquestra, porém, ao mesmo tempo, formam uma parte do corpo político que se exprime na cidade.

Proposição + poder + sujeito = enunciado

Não existe proposição que não seja enunciada. Por isso, sempre nos são dados regimes de veredicção, que somam ao respectivos jogos de proposições, os correlativos jogos de relações de poder nos quais nosso ser se constitui em sujeito (objetivo e subjetivo) das proposições.

O enunciado difere da proposição exatamente nisso, ele envolve na proposição o seu regime de veredicção.

Mutação_ certa quaedam ratio


O alquimista busca perceber o ponto pelo qual uma forma pode mutar-se em outra. _Já não se trata de reset.


Reset


O corpo demora a tomar noção do novo espaço, a se integrar ao novo arranjo das coisas, enquanto combate para se estabilizar em uma configuração mais adequada, como a mente demora a tomar noção das novas ideias.

Isso que há, isso que não há

Biopoder. _Afinal, o que há, nessa situação, que me provoca tanta ansiedade? Ou será a falta de um medicamento adequado?

Conatus-nexus no peixe



Conforme a sua natureza própria, o peixe nada. E não pode se esforçar em fazer nada que contrarie sua natureza própria (deslocar-se fora d’água sobre o chão seco, por exemplo). O peixe é o conatus de ser peixe, pelo qual faz o que faz.

Conforme a natureza, mas dessa vez considerada como um todo, o peixe nada. E nisso tudo que ele faz, o peixe o faz assim determinado por todas as outras coisas da natureza. O peixe é o nexus de causas exteriores que o faz ser peixe.

A natureza toda e a natureza própria do peixe convêm sem falhas. No peixe, o conatus de ser peixe e o nexus de ser peixe convergem, ponta a ponta, sem falhas.

Mas acontece o peixe ser fisgado para fora da água e arrastado pelo chão seco. E isso não contraria o que foi dito antes. Porque, nesse devir, o peixe deixa de ser peixe para se tornar outra coisa.

Conatus-nexus

Somos o que somos, isto é, o que fazemos ou praticamos. Nossa interioridade se liga sem falhas (sem imperfeição) à nossa exterioridade.

O Conatus próprio pelo qual afirmamos nosso ser na existência se junta, ponta a ponta, com o Nexus de causas exteriores que determina nosso ser a fazer e praticar o que fazemos e praticamos.

Por uma ética da leitura: transportar-se por meio de...


Se você lê um texto, vê um filme, ou ouve alguém, de maneira atravessada, apenas para saber do que ali se trata, se você não encarna a letra do texto, se não se estabelece algo de comum (conveniente ou contrariante) entre você e a imagem do filme, ou entre o seu e o corpo do outro, então você não é transportado, por meio do texto, do filme ou da outra pessoa, a um outro modo de ser você mesmo.

Exílio ad infinitum

A volta do exílio nunca ocorre. Ela é apenas um exílio dentro de outro. Onde se está, nunca se está de volta. Aqui, seja onde for, é sempre o exílio do exílio do exílio do...

Sempre elogiar o acontecimento II – _Mejor! Assim...



A máxima ética _ Mejor!_ não se trata de um fatalismo, de um amor fati passivo. Pois nesse Mejor! trata-se de encontrar, ativamente, a razão do acontecimento, a melhor alternativa. Trata-se de inverter o fato em oportunidade, a necessidade em liberdade.

Com efeito a máxima ética daquele meu conhecido (e amigo secreto) é: _Mejor! Assim...

– Nossos cavalos, neste deserto, vão em breve morrer de sede? _Mejor! Assim, poderemos comer sua carne...

Mecanismos afetivos XIV – rebatimentos


O desgosto (o nojo) que sentimos dos outros é, às vezes, o desgosto que sentimos de nós mesmos.

Tomemos alguém que admiremos por suas qualidades que, em nossa imaginação, acentuamos demasiadamente. Essa admiração que temos pelo outro se reflete em uma depreciação de nós mesmos, pois, referidas às qualidades do outro, imaginamos nossas próprias qualidades muito inferiores – e isso nos entristece.

Esta tristeza que sentimos com nós mesmos nos enjoa. Para evitar esse enjoo com nosso próprio ser, mecanicamente, projetamos o desgosto sobre o outro que admiramos, e o, ao invés de apenas admirá-lo, ficamos enojados com ele, pois o imaginamos como causa do nosso desgosto. O nojo se sobrepõe, neste caso, à admiração.

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É teoricamente interessante perceber, em alguém que nos alegra e que, por isso, amamos, uma concepção teórica incompatível com a nossa.

Deus e o acabamento de toda soberania


De acordo com Spinoza, a infinitude da natureza divina se exprime da seguinte maneira.
“Nenhuma coisa singular na • natureza >•|das coisas| dada-é, que [dada], •• não dada-seja outra >••|mais potente e mais forte|. Mas, sendo alguma [coisa] dada, dada-é outra mais potente, pela qual aquela dada pode destruída-ser” (e4ax).
A natureza é infinita pois, ao se tomar nela um indivíduo qualquer, de potência determinada, será dada sempre, também, uma potência exterior ao indivíduo tomado que supere a sua potência determinada.

Seja N a natureza de potência infinita Pn. I, o indivíduo determinado de potência Pi. Haverá sempre, em N, um indivíduo I’, cuja potência Pi’ será superior a potência de I’.

Assim, se N é o indivíduo infinito, não haverá jamais um I que seja seu sucessor imediato, ou seja, que não tenha, no interior da própria natureza, um outro indivíduo I’, que lhe seja superior.

N não tem nenhum representante no seu próprio interior.

Com isto, indica-se a inadequação da noção histórica de soberania, que deriva imaginariamente seu poder da potência de Deus.

Sempre elogiar o acontecimento


A máxima ética de um conhecido: _ Mejor!
Ou seja: sempre elogiar o acontecimento.

Estamos perdidos no deserto entre Argentina e Bolívia? _Mejor! Assim, não precisamos voltar tão cedo ao trabalho. Nossos cavalos vão em breve morrer de sede? _Mejor! Poderemos comer sua carne...

Tendência à especulação

É possível que nós tenhamos, em maior ou menor grau de vivacidade, uma tendência natural à especulação (e, assim, à filosofia). Esta seria a razão da sabedoria popular, da qual a filosofia seria apenas uma espécie de ramificação disciplinada.

Confrontados às situações do mundo, nas quais estamos irremediavelmente inseridos, nosso regime mental observa, colhe, recolhe, coleciona, agrupa, distingue, excogita ideias, e, finalmente, formula regras de vida úteis ou, até mesmo, teoremas sem qualquer utilidade para a existência.

Assim, recentemente, ouvi de um amigo a tese de que, quanto mais nos aproximamos da linha do Equador, mais negra fica a nossa pele. Segundo ele, somos mais negros os de Guiné, do que os de Angola.

As crianças, também, não cessam de excogitar, e formular teorias. Um comportamento que, ao que tudo indica, vai desaparecendo conforme o humano se torna adulto. Já que os adultos (talvez por não saberem mais rir de si mesmos) se riem das esquisitas teorias das crianças.

Cuidado com o que se aprende

É preciso cuidado com o que aprendemos. Um cuidado que não só nos aproxime, mas também nos distancie daquilo de que cuidamos. Com o cinema, por exemplo. Seu perigo: o cinema nos ensina modos de viver.

Chápeu e publicidade

O que um chapéu tem a ver com um cachimbo? Um acontecimento, com um evento?

24 + 24 = um acontecimento não é um evento

Algo vai acontecer em 48 horas.

Consciência e consciência de si

Um homem de chapéu (desde nossa perspectiva, de cima para a cena, não se pode lhe ver os olhos) anda em seu apartamento. Seu passo ressoa no chão de tacos, sem tapete. Ele caminha nos corredores, e passa pelas portas que separam os cômodos, sem esbarrar nas paredes. Na sala, põe a mesa: os pratos, os talheres, os copos, tudo bem composto (nós não duvidamos de que ele esteja consciente, ele sabe o que está fazendo, seu fazer é coordenado com as coisas; pouco depois, desde cima, vemos outras pessoas se sentarem à mesa, para jantar; o fazer do homem de chapéu está articulado com o fazer das outras pessoas; ele e os outros comem, bebem e riem).
Mais tarde, quando todos se foram, perguntamos a ele por que não retirou o chapéu, enquanto estava em casa, durante todo o jantar, com todas as pessoas presentes. O homem levanta seu rosto em nossa direção (agora podemos ver seus olhos, parecem de vidro). Ele se diz muito surpreso com o chapéu, com o jantar, com as pessoas, como se, só agora, ele notasse que algo aconteceu, algo de que ele foi participante.

Não compre! _Isto é um[a] publicidade II.

Ou...


Mecanismos afetivos XIII


Quotidianamente, eu me sento diante de um sentimento dúbio de alegria-tristeza. De algum modo, talvez por experiência, eu sei que poderia buscar, e distingui-las, as razões da alegria como da tristeza. Mas uma preguiça, que faz parte da tristeza, me enlaça, e me retém diante desta busca, ela mesma, alegre e triste.

Devoção ao nihil


Há muito tempo estou tentando dizer (afinal, o que me impede?): atropelados somos por nossa própria vivência se não conseguimos contá-la.

Não consigo te (neste te: veja-se o mais genérico) contar o que vivo. Nem tu, o que vives a mim.

Voto de silêncio


Crátilo não dizia nada, porque para ele era impossível dizer uma palavra que significasse alguma coisa. Como todo “teólogo” que se preze, eu também faço-fiz-farei meu voto de silêncio.

Mas meu voto de silêncio tem outras razões: tudo o que eu falo é besteira (é besteira da imaginação o significado de tudo o que falo, embora as palavras mesmas sejam reais).

Por razões evidentes, porém, a enunciação do voto de silêncio não pode ser um testemunho do presente. Só posso enunciar meu voto de silêncio em relação ao passado (“fiz um voto de silêncio”) ou ao futuro (“farei um voto de silêncio”).

Ser da língua

Se a língua tem uma potência, se ela é capaz de desdobramentos ou efeitos, então há um ser da língua, mesmo que apenas imaginário (um engajamento das ideias da imaginação dos falantes da língua).

Poetar

O que fazem os poetas?

Eles escrevem, isto é, eles desobstruem os caminhos de desdobramento da potência própria de uma língua.

Tudo começa pelo método II

O vetor Foucaut-Spinoza (na sua não-modernidade) atropela, a contrapelo, a história (essa figura tão moderna).

Veja isso em: Tudo começa pelo método I.

Lutar, dançar


*


Até quando insistiremos em lutar com os anjos? Quando, enfim, começaremos a dançar com eles?

(*) Detalhe de um Delacroix (Église de St. Sulpice, Paris)

Tentativa de distinção entre as ontologias

Uma ontologia é qualquer discurso ordenado, ou melhor, qualquer ordem discursiva sobre o ser.

A metafísica é uma ontologia em que os fundamentos do discurso ontológico são considerados unicamente intelectuais e acessíveis à inteligência humana pela luz natural.

A teologia é uma ontologia, mas não é uma metafísica, na medida em que encontra os fundamentos do seu discurso numa revelação, por luz sobrenatural, que vai além da potência intelectual humana considerada em si mesma.

Além da teologia e da metafísica, outras ontologias são possíveis, como aquelas parciais das ciências empíricas.

Uma distinção possível entre individualização e individuação

O processo de individualização se distingue de um processo de individuação por isso que o resultado imaginário do primeiro processo é o indivíduo moderno, como sujeito soberano e autofundamentado, enquanto o resultado do segundo é uma singularidade que não tem seu fundamento em si mesma.

Poder real a partir de uma potência imaginada




Numa comparação crua, direta, uma vaca tem uma potência física muito maior que a de um ser humano. Entretanto, ela imagina o ser humano com uma potência física maior que a sua e, por isso, numa situação normal, foge dele, e nessa fuga se deixa governar por ele. Por quê? Talvez por uma peculiaridade de sua lente ótica, que a faça ver o humano muito maior do que de fato ele é, ou de seu ouvido, que a faça ouvi-lo como se fosse um monstro.

Liberdade e segurança

Na nossa atual ideia disposta de política, trocamos liberdade por segurança. Isto é, o tempo todo, aceitamos ceder de nossa liberdade [o que ressentimos como um mal] em troca da segurança do nosso corpo [que consideramos um bem maior].

Mas, na realidade da coisa, liberdade e segurança não se contrapõem. Pois não se pode reduzir a liberdade sem reduzir, junto, a segurança. 

Um regime político, um viver sob regras comuns a todos, que não envolva a liberdade de viver é inseguro.

É fácil fazer a máquina girar no vazio

O império de Wittgenstein – “do que não se pode falar, deve-se calar” – é vão!
“Nem os mais peritos (muito menos a plebe) sabem se calar! Este é um vício comum aos humanos: confiar a outros suas reflexões (consilia), mesmo quando é preciso silêncio.”*

(*) SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres III: Traité théologico-politique. Trad. Jacqueline Lagrée et Pierre-François Moreau. Paris: PUF, 2009 [1670]. XX, §4. P. 635.

Nexus III – nexo na aparência, não no nome








Van Gogh: http://pintura.aut.org/SearchProducto?Produnum=2969 &
Alexander Semenov: http://clione.ru/gallery/lab

Um deus finito


Deus é a razão da concepção intelectual das coisas naturais, conforme o dito:
|Tudo isso que (Quicquid)| é |em Deus é (in Deo est)|, e nada sem Deus ser, nem concebido-ser (concipi), pode. (e1p15)
Um Deus infinito (por definição: um ente constituído de infinitos atributos) é a razão da concepção de infinitas coisas:
A partir da necessidade (Ex necessitate) da divina natureza (divinae naturae), infinitas [coisas] de infinitos modos (infinita infinitis modis), isto é, todas [as coisas], as quais sob [o] intelecto infinito (sub intellectum infinitum) cair (cadere) possam, se-seguir devem (sequi debent). (e1p16)
Podemos ter uma intuição dessas duas proposições, a partir de uma quimera inteligível – um deus finito.

Seja um deus finito cujos atributos sejam apenas: 
1) a quadrilateralidade constante, cujas partes componentes são:
2) uma metade verde
3) um quarto azul
4) um quarto amarelo

Dada essa definição divina, apenas 16 modos a podem exprimir.
Cada um desses modos exprime o Deus finito, que é a sua razão de ser e de se conceber.
Cada um dos modos envolve a ideia do seu Deus finito.

Nexus II

Eu uso nexus para designar o elo estudado por Foucault entre sujeito, verdade e poder. 

Spinoza, numa abordagem ontológica, usa nexus para designar o encadeamento causal: “L’Esprit comprend que toutes les choses son nécessaires et sont déterminées à exister et à opérer par le nœud infini des causes (infinito causarum nexu)”. Ethica. Démonstration de la proposition VI, partie 5.

Outros usam nexus por ainda outras razões (por mim desconhecidas).




Ética do olhar II


Assim, olhar para cada coisa natural do mundo como se ela fosse, em si mesma, um céu absolutamente azul claro e sem nuvens.

A coisa: a dobra, o giro, o modo de individuação II


A dobra é uma inversão singular em que o envolver causas se torna exprimir efeitos. Quanto mais potência a dobra envolve, mais potência ela exprime. Esta é sua intensidade.

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Tenho a impressão que estamos perdidos por estarmos em um mundo em que não podemos mais nos perder.

Ética do olhar

Sendo assim, procuro me habituar a olhar docemente.

Pois, generalizando a intuição obtida, e passando da pessoa singular para a plural (de tu a vós), seria possível eu mudar o olhar que tenho, ou lanço, sobre mim mesmo, ao mudar o olhar que tenho, ou lanço, sobre todos os outros.

Mundo


Quando digo “mundo” [em “não há lugar para o amor no mundo”], não penso apenas no “le monde”, esse enredamento dos humanos uns com os outros e com as coisas que produzem ou que encontram a seu dispor. Penso no mundo das coisas (res), isto é, na re(s)alidade que envolve também os seres humanos e suas relações.

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Algumas vezes, no amor ou no ódio, eu me olho com o mesmo olhar que, em outras, eu te olhei. A tal ponto que já não sei quando o olhar, com o qual eu me olho, é alheio, sendo o teu, ou próprio, sendo o meu.

Polir ideias para obter ideias mais claras e mais potentes

Spinoza (além de pensar ou enquanto pensava) polia lentes.

A partir de um certo nível de polimento da superfície da lente, enxerga-se satisfatoriamente bem com ela. Entretanto, se a polirmos ainda mais, passaremos a enxergar com ela as coisas ainda mais claramente.

A ideia que temos de uma coisa qualquer também pode passar por esse processo de polimento.

Mesmo que tenhamos uma ideia satisfatoriamente clara da coisa pensada, ainda a podemos polir para que tenhamos da coisa uma ideia ainda mais clara.

Por exemplo, de uma elipse podemos produzir uma definição A que descreva o modo pelo qual a elipse pode ser engendrada. Podemos ainda produzir uma definição B de elipse, ainda mais clara que a definição A, no sentido de que, a partir de B mais do que de A, consigamos deduzir ainda mais propriedades da elipse. Dessa maneira, a definição B de elipse é mais potente do que a definição A (de B se geram, se demonstram, ou se veem, um número maior de coisas claras).

Lugar do amor no mundo

Aqueles que dizem não haver lugar para o amor neste mundo, talvez pensem que aquela frase oracular – Tu no entiendes nada del amor – seja a enunciação da condição humana e não, na realidade, um princípio constituinte do mundo.

Ali, em lugar nenhum

Li em algum lugar uma frase que não está escrita em lugar nenhum:

– Tu no entiendes nada del amor.

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Não é mau amar um cachorro ao invés de amar um humano. Não é mau amar uma fotografia ao invés de amar o humano fotografado.

Quimera



Impossível conceber, na ordem conceitual do mundo, o princípio de sua própria consumação (como nadificação) [um dispositivo constitucional de suspensão da sua própria constituição]. Pode-se porém imaginá-lo e concebê-lo [um mundo disposto] como princípio de sua própria metamorfose, isto é, transformação (mas não deformação | porque não há avarias no mundo).

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Talvez, porque uma folha de jornal ao vento tenha de si mesma e do mundo somente uma ínfima imaginação, ela seja, na sua vida – que na nossa perspectiva é absolutamente passional –, mais livre do que nós.

Papel no vento da necessidade

De todos os modos (é inevitável), somos todos como papel no vento; flutuamos, levados de um para outro lado, para baixo, para cima, não de acordo com nossa livre decisão, mas segundo as oscilações do vento, a direção instável do seu sopro.
 
Seremos livres nas nossas decisões somente à medida que elas coincidirem com a liberdade do fluxo da necessidade – ou seja, somente à medida que assumirmos nosso ser papel no vento.

Sobre a premissa: a ordem do mundo não muda

Sejam A e B ordens do mundo.

Se B deriva de A (segundo uma autotransformação de A que leva a B) então B é conforme a ordem A, ou seja, B=A.

Se B não é uma autotransformação de A, mas deve sua ocorrência a si mesmo, então devemos supor: ou que B coexiste com a ordem A, ou que B criou-se do nada.

Se B coexiste com a ordem A, então B e A são da mesma ordem e, novamente, B=A.

_ Então, nos resta uma nova premissa, talvez mais aceitável: ex nihilo nihil fit.

Segundo esta premissa muita grega, B não pode se criar do nada.

O amor no mundo

Dizem o amor não ter seu lugar na ordem atual deste mundo.
 
Se o amor (e com ele a paz e a justiça) só tem lugar num outro momento deste mundo (e não neste), então tem seu lugar aqui e agora, porque o mundo é e será sempre apenas uma configuração diferente do mesmo mundo (da mesma ordem).

Se o amor não tem lugar neste mundo, então não terá nunca.

– Premissa: a ordem do mundo não muda.

Mas se o amor não é deste mundo, então o que mantém o mundo (em certa medida) unido?

Junto à vontade


Na nossa concepção (intelecção, maneira de ver, ficção, como queira), nunca estamos aquém ou além da nossa vontade (voluntas). Não há nenhuma operação (movimento, gesto, disposição) do nosso corpo que possa ir contra ela, ou que não a realize plenamente. Nesse nível de presença da vontade, não pode haver vontade insatisfeita (insatiabilis).

– Muito bem, até concordo com isso quando se trata de um corpo solto. Mas, o que se passa em relação à vontade, quando o corpo é literalmente forçado a fazer alguma coisa, quando, por exemplo, violentamente, empurro um corpo pela janela, para que esse corpo caia?

Nós, em relação à vontade, não fazemos nenhuma diferença entre o corpo solto e o corpo preso. Então, quanto ao corpo empurrado, a sua vontade de cair, totalmente passional, era, no momento do empurrão e durante toda a queda, maior do que a sua vontade racional de não cair. 

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O destino é como uma linda égua a galope desenfreado, que não olha para os lados nem para cima, mas somente para baixo e para frente, ou seja, para ali de onde podem surgir seus obstáculos.

Filosofia e psicanálise


Na minha atenção, pululam imagens. Porque, como dizem os paraenses, meu passado está me “brechando”, está me mirando através das brechas da minha concentração.

A filosofia fala do presente, do eterno-presente (nos seus conceitos). Todo o seu esforço é para a atenção ficar aí, na luz sem flutuação de sombras, na luz sempre presente.

Mas sob a pressão das imagens do passado, o esforço se abre em brechas, pelas quais aquelas imagens ingressam na atenção. A atenção, então, sente falta da psicanálise.

Metafísica nas montanhas

Por que “os Tarahumaras são obcecados por filosofia”? Porque “eles não creem em Deus”, porque “eles desprezam o corpo”, e porque “vivem somente de suas ideias” – três características dos filósofos segundo Artaud.
Porém – nossa premissa, aqui: – não existe, nem existirá, nunca, a metafísica acabada, perfeita. Disso, duas alternativas.
OU (1): a tarefa metafísica é inverter as metafísicas, ou seja, é caminhar na contramão do seu sentido lógico, é ir dos seus conceitos para as suas definições e postulados, para encontrar, ainda aquém deles, a sua fonte primeira, da qual jorra a sua inspiração. E talvez só haja uma única fonte para todas as filosofias: “o Essencial, quer dizer, os princípios segundo os quais a Natureza se formou”. Assim, a tarefa da metafísica é tornar-se uma mística.
OU (2): a tarefa da metafísica é reinventar-se (reencontrar-se), numa nova ficção – que afinal define não tanto uma outra posição do ser, mas uma nova posição do sujeito que ficciona, frente ao ser de que fala: “os Tarahumaras se dizem, se sentem, se creem uma Raça-Princípio”*.

(*) Para todas as citações: ARTAUD, Antonin. Les Tarahumaras [1936]. In: Oeuvres. Paris: Quarto Gallimard, 2004. Pp. 753-755.