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Dado o amor pela riqueza, não pode ocorrer, ao mesmo tempo, a fé.

O atéismo de Spinoza III

Nietzsche, absolutamente, não era tomado de amor pela riqueza, mas era ateu.

No que Spinoza disse, leia-se:
– a negligência da riqueza (acompanhada de uma alegria imediata, isto é, a alegria mesma sem a ideia da própria negligência, isso seria o orgulho, nem de qualquer outra causa alheia) é sinal de fé –.
Vai-se disso a uma conclusão menor, porém, incondicionada:
– dado o amor pela riqueza, não pode ocorrer, ao mesmo tempo, a fé,
com a implicação (corolário) seguinte:
– dada a negligência da riqueza, não se dá necessariamente a fé,
pois a negligência da riqueza está condicionada a um tipo certo de alegria.
Este corolário se aplicaria a Nietzsche.

E tudo isso está perfeitamente conforme com o dito do Sermão da Montanha (Mt 6:24):
– "ninguém pode servir a dois senhores. [...] Vocês não podem servir a Deus e às riquezas".

O atéismo de Spinoza II

Se a pudesse comprovar, Venthuysen aceitaria, sem pestanejar, a justificativa que deu Spinoza, ao se defender da acusação de ateísmo:
“Costumam, com efeito, os ateus buscar exageradamente as honras e riquezas, duas coisas que eu sempre negligenciei; como todos, os que me conhecem, sabem”.
Pois, certamente, Venthuysen conhecia de cor o Sermão da Montanha (Mt 6:24):
"Ninguém pode servir a dois senhores. [...] Vocês não podem servir a Deus e às riquezas".
Um versículo dessa mesma passagem do Sermão aparece no primeiro parágrafo do Prólogo à Genealogia da Moral (Mt 6:21):
"Onde está o seu tesouro, aí estará também o seu coração".
Aqui, Nietzsche, também põe em jogo a impossibilidade da duplassubmissão, a impossibilidade de dirigir sua energia própria, simultaneamente, a dois mestres. A questão é, para Nietzsche: ou nos submetemos ao conhecimento das coisas, de Deus, ou nos submetemos ao conhecimento de nós mesmos.

A mesma arma, Spinoza usa-a para se defender da acusação de ateísmo, e Nietzsche para atacar em prol de seu ateísmo convicto.

O atéismo de Spinoza

Spinoza para se defender das contínuas acusações de ateísmo, geralmente, dava respostas abertas, como esta:
Componho atualmente um tratado [...] e meus motivos, para fazê-lo, são os seguintes: [...] a opinião que tem de mim o vulgo, que não cessa de me acusar de ateísmo”*.
Para refutar seu ateísmo, Spinoza escreve todo um tratado (o Theologico-politicus), que versa sobre o modo, para ele, correto de considerar a Deus, a religião, a piedade. Isso é o que chamei de resposta aberta, por sua forma dispersa.

Entretanto, em uma ocasião, pelo menos, a sua defesa é muito mais direta e pontual. Essa ocasião singular mereceu ser destacada, aos olhos iniciados e amigos dos editores de sua obra póstuma, no índice dos assuntos (index rerum) da edição de 1677, sob o verbete athei. A indicação refere à carta em que Spinoza responde à resenha feita, por um tal de Lambert von Velthuysen, justamente, do Tractatus theologico-politicus.

Para Velthuysen, o TTPclam Atheismus introducit”, insinua sub-repticiamente o ateísmo. Ou seja, a julgar pela compreensão de Velthuysen, ao menos no tocante a este assunto, o referido tratado não havia alcançado os objetivos inicialmente visados por Spinoza, que ainda precisava se defender da mesma acusação que o levara a escrever o TTP.

Então, a resposta que dá Spinoza é mais precisa:
“Costumam, com efeito, os ateus buscar exageradamente as honras e riquezas, duas coisas que eu sempre negligenciei; como todos, os que me conhecem, sabem” (**).
A prova que Spinoza apresenta contra a acusação de ateísmo é o fato de ele negligenciar as honras e riquezas, e não o fato, por exemplo, de ele afirmar a existência de Deus, como ele efetivamente faz, em vários lugares determinados do TTP. De que significado essa resposta é significante? Vejamos.

Como Spinoza escreve no TTP, cap. XIV, a fé em Deus não é do foro íntimo. A fé não se julga apenas pela fala interna que afirma, diante da própria consciência, eu acredito em Deus. Mas a fé é como um ato de fala, ou seja, uma fala que precisa estar conjugada com uma obra, com uma ação que concorre com a fala, assim como, na geometria, a propriedade dos três ângulos somarem dois retos vincula-se necessariamente à definição do triângulo.

Essa negligência das honras e riquezas é uma espécie de obra, de manifestação objetiva da afirmação interior e convicta da existência de Deus, da fé. Spinoza, mais uma vez, está dizendo não bastar ter fé, para obedecer a Deus, mas ser preciso também obrar. A obra que ele apresenta, como testemunho objetivo de sua fé, é a negligência das honras e riquezas.

Por outro lado, aliás, Spinoza diz não bastar obrar, para ser salvo. – Ora, não basta apenas negligenciar as honras, as riquezas, mas também é preciso que isso seja feito por obediência a Deus, por fé, por acreditar na existência de Deus. Dito de outro modo, é preciso que esta negligência seja uma ação, e não uma paixão. Não negligenciar honras e riquezas por temer não as possuir, ou para rebaixar quem as possui. Mas as negligenciar, por entender, racionalmente, que nem honras nem riquezas constituem o verdadeiro bem, ou – numa versão menos intelectual – por amor para com Deus. É preciso negligenciar as honras e riquezas, diante de Deus. Esse é o ato de fala, essa é a prova que Spinoza oferece para se defender da acusação de ateísmo.

Esse ato (a negligência das honras e riquezas) de fala (eu acredito em Deus) coloca em questão muitos dos que se dizem fiéis: aqueles que, embora se digam fiéis, de fato, não negligenciam, mas admiram as honras e riquezas, como muitos dos mais veementes teólogos.

Com seu dito, Spinoza inverte o objeto da acusação. Veja, Venthuysen, os que se dizem fiéis, dizem seguir os preceitos da religião, mas, na verdade, o que consideram como sumo bem, o que mais admiram, o que mais desejam, sem qualquer penitência, são as honras e as riquezas, e, com isso, negligenciam ao Deus, no qual dizem acreditar. Esses são os verdadeiros ateus, os verdadeiramente perdidos***.



(*) Na tradução de Appuhn: carta XXX a Oldenburg. Essa carta não consta da Opera Posthuma.

(**) Opera Posthuma, 1677. Carta XLIX, p. 553. Conferir, na tradução de Appuhn, a carta XLIII.

(***) No início do Tractatus de Intellectus Emendatione, Spinoza elenca três bens que os humanos consideram supremos: além das honras e das riquezas, a licenciosidade (libido) – a satisfação sem freios da volúpia ou desejos sensuais. Mas Spinoza distingue a licenciosidade, porque esta, ao contrário das outras duas, vem sempre acompanhada, naturalmente, da penitência.

Tempo perdido

Tempo perdido: dois sentidos.

(1) O tempo que se perde, tempo sem utilidade, jogado fora, que não serve para nada, do qual não fazemos uso para aumentar nossa potência.

(2) Independentemente da utilidade, o tempo que se perdeu, que não volta mais, senão por meio de uma busca sempre incerta de si mesma, porque talvez essa busca não o reencontra, o tempo perdido, mas apenas o recria.

No primeiro sentido, é um tempo presente, no segundo, um passado.

Isso se diz, também, acerca do dito artístico, que cito de memória: não perca tempo; não, perca tempo!