O esquecimento e as pequenas injustiças

No uso da vida, um sem número de pequenas injustiças, que todavia não chegam a ser crimes, embora comprovadas por testemunhos imparciais, não são levadas diante de nenhum tribunal. E os injustos continuam suas vidas, sem se reconhecer como tais.

Para não fazer do injusto um dominus, um senhor de direitos proprietários, as pequenas injustiças devem ser esquecidas. Elas não têm qualquer relevância.

Mas como distinguir as pequenas das grandes injustiças, a não ser pelo não-esquecimento? A grande injustiça é aquela que não se esquece.

Onipotência

Euclides, no traçado de um espaço geométrico determinado, deu esta definição genética do triângulo: – Um triângulo é uma figura retilínea cujas extremidades são três linhas retas*.

Ora, dessa definição segue-se, necessariamente, que a soma dos ângulos internos do triângulo é igual a dois retos.

Assim, da própria natureza do triângulo, do seu modo próprio de construção, chega-se à formula da soma dos seus ângulos.

Até aí, tudo bem, nenhum mistério.

Spinoza dá, para além desse, um outro passo. Que não deveria ser misterioso**.

Primeiro dá um arranjo específico da relação entre propriedades e essência, como se segue.
Ele toma o modo próprio de construção de qualquer coisa, isto é, a definição genética de algo, como causa. Assim, a fórmula {F} da soma dos ângulos do triângulo decorre como efeito necessário da sua definição genética.

A propriedade de uma essência (no caso, o fato de que a soma dos ângulos do triângulo seja igual a 180º, o fato de {F}) é tomada como um efeito.

Da essência de algo, como causa, seguem-se as suas propriedades, como efeito.

Num segundo momento, Spinoza pensa a necessidade desse efeito.
As propriedades estão inexoravelmente relacionadas às essências. De tal forma, que seria mesmo absurdo pensar que Deus, na sua onipotência, pudesse construir um triângulo cuja soma dos ângulos internos fosse diferente de 180º.

Quando Deus onipotente põe as causas, seria absurdo pensar que delas não se segue um certo efeito.

Deus não pode produzir um efeito sem causa. Nem pode negar um certo efeito, dadas as suas causas. Isso seria negar-se a si mesmo como causa de todas as coisas.
Deus é a própria necessidade da relação entre a essência e suas propriedades, entre causa e efeito. Suprimida essa necessidade, suprime-se Deus.

A fórmula que vale é então esta: “se Deus não existe, então tudo é permitido”. E não esta: “Deus é onipotência, então tudo lhe é permitido”, inclusive produzir um triângulo cujos ângulos somam 175º.

(*) EUCLIDES. The Thirteen Books of Euclid’s Elements [300 B.C.]. Trad. Sir Thimas L. Heath. In: HUTCHINS, Robert Maynard (Orgs.). II. Euclid, Archimedes, Apollonius of Perga, Nicomachus. The Great Books of the Western World. Chicago: Encyclopædia Britannica, 1971 [1952]. Pp. 1-396.

(**) Cf. sua Ethica, E1p17s.

O título e o texto que se lhe segue

O título e o texto que se segue estão, na maioria das vezes, inteligentemente conectados. Então, a composição do título é um chamariz, uma peça de marketing ou um enigma. Se é uma peça de marketing então jogue fora a peça.

O título cativa olhos, gostos, ouvidos. É uma entrada que chama o principal, no menu. Como uma dominante, que se resolve na tônica do texto. Muitas vezes, leio um livro inteiro, o tempo todo, buscando uma explicação para o título. Outras vezes, a conexão é evidente. Ou o título já diz tudo; e o texto é mais um comentário do título (e não há nenhum mal nisso).

Na livraria, não há um só livro sem título. Ou uma revista, na banca. Todo artigo de jornal tem seu título. Mas não quero escrever uma crônica. Queria apenas chamar a sua atenção para essa relação do título com o texto. E como é terrível, um atentado, um terrorismo, quando, incrivelmente, eles mudam o título do filme, na versão portuguesa.

A alma da cidade

Os muros cruzam a cidade, de modo tão labirintíco, que já não se sabe mais de que lado se está, na disciplina ou na devassidão, na civilização ou na barbárie.

Alma de artista

Thomas Mann (em A morte em Veneza) define, assim, a base do espírito (ingenium?) do artista: "uma íntima e instintiva fusão de disciplina e devassidão"*.

Mas também há artistas de pura disciplina, outros de pura devassidão. E, num desvio romântico, diríamos mesmo que há ou artistas disciplinadamente devassos ou devassamente disciplinados.

Todas essas possibilidades são, de todo modo, gradações daquela mistura.



MANN, Thomas. A morte em Veneza. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Delta, 1965. P. 111.

Encontros na escrita

Quando, no caminho da linha, temos um encontro desagradável, mesmo se logo o deixamos para trás, apressamos o passo, como para que, o mais rapidamente possível, esse mau encontro se afaste de nós.

Essa brusca mudança de velocidade nos leva a outros encontros incontornáveis, que, por má fortuna, podem ser tão ruins ou ainda piores que o primeiro, fazendo-nos acelerar o passo ainda mais.

A crise do fim do mundo

Uma das mais imediatas e drásticas retrações da atual crise do capitalismo foi a do preço do petróleo.

Para os amadores da teoria da conspiração, isso dá o que pensar.
Que impacto isso tem nos EUA? No Irã? Na Venezuela?

O autóctone ou aquele que reside em si mesmo

Como ser marítimo, que ele acreditava ser, ele só se banhava nas águas salgadas do mar. Desse modo, o sal incrustava-se em sua pele, curtindo-a profundamente.

Devido a sua aspereza, dureza e insensibilidade, ele concebia sua pele como uma armadura protetora. Certamente, ele imaginava não poder retirá-la sem correr os maiores riscos. Porém, mesmo assim e por isso mesmo, ele a considerava como algo de exterior a ele. Com efeito, o autóctone concebia-se como um ser sem pele, separado do resto do mundo por sua armadura de couro salgado.

O cogito como dique

Pensamos o sujeito como um divisor de águas entre a interioridade do pensamento e a exterioridade da corporeidade, e tudo está perdido: pensamento e corporeidade tornam-se separados por um tal abismo que ele só poderá ser preenchido pela providência de um Deus transcendente ou, ao contrário, pelo nada.

Entretanto, basta retirar esse dique – o sujeito enquanto algo que pensa –, esse dique que represa a água do pensamento, para que o pensamento inunde o vale, e a terra, no encontro, o absorva, em sua fertilidade.

Sem o sujeito pensante – como fundamento do conhecimento e, assim, da própria natureza, enquanto algo que se conhece –, pensamento e corporeidade confluem, sem se tornarem o mesmo, mas como aspectos distintos e até mesmo incomensuráveis do mesmo. Enquanto a natureza, por sua vez, sendo também de terra e corpórea, já não exclui o próprio pensamento que a pensa.

Por tudo isso, é possível que o elemento dique do sujeito, afirmado ou negado, só possa ter sido pensado nos Países-Baixos.


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Para o cogito como dique, Descartes: “Tendo observado em mim, com muita clareza, que a natureza inteligente é diversa da corporal, e considerando que toda composição é uma prova de dependência, sendo esta manifestamente um defeito, julguei que Deus não poderia ser perfeito se fosse composto dessas duas naturezas e, por conseguinte, não o era, e que, se no mundo havia corpos, inteligências ou outras naturezas que não eram inteiramente perfeitas, a sua existência devia depender do poder de Deus, de maneira que não pudessem subsistir um só momento sem ele”*.

Para retirar o dique, Spinoza: “Por exemplo, concebemos que a água, enquanto água, se divida, e que suas partes se separem uma das outras, mas não enquanto substância corpórea, pois, enquanto tal, ela não se separa nem se divide. Além disso, a água, enquanto água, é gerada e se corrompe, mas enquanto substância não é gerada nem se corrompe”**.

(*) DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2000 [1630]. Discurso, IV, p. 43.

(**) SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007 [1675]. E1p15s, p. 37.

Parciais III - ao vento

Que diferença entre a [natureza das coisas] e as [coisas da natureza]?

Nenhuma, se a natureza é o plano absoluto e comum das coisas, que lhes permite se limitar umas pelas outras.

Novamente aqui, fora e dentro determinam-se mutuamente. A exterioridade (coisas da natureza) é efeito e causa, fruto e semente, da interioridade (natureza das coisas).

Por um lado, do mais íntimo da coisa, da sua natureza própria como causa, está, como efeito, sua comunidade com outras coisas da natureza.

Por outro, sua pertença irredutível ao plano das coisas da natureza, como sua causa, está sua natureza própria como efeito.

Natura rerum et res naturæ, uma se entende pela outra.

Mas se o íntimo é a essência da coisa e o fora, seu plano de existência, não se afirma – como fazem os existencialistas, em relação a uma certa coisa, o ser humano – a anterioridade da existência frente a essência, nem o inverso – como fazem os essencialistas –, a anterioridade da essência frente a existência.

A essência e a existência das coisas são imanentes uma à outra, pelo menos, em quanto consideramos as coisas em si mesmas, em sua própria natureza.

Agora, podemos considerar as coisas enquanto em si mesmas? Aqui, talvez, haja apenas uma decisão a ser feita.