Linda coincidência

Quando se está só, como nos comprazemos em ouvir de repente alguém nos chamar pelo nome (mesmo que isso ocorra somente desde uma página de livro: 
 
– Léon ! Toi enfin ! dit-elle en se retournant. Que tu es beau, ce soir, mon Léon ! – et je la vis crisper les poings, et trépigner. – Voilà le gars qu’il me faut, messieurs les Intellectuels !...)
KLOSSOWSKI, Pierre. Les lois de l‘hospitalité. Paris: Gallimard, 1965. P. 227.

Estar só, estar solitário

Quando se está só, pensa-se. 

Pensar, aqui, é manter um diálogo consigo mesmo, com o outro-eu. Quando já não podemos amar esse outro-eu, com quem no pensamento dialogamos, então se está solitário e já não se pensa mais.
 
Na solidão não há amor de si e também não há pensamento.

Solidão é antes de tudo o descuidado consigo mesmo e se vincula ao embotamento do pensamento. Por isso, não estar solitário é uma condição da amizade.

Ética como exercício refletido do corpo

Seria possível um ascetismo sem qualquer disciplina do corpo? A indisciplina radical do corpo – la débauche – não é ela mesma um ascetismo?

Uma vida humana

Imagine uma vida como essa: um corpo ao qual são providas todas as suas carências e não apenas isso, um corpo que não precisa se esforçar, nem mesmo caminhar, para obter os prazeres e para se afastar dos males, pois uma perfeita providência ou império se ocupa disso para ele. Um corpo de gozo dosado, sem desmedidas, integral, sem desequilíbrio, e constante, sem grandes variações de intensidade. Um corpo feliz. Um corpo bebê.

Seria essa uma vida humana? Leiamos Spinoza:

Quando então dissemos tal império ótimo ser, onde humanos em concórdia [a] vida passam, [uma] vida humana inteligo não aquela [que se define] somente pela circulação do sangue e outras coisas que a todos os animais são comuns, mas aquela que se define principalmente pela razão e pela verdadeira virtude e vida da alma.

SPINOZA, Benedictus de. Tractatus Politicus [1677]. In: Opera Posthuma. –: –, 1677. Cap. II, §5. P. 290.

A ênfase ao texto foi dada por Laurent Bove (Espinosa e a psicologia Social: Ensaios de ontologia política e antropogenêse). Belo Horizonte: Autêntica, 2010. P. 103.

Para pensar a coisa

A coisa; imaginá-la, entendê-la, ou inteligi-la.

O pensamento-imaginação envolve apenas algo da coisa pensada como sua causa, mas não só a coisa toda adequadamente, pois esse tipo de pensamento é uma ideia que corresponde à afecção da coisa no nosso corpo, precisamente à imagem da coisa no corpo, e portanto envolve muito do corpo próprio. Exatamente como a fotografia envolve algo do objeto, mas muito do próprio suporte fotográfico.

O pensamento-entendimento tem uma ideia adequada da coisa, mas geral. Quer dizer, não alcança a coisa na sua singularidade, pois pensa a coisa existente a partir daquilo que ela tem de comum com nosso corpo. Assim, quanto mais complexo for nosso corpo, tanto mais traços comuns ele pode ter com as coisas, e tanto mais ele as pode entender.

O pensamento-intelecto, finalmente, intelige. Ele não requer a imagem nem o comum da coisa no nosso corpo. Ele pode alcançar a ideia singular adequada da coisa na sua essência singular só com o seu próprio exercício, sem nenhum suporte ou ponto de partida outro do que a sua própria efetividade ou existência. Sem envolver a imagem ou o comum da coisa no corpo próprio, esse tipo de pensamento é impessoal, eterno e pode ser dito divino.

Meta-homonímia

Entre mangas, manga (a peça de camisa que envolve o braço) e manga (a fruta), uma homonímia.
Entre fé (amor e obediência a Deus) e fé (confiança no amigo), uma homonímia.
Entre a homonímia das mangas e a homonímia das fés, uma homonímia de homonímias.

Conexo

Pequenas lampejos do antigo império hebreu [faíscam] no contato afetuoso com o império suíço – aquela mesma espécie de felicidade enclausurada.

O pensamento por contrastes

“Polemos de tudo é pai e rei”, até do pensamento – diz essa voz que ressoa através dos séculos. Pensar por contraste, ao negar um que é posto. O positivo e o negativo se desdobram de sua relação conflituosa, que é primeira logicamente.

Contudo, ao pensarmos por negação, ficamos ligados ao pensamento que negamos, se é a partir do posto que o antiposto se mostra dialeticamente.

Não é muito diferente de negar pensar por comparação. A comparação permite a intelecção do um pelo jogo de mini-identidades e minidiferenças.

Porém, nisso também, ficamos tributários, por exemplo, do Brasil, ao pensarmos a Suíça, ou de João, ao pensarmos Jorge, por comparação. Não inteligimos Jorge por si mesmo, mas através de João.

Será possível um pensamento que tenha a si mesmo como fundamento e não o seu contrário? Um pensamento absolutamente afirmativo? Uma absoluta metafísica?

Mesmo o pensado descrevente de um objeto tem o objeto (que aparentemente é um outro em relação ao pensamento) como ponto de embate. Jorge-pensado tem o objeto-Jorge como sua negação-afirmação. O pensamento deve aí seu critério a seu objeto.

O pensamento absolutamente afirmativo – o pensamento sem amarras – a mais pura metafísica – deve então encontrar em si mesmo seu fundamento – deve subverter toda a crítica dessa possibilidade de autofundamentação.

Jorge e Suíça não podem ser o critério de Jorge-Suíça-pensados, mas devem ter no pensamento (e na imaginação como parte desse pensamento) o critério do seu modo de ser.

O interessante é que o pensamento-imaginação também envolve algo do objeto, imaginado como sua causa...

Conta-gotas

A informaçãoBlog é um pensamento de conta-gotas. Além do aspecto fragmentado, pingam gotas de líquidos essencialmente diferentes, sequer formam uma mistura homogênea.

Parisienses III

In gestu nonnulli putant idem vitium inesse, quum aliud voce, aliud nutu vel manu demonstratur*.
Alguns opinam estar no gesto o vício mesmo, quando uma coisa é mostrada pela voz e outra por movimento de cabeça ou pela mão.
Nessa frase de Quintiliano, percebe-se a fratura do sujeito, os contrários no sujeito que se mostram um no gesto outro na voz.

Mas essa fratura (dizer uma coisa ao mesmo tempo que se a nega pelo gesto) não é uma hipocrisia. Quintiliano a atribui a um vício do gesto (diante da virtude da voz).

Deleuze a comenta assim: Obra de Klossowski: um paralelismo do corpo e da linguagem, ou melhor, uma reflexão do corpo na linguagem e da linguagem no corpo.O (raisonnement) raciocínio (para Klossowski de essência teológica) é operação da linguagem, mas a pantomima (essencialmente perversa) é operação do corpo.

(*) Quintiliano, Instituição oratória, I, v, 10. Apud: KLOSSOWSKI, Pierre. Les lois de l‘hospitalié. Paris: Gallimard, 1965. P. 14.

Parisienses II


Toda imagem se forma entre o branco e o preto; ela é essencialmente analógica.

Link

Parisienses I

Nas nossas errâncias (no exercício dos nossos erros) sabemos que mesmo na resistência contribuímos com os “safados” :

“[...] moi je vis et je crève pour la beauté et donc pour la cause des salopards”*
“[...] eu vivo e morro pela beleza, e portanto pela causa dos safados”

(*) KLOSSOWSKI, Pierre. Les lois de l‘hospitalité. Paris: Gallimard, 1965. P. 46.

As vantagens da corte

A tirania funciona por divisões. Dividir para imperar. Dividir e dividir até chegar ao átomo.

A atomização tirânica, porém, afeta primeiro e mais eficazmente aqueles que se encontram mais próximos ao tirano. Quanto mais amigo do tirano se é, mais isolado se fica dos outros amigos do tirano. Por isso, muitas vezes, a vida é melhor entre a plebe do que na corte.

Viver a mera vida

Três carpas grandes viviam na água suja de uma pequena bacia. Devido à falta de espaço, aos esbarrões inevitáveis e ao seu movimento sinuoso, frequentemente acontecia uma ou outra delas ter a cabeça fora d’água por um curto momento, num intervalo de asfixia, antes de poder mergulhar novamente.

Ao lado, havia uma bacia muito maior, uma grande piscina de águas claras e vazia. Mas talvez a água estivesse clorada, e eu não sabia se as carpas iriam suportar o cloro. Mesmo sem saber, decidi-me por jogá-las lá, com esse pensamento em mente – pensamento que já vai se tornando um chavão – : melhor morrer do que simplesmente viver a mera vida, uma vida que não merece ser vivida.

Contudo era eu decidindo pelos peixes.

Convite à temeridade

A divisa kantiana para os indivíduos do seu tempo:

Ouse fazer uso de sua inteligência!

Atualmente esta divisa assumiria um viés negativo:

Ouse não fazer uso da inteligência do outro! (por exemplo: ouse não usar da informática!)

Problemas filosóficos

Diz-se (contra a filosofia) que a filosofia inventa seus próprios problemas.

Esse parece ser um grande argumento para acalmar a efervescência do pensamento. Mas, pense e veja, os problemas, quem e em que lugar não se os inventa?

O acidente x está para a racionalidade x, assim como...

Tales caiu no buraco. Foucault foi atropelado (em umas destas ruas). Eu perdi meu casaco de frio (só isso).

Por uma ética da leitura: em uma frase apenas

Em alguma das folhas das Palmeiras selvagens, Faulkner rabiscou: – o dinheiro só fala uma língua. Era isso, em uma frase, o que quisemos dizer quando falamos de dinheiro.

Definição de uma vida

Uma vida é o nome da duração de uma existência, da existência de um corpo que, enquanto dura, deseja (e não pode desejar o contrário) afirmar essa existência, ou seja, deseja a si mesmo na relação com outros corpos.

Não precisamos apelar, nesta definição de uma vida, para categorias biológicas. Então uma vida já não é um critério de recorte entre os seres (vivos e não-vivos). Todo corpo (ou alma) vive enquanto dura. Todo o ser vive.

Um corpo, sendo ao mesmo tempo uma alma, pode não ser o objeto da biologia.

Faço um convite para que retiremos nossas lentes biológicas, ao fazermos a leitura dos dois textos seguintes.

O de Dickens (Our mutual friend, cap. III)...
Ninguém tem a mínima consideração pelo homem [trata-se de Riderhood]: com todos eles, ele tem sido objeto de repúdio, suspeita e aversão; mas a fagulha da vida dentro dele é curiosamente separável dele mesmo, e eles têm profundo interesse nisso, provavelmente porque aquilo é vida, e eles estão vivos e devem morrer.

Veja! Um sinal de vida! Um indubitável sinal de vida! A fagulha pode queimar-se e exaurir-se, ou ela pode inflamar-se e expandir-se, mas veja! Os quatro rudes comparsas, vendo-a, derramam lágrimas. Nem Riderhood neste mundo nem Riderhood no outro poderiam arrancar lágrimas deles; mas uma alma humana combatente, entre os dois, pode fazer isso facilmente.

... e este de Faulkner (Palmeiras selvagens, p. 155):
[...] falando com ninguém tanto quanto o grito de um coelho moribundo não se dirige a nenhum ouvido mortal, mas é sim uma acusação a toda a vida, e à sua loucura e sofrimento, à sua infinita capacidade de loucura e dor, que parece ser sua única imortalidade [...]

A biologia aqui não nos faz falta.

Luta por reconhecimento

Pierre Hassner considera a luta por reconhecimento uma das formas de expressão da revolta árabe.

Entretanto, gostaria de considerar que a luta por reconhecimento envolve também uma rendição, um render-se.

Na luta por reconhecimento é preciso distinguir dois movimentos: um pela identidade e um por direitos iguais.

Quem luta por reconhecimento diz duas coisas: _Quero ser reconhecido. _Quero ter direitos.

Estas duas vontades se articulam assim: _Eu sou ISTO e enquanto tal quero ter direitos.

ISTO é uma variável, cujo lugar é ocupado por diferentes gêneros ou identidades: mulher, negro, homossexual, nordestino, proletário, estrangeiro, judeu, árabe, protestante, doente mental...

_Eu sou ISTO e, enquanto sou assim, quero ser cidadão (ter meu direito reconhecido por outros cidadãos).

Cidadão-isto, cidadão-aquilo, cidadão-mulher, cidadão-negro etc.

As diversas lutas por reconhecimento vão tornando mais geral a categoria do cidadão, que vai se tornando pouco a pouco mais abrangente, até idealmente abrangir a todos os indivíduos de um grupo (até mesmo eventualmente os não-humanos).

A cidadania vai passando por cima das diferenças.

Cidadão = homem = mulher = branco = negro = etc.

E, assim, o poder soberano, o poder que se exerce entre os seres enquanto são cidadãos e não-cidadãos, neutraliza os recortes dicotômicos sim-não feitos por outros tipos de poder.

O poder soberano parece, a partir disso que se disse, ter uma dificuldade para fazer por si mesmo o recorte entre o cidadão e o não-cidadão. Portanto, para fazê-lo, apela para outros regimes, por exemplo, os disciplinares, os biopolíticos, os teológicos, que funcionam por normas, através das normas, e não por ou através dos direitos.

O recorte (e a exclusão) do não-cidadão parece constituir a essência mesma do poder soberano. Mas, se esse recorte provém mesmo de outros regimes de poder, então o poder soberano parece ser indissociável deles. No seio do poder soberano, na sua essência, parece vigorar um outro tipo de poder, não um regime de poder específico, como o biopolítico, mas um regime qualquer que seja capaz de dizer a norma da exclusão.

O cidadão incluído é definido pela exclusão do não-cidadão. Dessa forma, o não-cidadão permanece incluído no poder soberano. Pois, o recorte é constitutivo do poder soberano.
O recorte, diz-se, procede de uma decisão arbitrária do soberano. De tal modo que a decisão, o poder de decisão é o que caracteriza o soberano.

Esta decisão não é, porém, o índice do livre-arbítrio do soberano se ela se vincula às normas estabelecidas por outros regimes sim-não: os disciplinares que separam disciplinados de não-disciplinados, os biopolíticos que separam os puros dos impuros, os ecopolíticos que separam uma classe econômica de outras ou os teológicos que separam os fiéis dos infiéis.

O poder soberano é atravessado por esses regimes de exclusão para estabelecer sua própria exclusividade, ao transformar as normas desses regimes em leis e direitos.

A identidade, a variável do “eu sou ISTO”, isto-mulher, isto-negro ou isto-árabe, é definida primeiramente nos regimes de exclusão por normas. São esses regimes que dão a base ideológica ou material para a decisão do soberano.

Por isso, dizer “eu sou ISTO” é primeiro uma rendição e somente depois uma luta. Significa primeiro uma rendição nos planos dos regimes de exclusão por normas: _eu aceito ser ISTO que você diz que eu sou. E vão, com a rendição, primeiro reforçar estes regimes, para então sustentar a luta no plano da soberania.

_Enquanto sou ISTO mesmo que você diz que eu sou (um outro em relação a você), eu luto, eu exijo ser reconhecido como um cidadão igual a você no plano da soberania (embora no plano dos regimes das normas, eu permaneça sendo diferente, anormal).

Quando a luta por reconhecimento triunfa e aos anormais são atribuídos direitos, o poder soberano neutraliza os regimes das normas. Entretanto, ao mesmo tempo, encerra os cidadãos em suas identidades.

A identidade, nesse jogo dos regimes das normas, é definida pelo outro. E assim permaneço preso à minha própria alteridade, pois é o outro que se define e me define a partir de um recorte que não é estabelecido por mim.

A identidade é apenas uma figura, uma determinação externa do meu ser, que não me é essencial, mas antes o limita, ao determiná-lo. Lutar pelos direitos de uma identidade é primeiro capitular a uma forma que me é ditada pelo outro.

Ele será um Desaparecido

– Amanhã?!

– Sim, estou indo viajar amanhã.

E invariavelmente eles fazem uma cara de forte surpresa e comoção, me abraçam comovidamente, como seu eu fosse morrer no dia seguinte, talvez porque pensem ele vai para outro mundo.