A baía de Yul

Realmente, em 1957, Albert Brugherson conseguiu uma esplêndida tomada da então inóspita baía de Yul, embora tenha esperado, pacientemente, durante anos, pela oportunidade, praticamente única, de fotografá-la – e o azul anormal do seu mar – sob o sol.
 
Será certamente por causa desta fotografia, que se imprimiu indefinidamente em revistas de viagem, em cartões postais, em nossa memória, e não pelos seus promontórios áridos e pelas suas falésias continuamente varridas pelo vento e pela chuva, que a baía de Yul, tem atraído, inexplicavelmente, a cada ano, milhares de turistas, em quantidades sempre crescentes.

Por uma ética da leitura: subtítulos

Na maioria das vezes, um título de livro não consegue dizer tudo sobre o livro, dar a pista exata do que se pode encontrar ali escrito. Então, para haver um engano menor, recorre-se ao subtítulo. Um segundo subtítulo e um terceiro dariam uma melhor indicação ainda. O mais certo seria intitular um livro por meio de um índice de noções (com as mais importantes em negrito e as menos importantes em cinza). Mais certo ainda seria pôr o texto todo do livro como título.


A = A


Verdade e história

Há, para eles, uma passagem sem volta da ignorância para a revelação, da qual se pode contar a história. Nesse sentido, pode-se, para eles, fazer uma história de como a verdade se revelou, que será sempre “a história da verdade”. A história do profeta. Ou a história de uma ideia.

Mas, para eles, a verdade está fora da história; e qualquer afirmação da historicidade da verdade já é negar a verdade.


Eu gostaria de tentar pensar a absoluta historicidade da verdade, sem negar a verdade ou a relativizar.

Consideremos que o relativista seja aquele que não acredita na existência da verdade, porque a verdade seria sempre relativa ao contexto de sua enunciação, isto é, à maneira pela qual numa sociedade e numa época se institui seu regime de verdade.

Porém, quando o relativista diz que “a verdade não existe”, imediatamente, ele entra em contradição consigo mesmo, porque, como o que ele afirma é uma verdade, ao afirmar ele nega a si próprio. 

Não podemos dizer, sem enrolar a língua, “a verdade não existe”. Digamos então ao contrário que a verdade existe, e como! A verdade existe multiplamente.

Se aceitamos a possibilidade de que a verdade tenha uma expressão temporal na imaginação – uma historicidade, uma efetuação na história, uma produção histórica de efeitos que produzem efeitos – podemos dizer que a verdade existe (é real, age no real, e o real age nela), mas temos dela uma percepção histórica que varia segundo um determinado regime de verdade, que é incontornável. Por isso, podemos falar da historicidade da verdade sem negá-la. 

A verdade existe, mas é imanente a um regime de verdade (que ele mesmo é existente e verdadeiro, e ao mesmo tempo histórico).

Que a verdade tenha necessariamente uma historicidade não quer dizer que as nossas ideias na história vão se tornando cada vez mais verdadeiras, que nos aproximamos continuamente da verdade. 

Estamos desde sempre e para sempre na verdade, mas há errância, saltos, descontinuidades dos regimes. Contudo, o regime de verdade é ele mesmo verdadeiro. E a verdade é imanente ao seu regime.

Um regime de verdade seria a maneira pela qual a imaginação se ordena para exprimir a verdade. A imaginação não é um nada. Ela tem uma positividade e uma ordenação própria, é pensamento; e, portanto, envolve, apesar da confusão, toda a verdade.

Errância, reforma, revolução nas ideias

Por medo, talvez, alguns dos pios humanos querem congelar as ideias. A não-variação, para eles, é a presença do eterno imutável. O que deve se revelar já foi revelado. O que deve ser dito já foi dito. Qualquer alteração da verdade posta, tal como foi posta, é uma profanação da ideia na sua divindade, e condenável.
 
“O pior de tudo está nas novidades; toda novidade é uma inovação; toda inovação, uma errância; toda errância é destinada ao fogo do inferno.”*


Para tranquilizá-los, podemos tomar o real divino por outra ponta. Tomá-lo tal como ele é, sem idealizá-lo. Tomá-lo na perpendicular, sem inclinações; ou dito de outro modo, tomá-lo ordinariamente (paralelamente: no seu plano de imanência).

O pensamento (e o pensamento é uma expressão de Deus e portanto divino) é feito não só de ideias fixas, mas do seu desdobramento infinito. As ideias divinas pulsam, produzem ideias, infinitamente. Obviamente, na perspetiva divina, isso não se dá no tempo. Nessa perspectiva, o movimento das ideias é seu encadeamento, sua relação umas com as outras, na infinita produção-exposição de tudo aquilo que é concebível. E este aquilo que é concebível é infinito, e constitui o que poderíamos chamar a malha de ideias infinita do real.

Na nossa perspectiva, a de entes finitos na existência, entretanto, o encadeamento das ideias, a malha do real, nós o percebemos não como uma produção-exposição, mas temporalmente, como movimento. Então é possível para nós pensar diferente, e alcançar novas revelações, mesmo parciais, ou perdermos as que havíamos alcançado.

Além disso, necessariamente, nossas ideias não são todas claras e distintas. Longe disso! Elas são quase sempre, quase todas, confusas, truncadas, imbricadas e sobrepostas umas às outras. Essa sobreposição e percepção parcial das ideias é a imaginação. Mas a imaginação não é por isso condenável. Ela é uma errância, certo, mas mesmo assim envolve, embora confusamente, ideias verdadeiras e divinas.

A imaginação é um movimento sobre e com a malha infinita das ideias divinas.

Não podemos condenar uma pedra por ser dura. Não podemos condenar um leão por ter pelos. Como Deus iria nos condenar por imaginar e imaginar?


(*) Tradição oral islâmica (hadith), apud: MERVIN, Sabrine. Histoire de l’islam. 2 ed. Paris: Flammarion, 2010 [2000].  P. 158.

Parisienses VII – Vulgaridades ao jantar

O que aconteceria se eu deixasse de existir? O mundo seria o mesmo sem a minha presença? Curiosa questão.
Era realmente por causa de jantares como este que todas essas pessoas se enfeitavam e recusavam deixar os burgueses entrar em seus salões tão reservados? Para jantares tais como este [que eu acabei de presenciar]? [seriam esses jantares] os mesmos se eu tivesse estado ausente? Tive por um instante a suspeita, mas seria demasiado absurdo. O simples bom senso me permitia afastar essa suspeita.*
O bom senso parece indicar que esses jantares são muito especiais. E portanto muito diferentes se “eu”
não estivesse presente. Ou será que o bom senso indica que a “minha” presença em nada os afeta, e que minha ausência lhes seria absolutamente indiferente?

Mas, afinal de contas, será que o senso analítico “me” permitiria colocar a questão da minha ausência?

“Se uma parte da matéria fosse aniquilada, juntamente também esvaeceria toda a Extensão.” **



(*) PROUST, Marcel. Le Côté de Guermantes I et II. Paris: Le Livre de Poche, 1992 [1920].  P. 604.

(**) SPINOZA, Benedictus de. Opera Posthuma. –: –, 1677.  Epistola IV.  P. 404.

Parisienses VI – Vulgaridade das pessoas do mundo

[Nada tinham de especial:] “de um corpo e de uma inteligência parecidos ou inferiores àqueles de todas as pessoas que eu conhecia”...* 

Então, como me submeter a eles?

“Porque o que os homens menos suportam é estar submetidos aos seus semelhantes e ser comandados por eles”. **




(*) PROUST, Marcel. Le Côté de Guermantes I et II. Paris: Le Livre de Poche, 1992 [1920].  P. 592.

(**) SPINOZA, Benedictus de. Tratado teológico-político. Trad. Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1670].  Cap. V.  P. 86.

Pensar em dar

E você, ainda quer que eu pense?


“Em seus primeiros poemas Victor Hugo ainda pensa, ao invés de se contentar, como a natureza, de dar a pensar.” *


(*) PROUST, Marcel. Le Côté de Guermantes I et II. Paris: Le Livre de Poche, 1992 [1920].  P. 609.

Parisienses IV – Entre um e outro

Com esta notícia [a da presença do irmão do rei entre os convidados], os traços da duquesa exalaram contentamento, e suas palavras o aborrecimento. “Ah, meu Deus, mais príncipes.”*





(*)  PROUST, Marcel. Le Côté de Guermantes I et II. Paris: Le Livre de Poche, 1992 [1920].  P. 649.

A fotografia e a pintura

A fotografia não só libertou a pintura da sua fixação realista, como fez descobrir ao pintor que, mesmo antes da fotografia, ele tampouco buscava fotografar o real.

Metáfora III

– A metáfora é a relação externa entre duas proporções internas.

Uma proporção interna é uma ideia. Uma ideia, mesmo imaginária, é uma potência. Quanto mais potente é uma ideia, tanto mais ela pode ser posta em relação externa com outras.

Ora, Deus é a ideia de uma potência infinita. Podemos imaginar Deus como a mais potente das ideias. Por isso não nos espanta a ideia de Deus poder ser posta em relação externa imaginária com todas as outras ideias. 

Ao refinarmos ou polirmos esta ideia imaginária, a ideia da relação de Deus com todas as coisas, esta relação externa se mostra também como relação interna.

Metáfora II

– A metáfora é a relação externa entre duas proporções internas.




Uma proporção interna (A/B) é uma ideia. Uma ideia, mesmo imaginária, é uma potência.
É dessa potência da ideia (A/B) que se estabelece na imaginação a sua relação metafórica externa com uma outra ideia (C/D). E, depois, com outra e com outra... num encadeamento indefinido de metáforas.
Esse encadeamento pode ser serial: (A/B) -> (C/D) -> (E/F)... ad infinitum. Ou assumir uma forma mais complexa. Vejamos como.

A metáfora, a relação externa, estabelecida entre a ideia (A/B) e a ideia (C/D), é, em si mesma, a ideia de uma proporção entre as suas ideias componentes.




A metáfora não é apenas a relação entre duas ideias, ela é também uma ideia { (A/B) / (C/D) }, a da proporção entre (A/B) e (C/D). 

A metáfora, como ideia, interioriza as ideias que ela inicialmente põe em relação.

Sendo uma ideia, { (A/B) / (C/D) }, a metáfora tem em si a potência de estabelecer relações externas com outras ideias. Estas ideias todas podem ser interiorizadas na constituição de metáforas cada vez mais complexas... ad infinitum.


Mas a forma de qualquer uma delas, que é a proporção, (/), está incluída em todas as outras. Cada uma dessas ideias pode ser embutida em todas as outras, ou todas as outras, nela.

Com isso damos um passo na direção da intelecção da ideia de Deus.

Metáfora

“Ah! Não, respondeu a duquesa, disto [desta tristeza] eu creio que ela não sinta nada. 
– Nada? Você vai sempre ao extremo, Oriane”, disse M. de Guermantes retomando seu papel de falésia que, ao se opor à onda, a força a lançar mais alto seu buquê de espuma.*

Possivelmente, o poeta encontra primeiro a metáfora e somente depois (com alguma dificuldade) a proposição-estado-de-coisas que lhe pode ser associada. Então, perguntamos, o que é metáfora de quê? A metáfora não é a onda e a falésia. Nem tampouco Oriane e M. de Guermantes.

A metáfora é a relação externa que se estabelece entre a relação ou proporção interna [falésia/onda] com essa outra relação interna [M. de Guermantes/Oriane]. (Como já dizia Aristóteles, não sobre Proust, é claro.)

Acontece que a relação [falésia/onda] é muito mais potente, ou seja,  produtora de relações externas imaginárias do que a relação [M. de Guermantes/Oriane]. Daí, a sensação de que a imagem [falésia/onda] é primeira frente a outra. Daí, também, o exagero ou o kitsch da relação metafórica.



(*) PROUST, Marcel. Le Côté de Guermantes I et II. Paris: Le Livre de Poche, 1992 [1920].  P. 569. Grifo meu.