No Qur’an, há dois termos para designar o ser humano: Bashar e Ensan*. Bashar é o ente humano dado, o animal biológico. Ensan, o que na humanidade remete à poesia, à filosofia, à religião. Bashar é o ente humano biológico que se reproduz indefinidamente, preso à sua própria definição. Ensan é o sendo humano, aquilo que no ser humano é não um ente definido desde sempre e para sempre, mas um vir a ser. Bashar é, no ser humano, o determinado. Ensan, o indeterminado, o aberto, o indefinível.
Se Hannah Arendt aceitasse essa dupla dimensão humana do Qur’an, ela diria que no humano Bashar labora, enquanto Ensan age. Bashar é o econômico, o condicionado, e Ensan, o político, o incondicionado, o livre.
Em Nietzsche, a questão do eterno retorno aplica-se não só a Bashar, o ente que reproduz indefinidamente a si mesmo, preso que é à sua definição auto-reprodutora, mas também a Ensan. De modo que, para Nietzsche, a própria ação volta a se repetir num ciclo contínuo e eterno (como se, num certo momento do disco vinil, um arranhão fizesse com que a agulha desse um salto para trás e repetisse a mesma música novamente).
Segundo Foucault – que diz que o ser humano moderno é o ser biopolítico: “o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”–, para o ser humano, acontece que Ensan interfere politicamente sobre Bashar. O humano moderno é o animal que age sobre si mesmo, e cuja ação é tal que transforma a sua própria determinação biológica. Exemplos dessa ação política de Ensan sobre Bashar seriam a vacinação, a iatrogenia, a eugenia, as políticas de natalidade, a bomba atômica, a genética, a sexualização do corpo, a redução dos mistérios da humanidade à sua vida econômica.
Temos então três possibilidades da relação entre Bashar e Ensan. (1) a corânica, que é, nesses termos, a mesma que a de Arendt – em que a duas dimensões são independentes uma da outra. (2) a de Nietzsche, em que Ensan emula Bashar, e praticamente não se distingue do seu mecanismo. E finalmente (3), a de Foucault, em que Ensan se funda sobre Bashar, e é por ela determinada; o que torna o ser humano unidimensional**.
(*) Conferir:
SHARI’ATI, Ali. Modern man and his prisons. In: SHARI’ATI, Ali. Man and Islam. North Halendon: Islamic Publications International, 1981. Pp. 46-62.
(**) Outras referências:
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 [1958].
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 [1882]. Aforismo 341.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 15 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
Nenhum comentário:
Postar um comentário