Diário de uma viagem VIII


O meu motivo consciente para essa visita a Moscou é a avaliação de minha adesão ou não ao Partido. Mas eu sinto que, no fundo, embora eu não as possa manifestar, as causas da minha viagem são outras e não são tão minhas.

Aquela frase, “A viagem rejuvenesce as coisas, e ela envelhece a relação a si mesmo”, não sai da minha cabeça nem do meu coração. O meu sentimento de estranhamento, comigo e com a cidade, alienante, não cede sem retomar terreno. Por vezes, volta, como a pontada de um recordista, na sua maior intensidade. Chega, pelo estreitamento que provoca, a fazer arder o peito.

As esquinas, os prédios e os comportamentos moscovitas são absolutamente novos; por outro lado, a minha dor mostra-se mais velha; é uma dor de princípio, o horror de uma imaginação infantil.

O anúncio da chegada de Asja, em menos de 48h, não é, não imediatamente, para mim, um alívio. Embora eu a queira muito ao meu lado, e deseje ardentemente a ocasião e o bem de um beijo, como aqueles que trocávamos em Berlim em toda intimidade e conforto emocional, a visita anunciada de Asja aumenta a minha ansiedade. Coloca-me um desafio que abala o meu precário equilíbrio, assim que eu o reconquisto. Será possível eu me sentir bem com ela? Será possível ela se sentir bem comigo, em Moscou? O que será que ela pensa, apesar de eu não cogitar lhe perguntar algo sobre isso, da minha eventual adesão ao Partido?

Rapidamente, é curioso, deixa-se o centro de Moscou, mesmo a pé. Depois de alguns poucos quilômetros, a cidade, quer dizer, seu centro, desaparece literalmente aos nossos pés. O programa prevê a construção de moradias e a complementação da urbanização. Por enquanto, parece apenas uma promessa a se realizar num futuro distante. É verdade, em Moscou, o que está mais presente é o futuro, que todos aqui estão fabricando.

História na natureza

Para Hegel, a natureza não tem história.
“As mudanças na natureza, apesar de serem infinitamente diversas, mostram apenas um círculo que sempre se repete; na natureza, nada de novo acontece sob o sol e, por isso, o jogo multiforme das suas configurações traz consigo o tédio”.*
Só o espírito e a sua história (e o Cristo tem parte nisso) nos salva do tédio, e rompe o circuito fechado da natureza.

Nesse sentido, pode-se dizer, Darwin é o Cristo da natureza. Ele a salva desvelando a sua historicidade constitutiva da qual nós fazemos parte.




(*) HEGEL, G. W. F. A razão na história: Introdução à filosofia da história universal. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995 [1822-1830]. P. 127.

Diário VII


Todos aqui falam do clima como se fossem climatólogos e o clima, verdadeiramente previsível.
– A tal hora vai nevar, por meia hora, não passa disso, pode contar. 
– Às 18h, a nevasca vai dar uma trégua, você vai ver. Depois volta. 
– Desse jeito, você pode ter certeza, a neve vai continuar a cair por três dias. 
– Em janeiro, pode escrever, neva o mês inteiro, até o meio de fevereiro.
Não consegui ainda verificar nenhuma dessas proposições, porque não são propriamente científicas (como as entendem os modernistas e os formalistas russos). 

Primeiro, porque, do jeito que são formuladas, comportam sempre, no mínimo, uma parte de verdade. 

Segundo, porque comportam também o estreito vínculo dos climatólogos com o que eles afirmam. Você querer verificá-las é sinal de que você desconfia deles e não apenas das suas proposições. 

Terceiro, porque pressupõem que você tenha compreendido bem o seu significado. O que quer dizer que, se você, por acaso, mostrar a falibilidade de alguma dessas proposições, estará mostrando, de fato, que você não a entendeu direito.


Diário VI

Descobri um sebo a poucas ruas do hotel em que estou hospedado nestes primeiros dias em Moscou (cidade em que não poderei permanecer por muito tempo, se não conseguir alugar um apartamento por um valor mais acessível) (um conhecido italiano prometeu-me encontrar um que fosse adequado para mim) (quando ele me disse isso, logo pensei: como ele poderia saber o que era, para mim, adequado ou não?).

E, no sebo, descobri vários livros em francês. Um deles, particularmente, me chamou a atenção. A capa e as páginas iniciais faltavam, haviam se descolado, ou sido arrancadas. Assim, não pude conhecer o título da obra nem seu autor. Mas, logo na introdução, uma frase sublinhada a lápis dizia o seguinte: “Le voyage rajeuni les choses, et il veillit le rapport à soi”*.


(*) [Cá, entre nós, eu posso dar uma tradução, “A viagem rejuvenesce as coisas, e ela envelhece a relação a si mesmo”, e a referência que Benjamin estava impossibilitado de citar: FOUCAULT, Michel. Histoire de la sexualité II: L’usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984. P. 19.]

Diário V


A língua russa é, materialmente, como uma muralha, uma espécie de gosma, expelida pelas bocas dos moscovitas, assim que se abrem, que vai se petrificando, e que se interpõe entre mim e eles, separando-nos da maneira mais radical. O russo me aprisiona.

Mas isso, para um estrangeiro, pode acontecer também frente a outras instituições comuns, como os costumes, as tradições, as castas, as classes, as raças ou, até mesmo, a arquitetura...


Diário IV


Almoço em uma cantina de trabalhadores, situada ao lado de um restaurante típico, surpreendentemente elegante, provavelmente frequentado por funcionários do partido.

Grandes mesas num salão suficientemente aquecido por um sistema que me pareceu eficaz, e que nunca tinha visto antes. Quando me aproximei das caldeiras, que dispunham de grandes pás circulantes que distribuíam o ar quente, mas umidificado, por todo o salão, pude perceber uma plaqueta metálica indicando sua fabricação e procedência alemãs (tratava-se, então, de uma oferta de solidariedade do sindicato berlinense? Como saber?).

Em um grande samovar, servia-se chá, mas tão açucarado que eu não consegui beber. Os moscovitas colocam açúcar em tudo, numa quantidade insuportável para um organismo berlinense. Abandonei meu copo quente de chá, o mais discretamente que pude, sobre uma mesa em que se empilhavam pratos e talheres sujos que voltariam para a cozinha.

Sentei-me numa mesa vazia, com meu prato de comida. Pouco depois, juntaram-se a mim, vários trabalhadores com pratos cheios ao máximo. Uma jarra de chá doce foi colocada entre eles. Um jovem, que não retirou de sobre sua cabeça o seu gorro de lã, fez sinal de que eu poderia me servir, se quisesse. Declinei, e agradeci.

Passei alguns momentos aliviado, entre os trabalhadores e seu frescor. Conversavam animadamente entre si. Embora eu nada compreendesse, podia perceber que compartilhavam muitas ideias, e que havia, entre eles, todo um mundo em comum, às quais e ao qual eu não tinha o menor acesso.


Diário de Moscou III


Ontem, planejei visitar o Ministério da Saúde. Não havia conseguido informações sobre os horários de abertura. Não pude falar com nenhum de meus poucos conhecidos de Moscou. Se tivesse consultado Asja, internada em uma instituição do Ministério, ela certamente teria sabido me informar a respeito. Mas eu não tive forças de ir até ela, por razões diversas. Sai o mais cedo que pude, também porque resolvi dirigir-me até o hospital a pé. O frio me concedeu uma trégua nesses últimos dias. Não é tão cortante como de costume (hoje, ele já voltou com sua intensidade habitual). Pensei que alguns passos pela cidade só podiam me fazer bem.

A caminho, apesar do comunismo, em vários momentos, tive a impressão de ouvir aqueles cantos coletivos e lentos que são típicos das igrejas. Não poderia dizer de onde vinham precisamente. Eram sons difusos, oscilantes, que se misturavam aos sons laicos da cidade de Moscou (na verdade, Moscou é uma cidade mais silenciosa que a maioria das cidades). Às vezes, porém, podia ouvir sua força coletiva quase distintamente, para que logo novamente se plasmassem, sem se perderem, com o fundo sonoro geral. Moscou pareceu-me uma cidade construída sobre um mar de religiosidade, cuja maré, oprimida, assim que puder, vai se elevar novamente à tona, para dominar a música da vida comunista.

No hospital, nada encontrei que já não esperasse. O hospital é o lugar mais sujo e desorganizado. As pessoas que lá estavam eram as mais pobres, tinham o pior aspecto, e o desleixo era geral. O chão estava praticamente coberto de papéis úmidos pisados [falta a imagem dos plásticos descartáveis]. Algumas senhoras, com um lenço amarrado sobre os cabelos, eram encarregadas de varrer o chão, com grandes rodos cobertos por um pano imundo. Alguns minutos depois que passavam, tudo estava como antes, as pessoas continuavam a jogar no chão toda espécie de coisas para as quais não tinham mais utilidade.

Não há qualquer separação entre o público e os consultórios dos médicos e as enfermarias. Os doentes e os visitantes vagueavam, com seus chinelos tradicionais, alguns enfeitados com curiosos bibelôs, pelos corredores, pelas salas de repouso, pelas grandes enfermarias, com seus formulários à mão à procura de alguma coisa ou de algum responsável. Entre os pacientes, eu talvez fosse o único a calçar botas.

Os atendentes têm péssimo humor, pior que o do moscovita comum.

[Para a descrição da consulta médica e das suas consequências, a referência a Benjamin é impraticável. Vivemos hoje uma realidade medical absolutamente distinta, em Moscou tanto quanto em Berlim.]

Memórias do cárcere

Memórias do cárcere? Sade, Gramsci, Negri, Artaud, Rivière... tantos escreveram em cárcere. Não me refiro às memórias do tempo vivido no cárcere (Levi, Solzhenitsyn), mas às memórias de um encarcerado, que o soltam, e deixam livre (e portanto salvo), apesar dos muros e das grades.

Diário II


Passei o dia de hoje com o terrível sentimento de que fui covarde, escolhendo vir aqui apenas porque era um caminho mais fácil do que a permanência em Berlim. Pois, agora, Moscou me parece pouco. As pessoas são rudes, descuidadas e, por isso, feias. Nada acontece. Embora eu saiba que, assim como eu a sinto, essa não seja a Moscou real.

Ou seja, o asco que me provoca o cheiro das ruas de Moscou transforma-se em ódio de mim mesmo. Odeio-me pelo que decidi e pelas consequências da minha decisão, que arrasta Asja para cá também. Em que medida isso comprometerá o nosso amor?

Só agora eu entendo o que A., meu amigo de Berlim, quis dizer, quando me perguntou se os moscovitas são feios. Sim, querido A., agora posso responder-te, as pessoas aqui são feias, entristece-me olhar para elas.

A fila no Ministério das Finanças consumiu algumas horas da minha tarde, apenas para saber se a remessa de dinheiro, que havia sido feita em meu nome, desde Berlim, já estava disponível. O tempo todo vinha-me à mente a imagem dos elegantes halls com colunas em mármore dos bancos de Berlim, com seus funcionários impecáveis em paletó e gravata (halls que, entretanto, eu achava opressores, esnobes e discrepantes com a realidade material dos próprios funcionários e dos clientes, quando eu estava por lá), causando-me uma estranha espécie de saudade de algo que, na verdade, eu não aprecio.

No saguão do Ministério de Finanças de Moscou, atrás e diante do balcão simples, feito com chapas de madeira, as roupas são sujas, mal-passadas, esgarçadas. Muitos vestem, por ali também, aqueles chinelos abertos que os moscovitas usam para ficar em casa.

O funcionário atende as pessoas, e discute suas demandas, na frente de todas as outras, sem qualquer preocupação com a sua privacidade.

Quando descobrem de onde eu venho, os moscovitas me dizem: – o único problema aqui é o frio, você precisa aprender a driblá-lo.

Diário



Hoje foi um dia completamente atípico. Nuvens e chuva. Foi o primeiro dia em que não transpirei como um queijo em processo de cura.

Todo diário que eu escreva remeterá (num estado dependência ou por imitação) ao diário de Walter Benjamin*. As descrições e os afetos de Benjamin em Moscou são um traço mnêmico indelével, que canaliza, para aquele que o leu uma vez, qualquer outra descrição diária de impressões que surjam da relação entre um cronista estrangeiro em viagem por um lugar humano, uma cidade.

A diferença entre a forma do diário de Benjamin e a do meu é a seguinte. A dele se dava no contexto de um intervalo de tempo e de um retorno iminente a Berlim. Na minha forma, o tempo de minha estadia em Moscou é indefinido (com sabor de um presente eterno – sempiternidade).


(*) BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Schwartz, 1984 [1927].

A invenção do tempo

Foi preciso, para suportar o peso do presente como algo eterno, o humano inventar o tempo. Não penso tanto, agora, no passado, mas no futuro, como possibilidade de um presente melhor, e no sentimento correlato da esperança.

O futuro pode não existir, metafisicamente falando, mas, para a existência humana, é, em certas situações, de grande utilidade.

Há uma certa concepção do futuro (futuro no mundo, como plasticidade do presente, presente que pode ser modelado pela ação humana, para melhorar a existência) que nos é útil.

Efeitos do afeto monstruoso

Às vezes, a falsa ideia de um futuro absolutamente livre do presente se torna um alívio para o afeto monstruoso existente, pois:

1) Sob o afeto monstruoso, o presente se carrega de futuro. Os muitos anos a vir se acumulam no presente (que precisa pensar cada momento futuro como se fosse exclusivamente do seu encargo).

2) O momento presente parece se estender para sempre, eliminando o futuro. Todas as emoções presentes, que constituem o afeto monstruoso, parecem se estender indefinidamente na direção do futuro. O presente tende a perceber-se como eterno.

Assim, se conseguimos imaginar a maleabilidade do presente (como passageiro), e dar ao tempo sua forma remediadora e promissora, pode renascer a esperança.

Imaginação e imprudência


Nossa potência de imaginar nos fornece milhares de motivos para nos alegrar e milhares para nos entristecer. Pressionada pela necessidade, a imaginação prefere naturalmente os primeiros.

Assim, ela tende a constituir o mundo imaginário como mais favorável do que ele talvez seja em realidade. Mas é justamente esse engano imaginado (apesar de um pouco imprudente) que incita o desejo a produzir o imaginário no real.

O humano prudente é, de fato, um humano de perspicácia (seu intelecto e seu olhar perfuram o presente, para distinguir, nele, outros modos de ser). O prudente não se difere do imprudente porque deixa de lado a imaginação, mas porque imagina coisas alegres quase reais (isto é, coisas cuja realidade pode se articular com as outras realidades atuantes no momento). 

Uma espécie de afetos


Um afeto muito antigo, profundo. Dominador e engolidor, quando presente. Um afeto em si mesmo sem história, que não progride nem muda – um afeto vital (conectado à mais negra bílis). Um afeto que volta, vez por outra, cru, nu, sem máscaras – não é possível interpretá-lo, porque ele nada significa. 

Ressurge, hoje, de um calabouço escondido, onde é mantido pelas potentes travas da existência, como um monstro medonho que, por sua malignidade, é trancado atrás de sete portões e sete chaves, produzidos com sete diferentes metais.

Todo afeto está ligado à imaginação. Este, à imaginação de coisas monstruosas. Assim, vai contra a própria imaginação, que, por princípio, se esforça por imaginar coisas que nos causam alegria.

“A mente, tanto quanto pode, esforça-se por imaginar coisas que aumentem ou favoreçam a potência de agir do corpo”. (Spinoza, Ethica III, prop. 12)

Um círculo sem circunferência nem centro

A ideia de que o mundo não tem nem origem nem fim geográficos, segue-se da seguinte constatação: – em qualquer lugar que você se encontre haverá sempre um outro mais central e um outro mais periférico.