Os instintos: a consciência


Acostumamo-nos, historicamente, a contrapor a consciência aos instintos, a interpretar a força da consciência como contraposta a dos instintos, a deixarmo-nos guiar pela voz da consciência antes do que pelas vozes dos instintos.

Numa dupla volta da consciência, na consciência da consciência, será preciso, talvez, interpretar a consciência como um instinto. Interpretá-la ao jeito de um impulso tão cego, tão perigoso e tão ameaçador para a nossa existência, quando dominante, quanto qualquer outro instinto.

Conforme o prudente, a voz da consciência: uma voz entre outras.

Para ceder um exemplo: “Como o sofrimento vai mais longe em psicologia do que a [própria] psicologia!”*.





(*) PROUST, Marcel. Albertine disparue. Col. Folio Classique. Paris: Gallimard, 2009 [1923]. P. 3. Ou, na tradução mais perfeita de Carlos Drummond de Andrade: “Como, em psicologia, o sofrimento vai mais longe do que a psicologia!”

– Ah! Entendi! – II

Algo parece ter sido explicado.
Mas podemos entender – e nos entender –, também, sem explicações.




Pigmalião ou: – por que os artistas amam suas obras?


Na sua resposta à questão do título, Aristóteles explica o amor à existência (o conatus de Spinoza) não como conservação, mas como desdobramento da potência.

Por que os artistas amam suas obras?

Ora, diz Aristóteles, os artistas amam suas obras porque:
• a existência é para todos os homens digna de ser escolhida e amada [todos amamos existir];
• nós existimos, diz Aristóteles, por razão da atividade (viver e agir) [existir é atividade; e a atividade é coextensiva com o existir];
• [logo: todos amamos a atividade];
• a obra (ergon) é um produto da atividade (energeia);
• [se amamos a atividade, amamos o que lhe é semelhante, e seus desdobramentos se lhe assemelham – assim, amamos o que a nossa atividade produz, amamos as nossas obras];
• logo, todos amamos as nossas obras (porque amamos a existência).

E Aristóteles complementa: “e isso tem raízes profundas na natureza das coisas, pois o que o artista é em potência, sua obra o manifesta em ato”.

Nisso tudo, Spinoza apenas corrigiria esta noção de potência em Aristóteles. A potência das coisas da natureza, em Spinoza, não se opõe ao ato, como em Aristóteles. A potência, em Spinoza, é sempre atual. Ela é o que ela é.


ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Col. Os Pensadores. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim a partir da versão inglesa de W. D. Ross. 4 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. IX, 7, 1168a5-a10. P. 167.


A forma do dinheiro

Em Aristóteles, 1164a, “A forma do dinheiro – à qual tudo é referido, pela qual tudo se mede”, leia-se por “tudo”: todas as coisas referenciáveis e todas as coisas mensuráveis – isto é, tudo isso que se pode perscrutar e fixar com o olhar; tudo isso que se coisifica (reifica) como objeto teórico.


Antifilosofia


Uma atitude de filosófo contra a filosofia: – agir e pensar, portanto, existir, no mesmo nível dos outros entes.



O filósofo vai ao cinema


Se é verdade que a filosofia contaminou ou colonizou a vida, ou seja, se é verdade que cada um de nós adquiriu um pouco dessa atitude desconfiada diante do que é (ou do que é dito ser ou do que parece ser) (e precisa ir ao cinema para poder, sem culpa, entregar-se ao sonho), então, só um outro modo de ser filósofo pode nos livrar dessa contaminação ou colonização.

Mas, temos necessariamente de nos deslocarmos da atitude filosófica para uma atitude natural, se desejamos existir no mesmo nível dos outros entes? A filosofia tem, realmente, que deixar tudo como está?


Argumentação cética a partir do engano


Uma vez, concedamos, já nos eganamos completamente. Então, como nós podemos saber, ao certo, que não estamos enganados também desta vez?


Tendências

Tudo são tendências (ladeiras, canaletas, resistências, escapes, indicadores magnéticos de caminhos, vetores de força agindo sobre outras tendências, sobre movimentações fortes, sobre deslocamentos energéticos ou sobre capacidades de trabalho). Essas tendências não são independentes umas das outras. Interagem. Acordam-se. Agrupam-se. Reforçam-se. Neutralizam-se. Decompõem-se.


Elucubração e guerra

– Você fala disso e daquilo, como se a guerra não estivesse acontecendo.

Mas a guerra está aí, e tudo o que eu falo é um pedaço de arma ou um estilhaço dessa guerra.

Ontologias como discurso sobre o real?


A língua e o que com ela se diz, o discurso, não são uma espécie de supra-realidade ou uma bolha imaterial no real material. O discurso não fala do real. Ele é real, na medida em que é efetivo, isto é, produz efeitos reais.


Filosofia como doença e como cura

O princípio de causalidade é um princípio ontológico ou epistemológico? A causa natural é algo real ou uma maneira de interpretarmos o real, ou de o conhecermos, ou de lidarmos com ele, no uso da vida?

Estas questões permanecerão sem uma resposta definitiva: alguém diz isto; um outro, aquilo. Elas pressupõem o ontológico e o epistemológico, o real e o intelectual, o natural e o humano, como dois âmbitos de existência distintos. Essa separação, porém, é um ato ideal da filosofia, um distúrbio da vida e do pensamento, que, porém, só pode ser revertida filosoficamente.

A filosofia é como o pharmacon, ao mesmo tempo veneno e antídoto.




– Ah! Entendi!


Segue-se a uma asserção: – Ah! Entendi!

O que isso, então, quer dizer? Que eu conheci a causa (eu, agora, sei a razão da coisa asserida) e estou aliviado? Que eu conheci o significado (eu, agora, sei o que a asserção quer dizer)?


Tudo é questão de método – VII

Quando o terreno (mesmo no pensamento) está difícil, vá devagar, sem se afligir pela demora. Ou passe rapidamente, sem olhar para nada, até chegar em outro lugar.



Incompreensível ou não confiável?

ELE me olha, com suas mãos calejadas, para mim, sentado à escrivaninha, luz acesa, um livro aberto, algumas folhas de anotações, algumas canetas como instrumentos – isso não pode ser trabalhar – que mundo, afinal, essa atividade produz?

Isso não é apenas incompreensão dele, mas uma desconfiança.


Conexões de segunda ordem

Posso falar das conexões que uma coisa constitui (só assim a conheço).
E posso falar das conexões que uma outra coisa constitui. Isso também me é autorizado. 




Mas não posso falar de qualquer conexão de conexões sem que seja considerado louco? Só posso falar das conexões de primeira ordem?

– Não se confunda: isso não quer dizer que não haja conexões de segunda ordem, apenas que você não pode falar delas.

Quem me confunde é você. Você quer me deixar com coisas na mão. Quer salvar as coisas, a qualquer custo. Veja, as coisas estão sempre em relações, conexões, estados de coisas. Perscrutá-las com o olhar, e querer fixá-las, apenas nos deixa diante de outras relações. E essas relações não são fortuitas, elas têm força, na verdade, são tendências.

Da relação para a coisa

Você quer retroceder da relação entre coisas para a coisa? Não adianta; na coisa isolada, você só encontrará a relação entre as suas partes.


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Quando falamos de uma coisa, na verdade, falamos da relação de uma coisa com outra.




E quando perscrutamos a relação, a fixamos como se fosse uma coisa (isto é, a colocamos em relação com outra).


E, assim, ao infinito.




A vida, na semana que vem


Poderíamos levar a vida de tal modo como faz o filósofo. Afinal, na sua espontaneidade, o filósofo livre, o filósofo que vem, deixa absolutamente de lado os velhos problemas. Ele não fica (como creem alguns) falando das mesmas questões de sempre, apenas de maneira distinta, colocando-as e resolvendo-as com novas palavras e ideias. O filosófo que vem tem diante de si um panorama livre, ele está numa paisagem que vem.

Por isso, queremos viver filosoficamente.




Complexo do professor

O complexo do professor seria esse: – ele se sentir, em todo lugar, como se estivesse em uma sala de aula.


O logos do antropós

Os antropólogos (ainda mais quando agem e pensam filosoficamente) parecem estar acima do humano. Pois parecem dispor do humano como se o humano fosse um objeto disposto diante deles, manipulável e, nessa manipulação, observável.

Mas os antropólogos não são deuses, nem suas ideias imortais. Suas próprias mãos (as que manipulam) deixam suas impressões na superfície dos seus objetos.