Contribuição ao estudo do comportamento animal

Meu gato tem realizado performances. O que quero dizer com "performances"? Quero dizer que não se trata de um hábito seu. Do nada, ele descobriu essa coisa. Faz alguns dias. É muito provável que deixe de fazê-lo em breve. Essa coisa que é: _ele abre as tampas dos ralos do apartamento. Na varanda, no banheiro, na área de serviço, no outro banheiro. Aqui, ali, não todos ao mesmo tempo. Ele de vez em quando os destampa, um, outro, surpreendentemente. Parece que por brincadeira. A tampa fica ali, ao lado do buraco, desfuncionalizada. Chamo isso de performance porque, como disse, ele nunca foi de fazer isso. Isso é uma ação, uma invenção, uma intervenção no tempo, uma interferência dissonante, é voluntário, transforma, chama a atenção, exige uma reação. Isso me comove de pronto, não consigo deixar o ralo sem tampa. Vou lá e tampo o ralo aberto, profundo, garganta telúrica capaz de engolir o mundo, janela para o além. O gato me faz interagir com ele. A tampa do ralo e o ralo, como intermediários dessa interação. Uma intermediação. Não acontece o tempo todo. Não é uma fixação. Só quando ele decide, segundo sua lógica. Desarranjando, produzindo singularidades que rompem o encadeamento funcional das coisas umas nas outras, ele produz história. História animal.

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O engajamento do leitor tem vários graus possíveis: ler sem compreender; ler somente o que compreende; e, quando se dispõe a se transformar com a leitura, então, buscar ler o que não compreende.

Pequeno serviço público (ao menos um) - dois

Do Tao-tö-king, XI. De Lao-tseu.
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Trinta raios convergem ao meio,
mas é o vazio mediano que
confere ao veículo sua função.

Modela-se a argila para fazer vazos,
mas é do vazio interno
que depende seu uso.

Uma casa é perfurada de
portas e janelas,
ainda é o vazio que
permite o uso da casa.

Assim "o que é" constitui
a possibilidade de toda coisa;
"o que não é"
constitui sua função.


Traduzido por mim da tradução francesa: LAO-TSEU, –; TCHOUANG-TSEU, –; LIE-TSEU, –. Philosophes taoïstes. Bibliothèque de la Pléiade. Trad. Liou Kia-hway e Benedykt Grynpas. Paris: Gallimard, 1980. 782 p.

Há quem afirme o absurdo de uma filosofia independente da grega.
Mas como interpretar este texto oriental, a não ser filosoficamente?

Quando eu for nada

Quando eu estiver acabado, só poderei prestar serviços públicos. Quando eu estiver acabado, somente então começarei a servir para alguma coisa.

Pequeno serviço público (ao menos um)

Segue minha tradução para o português de uma tradução para o francês de um fragmento em alemão de Walter Benjamin.

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Fragmento teológico-político
Walter Benjamin (1921)

[p. 263] Só o messias, ele mesmo, perfaz todo devir histórico, nesse sentido que só ele redime, perfaz, cria a relação desse devir com o próprio elemento messiânico. Por isso, nenhuma realidade histórica pode, por si mesma, querer se referir ao plano messiânico. Por isso, o reino de Deus não é o telos da dinamis histórica; ele não pode ser posto como alvo. Historicamente ele não é um alvo, ele é um termo. Por isso, a ordem do [p. 264] profano não pode ser construída sobre a idéia do reino de Deus; por isso, a teocracia não tem um sentido político, mas somente um sentido religioso. O maior mérito de O espírito da utopia [1918], de [Ernst] Bloch é ter recusado vigorosamente toda significação política à teocracia.

A ordem do profano deve se edificar sobre a idéia da felicidade. A relação desta ordem com o elemento messiânico é um dos ensinamentos essenciais da filosofia da história. Esta relação condiciona, com efeito, uma concepção mística da história, cujo problema pode-se expor em uma imagem. Se a gente representa por uma flecha o alvo para o qual se exerce a dinamis do profano, por uma outra flecha a direção da intensidade messiânica, seguramente, a busca da felicidade da humanidade livre tende a se afastar dessa orientação messiânica; mas, assim como uma força pode, por sua trajetória, favorecer a ação de uma outra força sobre uma trajetória oposta, assim também a ordem do profano pode favorecer o advento do reino messiânico. Se o profano, então, não é uma categoria deste reino, ele é uma categoria, e entre as mais pertinentes, da sua aproximação imperceptível. Pois, na felicidade, tudo que é terrestre aspira a seu aniquilamento, mas é somente na felicidade que este aniquilamento lhe é prometido. – Mesmo sendo verdade que a intensidade messiânica imediata do coração, de cada indivíduo no seu interior, se adquire através da infelicidade, no sentido do sofrimento. Ao movimento espiritual da restitutio in integrum [restabelecimento no todo inteiro], que conduz à imortalidade, corresponde uma restitutio secular que conduz à [p. 265] eternidade de um aniquilamento, e o ritmo dessa realidade secular eternamente evanescente, evanescente na sua totalidade, evanescente na sua totalidade espacial, mas também temporal, o ritmo dessa natureza messiânica é a felicidade. Pois messiânica é a natureza, por seu eterno e total evanescer.

Buscar esse evanescer, mesmo para esses planos do homem que são natureza, tal é tarefa da política mundial, cujo método se deve chamar niilismo.


BENJAMIN, Walter. Fragment théologico-politique. In: Oeuvres I. Paris: Gallimard, 2000. Pp. 263-265.
Publicado somente em 1955, este texto foi redigido, segundo Gershom Scholem, em 1920-21, contemporâneo, portanto, de Crítica da violência: “[...] estas páginas não contêm ainda qualquer relação com as concepções marxistas. Elas se situam no terreno de um anarquismo metafísico [...]”.

O que é isso, o estado pós-neotênico?

Certos animais reproduzem-se somente em estado de larva. Sendo que seu desenvolvimento posterior, seu amadurecimento, não tem qualquer função reprodutiva.

Conheci esse fenômeno, a neotenia, através da obra do naturalista Levi. “Em suma – escreve Dr. Levi –, é como se uma lagarta, uma fêmea, copulasse com outra lagarta, fosse fecundada e depositasse seus ovos antes de se tornar borboleta”*.

Esse tornar-se borboleta, essa metamorfose, acontece apenas com um número reduzido de larvas, provavelmente com as que alcançam uma existência prolongada. A maioria permanece no estado embrionário, mas sexuado, até a morte. Dr. Levi esclarece que com a larva em cativeiro, no laboratório, não se consegue estabelecer as condições dessa transformação.

A transformação da larva em um ser colorido, harmônico, hábil, enfim, mais perfeito (pelo menos para os padrões estéticos humanos) não favorece em nada a reprodução da espécie. A borboleta assexuada do estado pós-neotênico é um ente totalmente gratuito do ponto de vista da espécie ou biológico, e por isso constitui uma aberração à luz da lei da seleção natural.

Procuro pensar que relação se pode estabelecer entre a neotenia e a passagem de Bashar a Ensan. Aparentemente, há alguma, mas qual? À primeira vista, Bashar seria a larva reprodutora; Ensan, a borboleta pós-neotênica – um milagre desligado da natureza biológica e cíclica. Mas no alcance do Ensaniat, Ithar e Thar são os operadores. Enquanto a metamorfose da larva não exige a sua morte, mas sua transformação viva.

O shi'ísmo de Shariati oferecia o shahadat (o martírio) como operador da passagem ao sublime pós-natural e transcendente. O estado pós-neotênico, por outro lado, é alcançado ainda em vida, na imanência.

Se há um estado pós-neotênico da espécie humana, em que se constitui? Seria um estado de superação de sua condição biológica e biopolítica? Pode o ser humano alcançar uma dimensão sublime em vida? Poderíamos chamar esse estado sublime de espiritualidade? Seria esse o übermensch, o para além do humano de Nietzsche?

O pós-neotênico humano: um ser vivo mais perfeito, para o qual a morte deixou de ser uma barreira, porque realizou sua sublimidade ainda em vida.

(*) LEVI, Primo. Borboleta angélica. In: 71 contos. Trad. Maurício Santana Dias . São Paulo: Companhia das Letras, 2005. P. 57.

Cladonia Rapida

É improvável que a bactéria Alcyon Alba tenha qualquer parentesco com o líquen Cladonia Rapida descrito pelo botanista Levi, em breve artigo científico de 1966, retomado em uma coletânea recente de seus escritos.

Vulgarmente conhecido como o “líquen dos automóveis”, Cladonia Rapida, segundo Levi, encontra terreno fértil nas “estruturas externas e internas dos veículos”, levando em curto intervalo à sua inutilização, em geral, devido à “grimpagem aguda e simultânea dos quatro cilindros”. Levi relata um caso isolado de contaminação humana pelo líquen. No tocante à Alcyon Alba, não há nenhum caso conhecido de contágio humano.

LEVI, Primo. Cladonia Rapida. In: 71 contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. Pp. 61-64.

Dispositivo do futebol

O dispositivo é uma espécie de armadilha. Não é preciso denunciar, todos somos conscientes: _o futebol é um dispositivo armado em torno da bola. Mas é preciso ir a um estádio para perceber todo o efeito-plasma que este dispositivo envolve.

Apesar de todo mundo saber do jogo sem bola, fora dos gramados – as negociações, os contratos, os poderes, o uso político, o uso publicitário, o interesse da mídia, os observatórios capilares de talentos, a apreensão da atenção de vasta multidão, o nacionalismo, a internacionalização –, mesmo assim há aderência. Pois o futebol afeta e, apesar da consciência racionalizante que entende o que há por baixo de tudo isso, nos deixamos levar.

O futebol afeta, e a explicação para isso não pode ser mais simples: _afeta porque somos entes cuja potência é por natureza afetiva. Negar a afecção seria como negar a potência que somos. E o futebol nos carrega porque somos entes de imaginação. A imaginação justifica o dispositivo que a consciência condena ao inferno.

A imaginação salva o dispositivo porque, num determinado momento desse jogo, tudo é como é, o que está por cima e aparente é real. O jogador joga, o torcedor torce, o jogo vale, os times competem, realmente. Sob os holofotes, torcida, campo, técnico, banco, comentador, espectador, camisa, cor, sangue, glória, a realidade se plasma em torno da bola.

E o que fazer da consciência? A razão, que corrói o maléfico dispositivo, ameaça porém corroer também nossa natureza afetiva. Ficamos, de certo modo, presos entre esse niilismo da razão consciente e essa jaula da imaginação.

Entre um real vazio e uma imaginação cheia, fica a pergunta: _há alguma realidade que não seja imaginária? Algum modo de ser por fora de qualquer dispositivo?

Regnum dei

Com a verdade, saímos entusiasticamente do reino da contingência para o reino da necessidade (regnum dei). Nesse entusiasmo, porém, brilha a idolatria.

A verdade, como deus, está sob 70.000 véus de luz e de trevas. A cada ciclo de luz e iluminação, a cada ciclo de obscurecimento e trevas, um véu é removido. E cada um desses ciclos envolve séculos de labor intelectual humano. Então, faça-se o cálculo: a verdade não é para hoje.

Por isso, bradam os geômetras: _estamos condenados à liberdade! Estamos condenados à imaginação!