O interesse pelo abjeto II

Mas o conselho do Salvador pode não ser o motivo, pelo menos não o único, do interesse de Colerus por Spinoza. Seu interesse pode ter surgido também de uma curiosidade lógica. Como uma obra abominável pôde surgir de uma vida impecável?
 
Se o lógico e o ontológico, como se pensa desde Aristóteles, são o mesmo, então, como pôde existir a contradição entre o pensamento e o ser, entre a obra e a vida?

E é justamente este princípio, de que a obra exprime a vida, que Spinoza retoma, quando, para provar sua fé e se defender da acusação de ateísmo, adianta o exemplo de sua vida:

“Os ateus, com efeito, têm o costume de procurar sem medida as honras e as riquezas, coisas que eu sempre desprezei, como sabem todos aqueles que me conhecem’’*.

Dessa maneira, o interesse de Colerus pôde advir de uma incômoda suspeita sua: – a de que a obra de Spinoza não fosse tão abominável quanto lhe parecia.



(*) SPINOZA, Benedictus de. Lettres. Trad. Ch. Appuhn. In: Oeuvres IV. Trad. Charles Appuhn. Paris: GF Flammarion, 1966.  Carta XLIII.  P. 272.

O interesse pelo abjeto

Como exemplo do interesse pelo que é, para si, abjeto, penso no interesse que portou o ilustríssimo reverendo Colerus pela vida de Spinoza, autor de uma obra “abominável”*.  

Colerus, esbofeteado uma vez, com seu retorno à obra, não faria mais do que seguir o mandamento do Cristo (ou o conselho, como diria Spinoza). – Àquele que te atinge a direita oferece a tua face esquerda. Como se esse conselho também dissesse: “Ao virar teu rosto de um lado para o outro, olha bem quem te ofende”.




(*) COLERUS, Jean. La vie de B. de Spinoza. In: Éthique: Bilingue latin-français. Trad. Bernard Pautrat. Paris: Seuil, 2010 [1675]. P. 600.

Fluctuatio animi

Alguns julgamentos nos embaralham. Não sabemos decidir, afinal, se são um elogio ou uma desaprovação. Este, por exemplo, que alguém que nos conhece um pouco nos diz, como que de passagem:
 
– O senhor escreve melhor do que fala!

Isso nos alegra, porque escrevemos melhor do que… mas nos entristece, porque falamos pior do que… Assim, somos nós mesmos, alternativamente, ora a causa de nossa alegria, ora a de nossa tristeza.

Ponto morto

Hoje, no trem. Eu não podia ler sem adormecer. Mas também não podia adormecer, se parasse de ler. Fiquei alguns momentos preso nesse impasse, até romper com a situação.

Algo em comum

No ponto de ônibus, uma desconhecida me diz:
– “O de 8h38 acabou de passar, nós o perdemos!
”.
Eu penso: além da língua, já temos, eu e ela, algo em comum.

A citação

A citação não tinha primeiramente a função de apoio à argumentação, a famosa justificação por autoridade; aliás, típica dos profetas: – Foi Ele quem disse!
 
Tinha muito menos o seu caráter muito atual de substrato real, ao qual o comentário retorna numa espécie de verificação; aliás, típica dos teólogos: – Está escrito!, para quem um comentário não é verdadeiro por si mesmo, mas somente se for conforme a citação à que faz referência.

A função da citação era outra. Num ambiente político e natural de precariedade e dissolução contínua da materialidade dos textos, citava-se um trecho com a intenção principal de conservação e de transmissão de um legado. A citação era uma espécie de cópia parcial e rápida, que, em pouco espaço, duplicava um trecho importante, para diminuir a probalidade do seu desaparecimento.

O desejo

O desejo é como um jogo de quebra-cabeça com uma peça a mais (não a menos). 

Uma peça que deborda, não se encaixa. Desvia, esquiva, reconstitui o jogo. Joga diferente. É um a mais, que não se enforma. 

Você lhe dá uma regra, um doce, um nome, ele vira desejo de regra, de doce, de nome, mas apenas sempre parcialmente; sempre sobra aquela peça, que não sabe onde se colocar.