Desejo de estátua

“Se eu morrer na batalha, não se esqueçam do que eu disse e fiz: – vocês, só vocês, garantem a minha imortalidade”. Assim se petrificou o desejo do humano-no-centro-da-praça-pública.

Tic-tac

O humano recebe a boa notícia que lhe advém em seguida a uma má notícia como um alívio para a sua tristeza; o alívio, como uma consolação; a consolação, como a ideia de que nem tudo está perdido.

O falante e o connaisseur II

A eloquência de um falante parece sabedoria não apenas para aqueles que o escutam, mas também para  o próprio falante. Esse engano geral é o que o predispõe ao desejo de comandar.

Teoria e prática II

Quando uma coisa contrária aos nossos interesses é, teoricamente, indubitável, só nos resta, na prática, queimá-la (ou, ao menos, viver e fazer viver como se ela não existisse) – na esperança de queimar a dúvida e a contrariedade junto com ela.

Mas, uma coisa teoricamente indubitável não pode ser contrária, salvo sob o império do engano, ao nosso desejo.

Questões reflexivas sobre a suficiência

Meu espírito será suficientemente fraco?
Quer dizer, será livre o bastante para não querer se deixar prender numa fortaleza?

Ainda a busca da inteligência

Você quer falar a coisa certa e se mostrar inteligente?

Então não diga tão certamente: a + b = c.
Apenas diga a... b... talvez c...

Complementando, aqui, isso que disseram Adorno e Horkheimer*:
– para ser inteligente é preciso ser estúpido.



(*) “– é estúpido ser inteligente”. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985 [1944]. Contra os que têm resposta para tudo. P. 195.



O famoso Triplo Retrato II e a metamorfose IX

O indivíduo é uma coisa (portanto, uma causa de outra coisa ((que, por sua vez, é causa de outra (((et sic in infinitum ((((portanto, metamorfose)))).

O indivíduo é uma causa.

O indivíduo é em metamorfose.

– Certo, mas, o que tem o Triplo Retrato a ver com isso?

O indivíduo não é uma coisa simplíssima. Pelo contrário, é coisa complexa (um rosto), formada de outras (muito mais do que três) coisas (causas). Sendo o indivíduo um complexo de causas, suas consequências (e seus efeitos, e seus rostos, e suas propriedades, e suas aparências) são também complexas.

Esta é a razão comum às três imagens que se seguem.





O famoso Triplo Retrato

  van Dick

Como um polvo, muitos tentáculos; um rei possui muitos rostos. 

Isso não impede que se corte sua cabeça com um só golpe.




Como podemos conhecer II

Como conhecer objetos que são sujeitos de sua objetivação?

Não podemos conhecer EVELINE só a partir do que ela diz de si mesma. É preciso conhecê-la também a partir do que ROBERT diz a respeito dela.

ROBERT: – É pela independência de seus juízos que eu podia melhor medir a diminuição do seu amor*.


(*) L’école des femmes 
[1929]. Suivi de Robert [1930] et de Geneviève [1936]. Collection Folio. Paris: Gallimard, 1984. P. 116 in fine.

Importantíssimo para nós

A palavra portuguesa COISA deriva do latim CAUSA.
E a palavra REAL, do latim REALIS cuja raiz é a mesma de RES (que se traduz por COISA).

Isso se explica por ou explica o que se disse com hiper-real.



Disposição-mãozinha:
A cada vez que se percebe uma coisa, percebe-se também uma causa.
A cada vez que se percebe o real, percebe-se também uma coisa.

Nuvens cinzas e céu aberto

Nuvens que pairam. A ideia que paira de que algum mal paira sobre a Terra. A ideia confusa de algum mal sobre a Terra, a sensação de que deixei de fazer alguma coisa ou de que alguma coisa sempre me falta.

A flutuação do ânimo, a moeda que gira mostrando as suas duas faces inseparáveis: a culpa e a angústia – (o sentimento de que sou a causa de algum mau) – (o sentimento de que deve haver algum sofrimento meu que, porém, eu não sei discernir) – (o sentimento misto de que sou eu mesmo a causa de algum mal que me atinge, que porém eu não sei qual é).

Será preciso, para clarear o céu, para ver sob o sol, sempre retornar à ideia de que nada falta, de que o universo em si está perfeito, de que não há, absolutamente falando, o mal (nem portanto o bem) na Terra.

O pequeno culpado e a pequena vítima

O culpado reconhece a si mesmo como a causa de um mal. O que importa, aqui, é a sensação precisa que ele tem de si mesmo. O mal não precisa ser determinado, um evento preciso, mas pode ser uma possibilidade difusa. A causalidade, portanto, também é difusa; o culpado não sabe como ele produziu aquele mal, que ele aliás desconhece. Basta ao culpado que ele se sinta acusado.

A vítima, por sua vez, reconhece em si mesma o efeito de um mal. O que importa, aqui, é a sensação precisa que ela tem de si mesma. O mal não precisa ser determinado, não é um evento objetivo, pode ser uma insinuação. A vítima não sabe como se produziu nela aquele mal; mal que ela aliás muitas vezes desconhece. Basta à vítima que ela se sinta digna de sofrimento.

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Um si mesmo determinado. A ideia difusa de um mal externo ou interno ao si. A ideia confusa de uma ligação causal entre o si e o mal. A sensação de dignidade ou de indignidade. O culpado ou a vítima.


Notas sobre o início da metamorfose VIII

Em que medida o termo grego morphé (a figura, a aparência, o aspecto externo) se opõe realmente à essência íntima (eidos) da coisa? Em que medida a morphé encobre a essência?

Em medida nenhuma. A morphé é a própria essência íntima da coisa enquanto dura, no jogo com as outras coisas naturais existentes.

A essência suporta a aparência – e vice-versa. Se a aparência muda radicalmente, a essência muda também.

A morphé é a extensão da essência na atualidade.

Extremidades ou linhas? Exclusão ou relação?

É impossível separar as duas faces de uma mesma moeda.



Como, talvez, seja impossível separar a vítima do culpado ou vice-versa.

Mais impossível seria separar o sentimento de ser vítima do sentimento de culpa.

Notas sobre o início da metamorfose VII

Meu gato – se o observo bem –, com certeza, é fruto de uma metamorfose. É um metamorfoseado-em-gato. Aliás, tudo é metamorfoseado-nisso-em-que-está.

Notas sobre o início da metamorfose VI

Ninguém compreendeu o que a Grande Barata falava lá de dentro. Seus melhores argumentos pareciam apenas ruídos incoerentes, em meio à sua baba abjeta. Comigo, também, como se de dentro de mim falasse um inseto asqueroso que ninguém pode sequer ouvir. Entrei, falei... ninguém compreendeu nada do que eu disse. Mas, comigo, ao menos, por simpatia e reconhecimento de humanidade, para evitar sobretudo deferir contra o meu corpo o golpe final do sapato, fingiram compreender.

Como podemos dizer que conhecemos

Um método de conhecimento (que não precisa ser desprezado) é conhecer por ouvir dizer.

Um tipo de conhecimento, intermediado, é verdade, mas manipulável em certas situações do uso da vida.

Notas sobre o início da metamorfose V

Qual seria o destino deste texto – tão predestinado – se K. não tivesse escrito nada mais além dele?

Notas sobre o início da metamorfose II

Numa realidade que, ao colapsar, se esfacela, curiosamente, alguns blocos de real mantêm sua consistência e perseveram, apesar de tudo, na existência.

– Um prédio de apartamentos implode. Um quarto, uma janela, uma parede conservam (percebe-se, ainda, entre a poeira, enquanto tudo desaba) a sua ordenação recíproca.

Liberdade em instituição

Quem ama a liberdade não se coloca numa prisão. Não há como desejar a liberdade, pedindo ao carcereiro que tranque a porta da cela e guarde a chave.

Mas a liberdade, ela está por fora do instituído?

Fora da língua, por exemplo, que liberdade se tem para falar?

A liberdade não está no instituído, não está fora dele. A liberdade então está na constituição contínua? Na ficção da ficção da ficção...?