Eurocéfalo II – devir formiga


Como se diz, porém: “tamanho não é documento”. Se pudéssemos escolher: – talvez escolhêssemos o regime cerebral das formigas, não o dos europeus.
É certo que pode haver uma atividade mental extraordinária em uma massa de matéria nervosa extremamente pequena: assim, são bem conhecidos os instintos, as capacidades mentais e as afeições, maravilhosamente diversificados, das formigas, ainda que os seus gânglios cerebrais não sejam maiores do que um quarto de cabeça de alfinete. Sob este ponto de vista, o cérebro de uma formiga é um dos mais espetaculares átomos de matéria do mundo, talvez mais espetacular do que o cérebro humano.*
Para sair do eurocentrismo: trata-se de pensar como formigas?





(*) DARWIN, Charles. The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex [1871]. In: From So Simple a Beginning: The Four Great Books of Charles Darwin. New York: Norton, 2006. P. 859.


cá-lá

Tem-se manifestado, entre nós, na política, – se exageramos um pouco – um recorte simples: que separa, com nitidez ilusória, o cá do lá. Como se o cá e o lá fossem dois campos evidentes e as duas únicas alternativas claras de opinião (e inação).

A polarização estruturada das opiniões (o dispositivo de alinhamento dos corpos e mentes individuais, de aglomeração automática e coerente, seja de um lado ou de outro de uma linha divisória hiper-real), que recorta o corpo político em dois campos simples, mostra-se como sinal de nossa estupidez crescente.

Isso funciona, em geral, segundo a lógica do partido (e, em nosso caso: do bipartidarismo).

Colapso ou zênite do presente



Na língua hebraica, não há o tempo do presente. Os nomes das ações (os verbos) se referem ou ao passado (ad Praeteritum) ou ao futuro (ad Futurum).
A razão disso parece ser que [os antigos hebreus] não reconheciam senão estas duas partes do tempo, e consideravam o tempo presente como um ponto, isto é, como termo do passado e início do futuro; digo: parece que comparavam o tempo com uma linha, cujos pontos, certamente, deviam considerar tal como a extremidade de uma parte e o princípio de uma outra.*
A minha impressão (sentimento, opinião e interpretação) é exatamente oposta a essa. Para mim, é como se houvesse apenas o tempo presente, não pontual, mas gordo e envolvente. Parece-me que todos os pontos da linha (do plano ou do volume) estão copresentes, simultaneamente atuantes uns sobre os outros, embora meu olhar esteja fixo sobre um trecho dela, um segmento da linha ou do plano ao qual minha atenção se cola; todo o restante permanecendo, mas fora de foco. É minha atenção que divide e fragmenta o tempo. Meu olhar, que estabelece o foco. Meu passo, a distância. Sem que minha vontade, nisso, como em todas as coisas, tenha uma função determinante, ou atue autonomamente.



(*) SPINOZA, Benedictus de. Abrégé de grammaire hébraïque. Trad. Joël Askénazi e Jocelyne Askénazi-Gerson. 3 ed. Paris: Vrin, 2006 [1677]. P. 131, in fine.


Eurocéfalo

A crença de que existe no homem uma relação estreita entre o tamanho do cérebro e o desenvolvimento das faculdades intelectuais é confirmada (is supported) pela comparação entre os crânios das raças selvagens e das civilizadas, dos povos antigos e modernos, e pela analogia do conjunto das séries vertebradas. O Dr. J. Barnard Davis (1869) provou, por meio de muitas medições cuidadosas, que a capacidade interna média do crânio, nos europeus, é de 92.3 polegadas cúbicas; nos americanos, 87.5; nos asiáticos, 87.1; e, nos australianos, somente 81.9 polegadas.*

Tese: – o tamanho do cérebro é diretamente proporcional ao nível de desenvolvimento das faculdades intelectuais (imitação, memória, atenção, imaginação, razão).

Prova: – os cérebros dos europeus são maiores do que os dos americanos; estes, do que os dos asiáticos, que, por sua vez, são maiores que os dos australianos.

Que isso constitua uma prova para a tese pressupõe uma premissa oculta: – as faculdades intelectuais dos europeus são superiores, nessa ordem, às dos ameríndios, às dos asiáticos e às dos australianos.

Pode permanecer oculta, porque essa premissa é, como um axioma, uma evidência de todos conhecida.

Ora, o que nos leva a aceitar tal premissa?

O fato do domínio europeu (colonialismo e imperialismo, no século XIX, e seus desdobramentos) sobre todas as outras culturas da terra, bárbaras ou civilizadas.

Afinal, o domínio econômico-político é resultante da superioridade da raça europeia. Somente as capacidades intelectuais maiores do que as das outras culturas humanas garantem a eficácia europeia na luta geral pela existência.
Uma comunidade que inclua um grande número de indivíduos bem-dotados cresce em número e é vitoriosa frente às outras comunidades menos bem-dotadas. (**)




(*) DARWIN, Charles. The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex [1871]. In: From So Simple a Beginning: The Four Great Books of Charles Darwin. New York: Norton, 2006. P. 859. Grifo meu.

(**) Ibid. P. 864

A posição da cabeça se tornou uma ameaça à evolução humana


Como a cabeça humana – onde, no momento, se localiza o cérebro, o órgão humano que se tornou o mais eficaz na luta pela existência – está posicionada na extremidade do corpo, distante do seu centro de gravidade, o cérebro não pode continuar a crescer e ganhar peso sem ameaçar, em breve, o equilíbrio do corpo humano ereto.

Assim, algumas variações genéticas seriam recomendáveis: – ou retornamos à posição do quadrúpede, ou deslocamos o cérebro para o centro do corpo, na direção da barriga.

Estruturas ou dispositivos de desejo


Diversas partes ou subsistemas estão em estrutura (isto é, intimamente relacionadas umas às outras numa rede de desejo) quando a modificação ou a variação de uma delas implica, simultaneamente, em modificações ou variações de adequação nas outras partes, com a consequente conservação da sua estrutura ou da sua relação.

Assim:
– o mito, para Dumézil, é uma estrutura;
– o indivíduo e os impérios, para Spinoza, são estruturas;
– vários sistemas anatômicos da espécie humana, para Darwin, são estruturas (lei da variação correlata).

Perceba você, portanto, que:
alguns (muitos, mas não todos) dos seus atos, pensamentos e sentimentos são estruturais: possuem sua razão, não propriamente em você mesmo, mas no dispositivo, ou seja, na relação estruturada que seu ser ou desejo mantém com o ser ou desejo de outras pessoas e coisas;
– se todos os seus atos etc. fossem estruturais, não haveria acontecimento, apenas eventos.

Unidade sintática da política: a preposição

A ação é uma relação de um humano a outro humano (não, por exemplo, de um humano a uma coisa).

Mas, ainda, a ação, enquanto tal, requer sentido*. E o sentido da ação é a relação humana explicitada (tornada consciente).

Explicitar uma relação é expressá-la.

Nessa passagem para o âmbito da linguagem, o sentido se expressa como significado.

Por isso, a significação (isto é, a maneira pela qual se indica o significado ou o sentido conscientizado de uma ação) deve mostrar a relação.

Na linguagem, o nome da relação (o relativum) é a preposição (praepositivum)**.

Assim, pelo menos no tocante à ação (à ética e à política), a semântica (o estudo da significação e dos sentidos) lida, antes de tudo, com preposições.

Lista de preposições no português: a, contra, até, para, por, de, desde, ante, trás, sob, sobre, com, sem, em, entre***.


(*) A partir de Weber, a ação social se define como um comportamento humano (um ato exterior ou íntimo, uma omissão, uma tolerância), ao qual o agente ou os agentes atribuem um sentido que se orienta pelo comportamento dos outros. Conferir: WEBER, Max. Économie et société. T. 1. Les catégories de la sociologie. Trad. diversos. Paris: Plon, 1995 [1920]. Cap. 1, §1. P. 28.

Nota: Esse humanismo da teoria da ação como ação humana me incomoda. Mas vale momentaneamente. Pessoalmente, eu preferiria uma teoria da ação mais geral: – a ação (como também a paixão) é uma relação.

(**) SPINOZA, Benedictus de. Abrégé de grammaire hébraïque. Trad. Joël Askénazi e Jocelyne Askénazi-Gerson. 3 ed. Paris: Vrin, 2006 [1677]. P. 66-67.

(***) BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. P. 300. Veja-se também a lista completa (incluindo as locuções prepositivas) na p. 305.

Um tino para a comunidade



O fato de que “algo” faça mal a A indica, por si só, alguma comunidade entre este “algo” e A.
Spinoza: – “[...] coisa nenhuma pode ser, para nós, boa ou má, se não tiver algo [em] comum conosco [...]”*.
Portanto, pode-se excogitar, o fato de que “algo” faça mal tanto a A como a B indica alguma comunidade entre A e B.
Darwin: – “O Homem (Man) é capaz de receber dos animais inferiores, e de comunicar-lhes, certas doenças como a hidrofobia, a varíola etc. Com muito mais evidência do que a comparação sob o melhor dos microscópios ou com a ajuda da melhor análise química, este fato prova a forte semelhança entre os seus tecidos e sangue, tanto no detalhe da sua estrutura como na sua composição”.**
Mas, finalmente, esses fatos podem indicar nada mais do que um traço de caráter comum não às coisas, mas aos que falam delas: – o tino filosófico ou a mania de perceber ou de inventar, constantemente, comunidades entre as mais diversas coisas.
Proust: – “um certo filósofo que só se satisfaz quando descobre, entre duas obras, entre duas sensações, uma parte comum”.***

(*) SPINOZA, Benedictus de. Ethica [1675]. In: Opera Posthuma, 1677. e4p29.
(**) DARWIN, Charles. The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex [1871]. In: From So Simple a Beginning: The Four Great Books of Charles Darwin. New York: Norton, 2006. P. 784.
(***) PROUST, Marcel. La Prisionnière. Col. Folio Classique. Paris: Gallimard, 2011 [1923]. P. 6.


O primeiro

Aquela ideia filosófica por excelência de que tudo é um (água, ar, fogo ou Deus) toma, com a biologia, já prenhe da noção de história, a variante: tudo vem de um:
...provavelmente, [ou seja, não é um absurdo afirmar que] todos os seres orgânicos que uma vez viveram nesta terra descendem de alguma única forma primordial, na qual a vida foi insuflada pela primeira vez.* 


(*) DARWIN, Charles. On the Origin of Species by Means of Natural Selection [1859]. In: From So Simple a Beginning: The Four Great Books of Charles Darwin. New York: Norton, 2006. P. 756.

Os crentes infiéis


A voz do teólogo:
– Se há algo que não merece o pensamento, isto é o evidente. O que merece ser pensado é o “mistério” (o oculto, que está por trás ou acima do evidente).

Curiosamente, entretanto, para nós, os verdadeiros crentes, apesar de infiéis, sequer o evidente se põe acima da problematização. Muito pelo contrário, o mais problemático é, de fato, o evidente.

Aliás, nada é mais evidente que a realidade. Mesmo assim e por isso mesmo, é sempre ela o objeto e o ambiente do nosso pensamento, até na imaginação.

A realidade, mesmo se ela é necessária, não é completamente previsível.*


* PROUST, Marcel. La Prisionnière. Col. Folio Classique. Paris: Gallimard, 2011 [1923]. P. 4.

Realidade X vontade


Frequentemente, para provar a independência da realidade (o seu estado per se ou em si) se lhe opõe a vontade. Porém, o fato de a realidade resistir e até mesmo opor-se à vontade não testemunha contra a realidade da vontade nem contra a voluntariedade da realidade.

O desejo de mais e mais




Há uma remissão do desejo de mais e mais para aquela concepção hierárquica do cosmos, na qual, cada patamar é como um degrau mais extenso (toda estância presente é um patamar, jamais o lugar de um repouso absoluto).

Rei real

“A realidade é rei”, embora o rei diga o inverso: (que o real não é substância, mas atributo) – a realidade é um atributo do rei.

Consequentemente, segundo os monarquistas-realistas, para algo se tornar real, tem que ser atribuído ao rei.

Entre uma realidade e outra

Um abismo enorme nos separa de toda outra realidade além dessa que nos rege. Esse abismo, porém, não é intransponível.

O encanto do liberalismo II


O liberalismo pensa: “cada um conta por um e não mais do que um”. Ou, ainda: cada um é um “cidadão livre e igual”. 

Entretanto, a equivalência entre cada um produz a indiferença entre todos. O tecido social se torna homogêneo e pulverizado. A vida social “retorna ao pó” de que é composta (às partículas individuais das quais, pensa o liberal, o social é essencialmente feito).

Desse modo, a terrível serpente que vive por dentro da máscara liberal é o individualismo (a ideia de que cada um, individualmente, é uma substância, que pode ser concebida per se e portanto deve ser autônoma – o que significa que, economicamente, deve viver de seus próprios recursos e, ético-politicamente, deve dar a si mesma as suas próprias regras).

E a consequência do individualismo é a solidão.

E a consequência da solidão, no humano, é o sentimento de insegurança, o desamparo e o medo.

E a consequência da insegurança é, finalmente, a força amparadora (pastoral) do Estado – isso que acaba por negar, ao menos parcialmente, a essência do liberalismo.

Assim, a consequência última do individualismo é a sociedade composta por uma multidão de indivíduos e pelo Estado – frias instituições do Estado (escolas, hospitais, centros de assistência social, prisões, exércitos...) e indivíduos independentes uns dos outros como únicos elementos sociais.

Mas, a nossa valsa catastrófica não termina por aí.

Contra o liberalismo e o Estado que dele advém e, ao mesmo tempo, o nega, outras serpentes nos injetam seu veneno mortífero: a força não liberal, a força de um conjunto vivo sem indivíduos que possam viver por si mesmos, ou seja, solitariamente.

Começando pelo fim: ...imaginadas, não interpretadas


De repente, não tenho mais o que esperar. Não espero mais nada do mundo. Ele já me deu todas as respostas e todos os bens, todas as dúvidas e todos os males, que ele dispunha absolutamente em si.

Agora, posso estar aqui, ou não estar.

O mundo e a fortuna (meus destinos) se abrem diante de mim como um espaço absolutamente anômalo, indistinto, indeterminado, homogêneo e fortuito.

Todo bem e todo mal, toda resposta e toda dúvida, todas as diferenças e distinções precisam ser, doravante, imaginadas.

O encanto do liberalismo

Provo do fruto do liberalismo. Não haveria, por trás desse desfrute, a artimanha de uma serpente?