Saco sem fundo (definitio sui)











Um saco sem fundo é um biruta.



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O verdadeiro Deus

Os racionalistas se afirmaram contra a superstição. Disseram aos supersticiosos: _ vocês possuem a opinião da religião de que Deus é isso ou aquilo, mas na verdade Deus é necessidade, eternidade e infinitude.

Entretanto essa afirmação, que se faz contra alguma coisa, faz com que os racionalistas, de certo modo, aceitem a superstição, como uma projeção confusa da verdade sobre o plano do conhecimento próprio à imaginação e à opinião – o único gênero de conhecimento a que pode aceder o ignorante.

O sábio aceita a superstição como uma espécie de sabedoria para ignorantes. Apesar de confusa, a religião, sendo uma vulgarização da metafísica, conduz, pelos caminhos da confusão, o ignorante a crer em Deus e a agir conforme essa fé, o que pode, dentro de certos limites, convergir com o agir racional.

Também podemos, por outro lado, pensar invertidamente essa relação entre a ideia confusa de Deus e a verdadeira.

Então, seriam os supersticiosos que aceitariam a metafísica, como uma projeção sobre o plano da razão das verdades da religião. Nessa inversão, é o supersticioso que aceita a metafísica como uma espécie de religião para incrédulos. Apesar de falsa em seus princípios, a metafísica, sendo uma humanização da religião, conduz, pelos caminhos da confusão, o sábio a conhecer a Deus e a agir a partir desse conhecimento, o que pode, dentro de certos limites, estar conforme com a prática religiosa.

Sábios metafísicos e religiosos estão encerrados na mesma grade arqueológica. Em uma outra grade está o fim da metafísica e a morte de Deus.

Definição de si (definitio sui) como saco sem fundo

O saco sem fundo não acumula nada de tudo o que se põe ali – é passagem.
Como não deixa de ser saco, sendo sem fundo, nega que sua essência se defina por sua função, causa final, utilidade – ensacar, acumular. Não está aí para a lógica da acumulação.

Minha alma ou mente é um saco sem fundo, por ela passam as ideias,
sem delas ela nada reter, senão a ideia de meu corpo.

É no meu ser corpo entre os corpos que se mostra o passar das ideias,
não no aprofundamento da minha alma.

Acerca da história _ rebatimentos

Na sua variação: vemos a repetição do mesmo, o invariante.
No rejuvenescimento do espírito: vemos o embotamento, a lassidão.
Na efetuação da razão: o puro irracional, a barbárie.

Na ipseidade: a abundância de singularidades, a infinitude.
Na lassidão: a ilusão do tempo, a eternidade.
No irracional: a própria justiça dos acontecimentos, a necessidade.

CONSCIÊNCIA = (PENSAR ≠ SER)

A consciência {essa ideia de uma massa de mente isolada do ser, constituinte do mundo, cujas janelas são os olhos} surge, como tal, quando o PENSAR deixa de ser igual ao SER.

Infans, puer, liberi

Não que os latinos considerassem toda infância como um período quase-não-humano ou pré-humano.

Infans
quer bem dizer o que é incapaz de falar. Mas designa apenas la toute petite enfance, o bebê, o estado de larva, do qual o humano pleno poderia ser dito tanto uma determinação, como um aperfeiçoamento.

Há outro termo para designar o que nós chamamos de criança, puer, que também significa escravo, servo – que poderia ser dito o menor; este já é falante, lhe falta apenas a liberdade.

Liberi, por sua vez, usado só no plural, são os filhos de pais livres, independentemente da idade.

Sobre o amor que tem como causa a liberdade

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Além disso, o amor de meretriz, isto é, pela libido gerado, que se origina a partir da forma [do corpo], e absolutamente todo amor, que reconhece outra causa salvo a liberdade do ânimo, facilmente passa ao ódio, a não ser que, o que é pior, seja uma espécie de delírio, e então mais discórdia do que concórdia é atiçada.

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Ao que se atém ao matrimônio, é certo o próprio convir com a razão, se o desejo de misturar os corpos é gerado não a partir da forma [do corpo] sozinha, mas também do amor de procriar e educar sabiamente os filhos; e se, mais ainda, um e outro, a saber, o homem e a mulher, tem como causa do amor não a forma sozinha, mas principalmente a liberdade do ânimo.


Spinoza escreve isso nos anos 1670.
Traduzi diretamente do latim. Ao tentar manter ao máximo seu estilo, o português parece um pouco truncado.

Sabedoria popular

_ Por trás de todo grande homem, está uma mulher.

Talvez seja verdade. No caso de Sócrates, há a horrorosa Xantipa, cujo horror empurrava o grande homem para as ruas, onde ele devia realizar, inconscientemente, o seu destino, como uma tarefa.

Cf. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1878]. Aforisma 433.

Recusa do pastorado

Quando os pastores "remonstrantes" (e não importa muito, aqui, o que esse pastorado significa, especificamente, pois falamos em geral), foram expulsos da Holanda, em 1619, depois do Sínodo de Dordrecht, algumas comunidades, primeiro no vilarejo de Warmond, continuaram reunindo-se em assembleias religiosas privadas, mas sem pastor.

Essas assembleias foram chamadas de "colégios". Os princípios dessas reuniões eram, basicamente, os seguintes: direito à palavra igual a todos os participantes e absoluta tolerância à participação de qualquer tipo de crente, inclusive não-cristãos. Após a leitura de trechos do Novo Testamento e da locução de rezas, a sessão era aberta a comentários.

Quando, um pouco mais tarde, os pastores retornaram, clandestinamente, às suas comunidades, para reassumir suas antigas funções, foram rechaçados pelos colegiantes, que haviam tomado o gosto da autonomia, e não queriam mais pastores orientando suas assembleias, retendo só para si o direito à palavra.

A justificativa bíblica, para sua recusa do pastorado, aparece na Epístola aos Tessaloniences: "Quem não trabalha, não come" (2Tes 3:10).

A recusa do pastorado vai de par com a de se sustentar uma casta que não opera.

Cf. KOLAKOWSKI, Leszek. Chrétiens sans église. Trad. Anna Posner. Paris: Gallimard, 1987 [1965]. Pp. 168-169.

A ideia de Deus em nós

O que é, em nós, a ideia de Deus, senão o correlato mental, o aspecto pensante, da nossa própria potência atuante, na medida em que a concebemos como uma expressão, um modo, da potência divina?

O cachorro é o cachorro do cachorro

“O cachorro é o cachorro do cachorro” – proposição (como um axioma) evidente por si mesma. Basta observar, ou pensar, dois cachorros juntos.

Uma segunda proposição, que se assemelha a do título, porém, é mais problemática.

Freud chega ao Homo homini lupus (humano é o lobo do humano), ao comentar a máxima: “ame o próximo como a ti mesmo” (que Spinoza indica ser o fundamento de todas as religiões). Máxima que ele, Freud, considera totalmente irrazoável, um “credo quia absurdum” (creio porque é absurdo).

O amor eventualmente une, diz Freud, desde que ainda permaneçam, para estes que se uniram, os motivos para odiar, algum bode-expiatório comum de uma agressividade instintiva e inexorável. O amor une, é certo, mas não pode unir universalmente*.

Para Spinoza, na política, a reflexão social daquela máxima religiosa culmina na justiça e na caridade (como formas objetivas daquela máxima _ como “obras”). Essas obras não exigem o correlato interno do amor ao próximo, mas apenas a fé em Deus, como determinação subjetiva para a justiça e para a caridade sociais. Spinoza contorna a questão da possibilidade da universalização do amor ao próximo, privilegiando o amor para com Deus, a substância única, cuja ideia está presente em todos.


* FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1997 [1930]. Cap. V, p. 63 ss.