Coragem e prudência

Na prudência, a coragem já está incluída como o fogo que lhe anima. A prudência sem coragem é pusilanimidade, não é prudência.
Na coragem, está incluída a prudência como o que lhe dá a sua dose. A coragem sem prudência é incêndio, não é coragem.

O objeto é gramatical?

Se fizermos confiança em Gaffiot*, os latinos deram às palavras, primeiro, uma significação objetiva, material, e, somente depois, por derivação, por figuração, uma significação mais abstrata. Assim, é possível formular-se o princípio de uma ordenação no tempo dos significados em latim: quanto mais abstrato for o significado de uma palavra, mais tardiamente a significação teria surgido.
 
Por exemplo, vestigia. Vestigia significa, antes de tudo, as impressões materiais deixadas pelos pés, ao andar, sobre a terra ou sobre a areia, e, somente depois, alcança o significado figurado, geral, abstrato, de “traços”, até mesmo invisíveis. Primeiro, pegadas; depois, traços, vestígios.

Talvez essa precedência da significação objetiva sobre a abstrata esteja ligada à provável crença de Gaffiot na definição ostensiva, segundo a qual, aprendemos o significado das palavras, ao relacioná-las, subjetivamente, a objetos reais exteriores apontados ao mesmo tempo que as palavras são enunciadas.

Pode-se, porém, pensar que o vínculo entre a palavra e o objeto se estabeleça de maneira inversa. Assim, a existência do objeto não precederia a da palavra, mas seria a da palavra, no seu entrelaçamento com outras palavras, que precederia a do objeto. Seria o recorte e a funcionalidade da palavra, no continuum sonoro estruturado pela gramática, que perfaria o recorte do objeto do continuum do seu pano de fundo real. De modo que o objetivo seria gramatical.

(*) GAFFIOT, Félix. Le Gaffiot de poche. Paris: Hachette, 2001.

Proximidades notáveis V

Conforme uma analogia toda filosófica, ligam-se os hebreus imediatamente saídos do Egito, em 1200 AC, e a multidão de iranianos imediatamente livres do Xá, em 1979 DC.

Lógica suicidária

Conjunção de duas premissas numa conclusão:
 
Esforçar-se necessariamente para suprimir a causa de sua própria tristeza. 

Imaginar contingentemente a si mesmo como causa da sua própria tristeza.

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Atenção narcísica

Admiro aquelas mulheres que, no século XXI, leem uma revista feminina ilustrada com a mesma compenetração com que, no século XVII, um teólogo lia um tratado de exegese bíblica.

Explicando os afetos: do corpo à alma, da alma ao corpo

“Ah! Você preferiria dormir aqui, perto de mim, do que ir sozinho ao hotel, disse-me Saint-Loup, rindo-se. 
– Oh! Roberto, você é cruel, ao tomar isso com ironia, disse-lhe, pois você sabe que isso é impossível [num quartel], e que eu vou sofrer muito por lá.
– Pois bem! Isso me compraz, disse-me, porque eu tive, por mim mesmo, esta ideia de que você preferiria ficar aqui esta noite. E é precisamente isso que eu fui pedir ao capitão.
– E ele permitiu? Exclamei.
– Sem qualquer dificuldade.
– Oh! Eu o adoro!
– Não, isso é demasiado. Agora me deixe chamar meu adjunto para que se ocupe de nosso jantar”, ele acrescentou, enquanto eu me virava para esconder minhas lágrimas.*

Nesta cena, Proust faz a descrição do reconhecimento do reconhecimento natural do favor que lhe fez o amigo.

Por um lado, aparece o incontornável do mecanismo afetivo, no automatismo das lágrimas. Se pudesse, Proust as evitaria; não pode, por isso se vira.

As lágrimas surgem como reconhecimento ou ação natural do corpo – uma secreção devida à alguma contração de alguma glândula. Contração à qual corresponde, junto ou ao mesmo tempo, na alma de Proust, a um afeto de reconhecimento (uma espécie de amor, de alegria cuja causa ele atribui a seu amigo) que ele não pode esconder, a não ser se virando de costas.

Por outro, ele reconhece imediatamente este afeto, que, para ele, porém, é desmesurado. Ele se envergonha (numa espécie de tristeza). Vergonha à qual corresponde, junto ou ao mesmo tempo, à virada do corpo de Proust.

A descrição da cena deixaria tanto o behaviorista como o animista em apuros.

O behaviorista, ao analisar a cena, precisa fazer abstração da alma (suprimi-la, desconsiderá-la). Olharia apenas para o comportamento, as lágrimas, o corpo que se vira. Seria difícil para ele explicar a virada do corpo. Como uma contração da glândula lacrimal, neste caso particular, faria virar o corpo, se, em outros casos, esta mesma contração não causa o girar do corpo?

O animista, ao contrário, ao considerar apenas o que se passa na alma – as intenções, as emoções, as volições, que animam, que fazem mover, que conduzem o corpo – teria dificuldades para explicar por que as lágrimas surgem, apesar da intenção da alma de as esconder. Para isso, talvez, fosse preciso hipostasiar na alma um princípio inconsciente.

Estas dificuldades, a do behaviorista como a do animista, cessam, se aceitamos saltar, oportunamente, de um plano a outro, do plano corpóreo ao anímico e vice-versa, a partir da premissa de que estes dois planos se equivalem.

Uma parte da cena é mais facilmente descrita no plano corpóreo, a das lágrimas, a outra, a da vergonha, no plano da alma ou das ideias das afecções do corpo.

(*) PROUST, Marcel. Le Côté de Guermantes. Paris: Le Livre de Poche, 1992 [1920]. P. 104.

Por uma ética da leitura: ler ou não ler as entrelinhas

Segundo Leo Strauss, o ostracismo social (que pode se reduzir apenas a um tipo de descrédito intelectual) é a forma mais branda da perseguição*. Para evitar este descrédito (por ambição, para agradar os outros ou simplesmente por medo), os escritores muitas vezes dissimulariam suas ideias verdadeiras, embora não deixassem de as inscrever entre as linhas dos seus textos.

(*) STRAUSS, Leo. La persécution et l’art d’écrire. Trad. Olivier Sedeyen. Paris: Gallimard, 2003. P. 64.

As ideias humanas são ideias divinas

Pensar que nossas ideias verdadeiras sejam também necessariamente ideias verdadeiras de Deus não é, afinal, entre humanos, um perigo fatal?

Alguém, na medida em que imagina que suas ideias sejam verdadeiras e portanto também divinas, pensa com muita facilidade que um outro que se opõe a uma ideia sua também se opõe a Deus. Não ocorre tão facilmente alguém ser acusado de inimigo de Deus, apenas porque tem uma ideia que se imagina falsa?

Porém, é preciso acima de tudo perceber que a ideia falsa de um ser humano não nega a Deus jamais (nem mesmo a ideia de que Deus não existe), ela é mesmo parte de uma ideia verdadeira em Deus.

As ideias humanas verdadeiras são ideias divinas, mas as falsas também. Só que, em Deus, as ideias humanas falsas se completam com outras ideias para se tornar verdadeiras.

Spinoza: “Todas [as] ideias, na medida em que a Deus são referidas, verdadeiras são” {e2p32}.

Da mística à política

A partir do desdobramento infinito, sui juriscausa sui, do fragmento solar da ontologia, o clinamen, a deriva, a errância, enfim, a imaginação. Da mística à política. A experiência mística presente no núcleo da experiência política: _isto talvez seja a ética.

Constelações afetivas

Afetos formam constelações. Em torno de duas cargas estelares inversas e principais, giram uma miríade de condensações de afetos derivados planetários, tonalizados de alegria ou de tristeza,  eles mesmos podendo constituir outros centros para seus satélites. Nem sempre observáveis ou nomeáveis, estes afetos podem ser pelo menos calculados.