Frieza da filosofia

A coisa sempre fica mais feia, quando a frieza da filosofia se digladia com o elemento humano e não com outro gládio do mesmo ferro. Quando a filosofia encontra a carne, a dor, o sofrimento, a pobreza, a indignação, o afeto. Aí, quando a filosofia não é luz, mas lâmina cáustica em contato com a carne viva, quando surge o desejo de se calar, então, a filosofia se põe à prova. – Ela sustenta seu encontro cortante com a carne? Ou ela não é feita para isso, e é puro vento a passar entre lábios?

Hobbes (8) – poder e liberdade

O campo virtual das ações permitidas e proibidas, estabelecido pelo poder soberano, não elimina a liberdade natural, a liberdade de movimento (e portanto de imaginação e pensamento) dos sujeitos. Como não há amarras reais, o sujeito individual resguarda, como membro da comunidade política, toda a sua liberdade de movimento. Os sujeitos estão tão soltos quanto os indivíduos pré-políticos – não há correntes que os prenda, não há uma força atual exercida sobre seus corpos. Porém, a liberdade na comunidade política está determinada pelo campo virtual das forças reativas da lei. A lei desenha a forma da liberdade.

A lei civil, ou a forma do campo de virtualidades, restringe a liberdade dos indivíduos. Mas não dos indivíduos enquanto corpos naturais, apenas dos indivíduos enquanto partes do corpo político, enquanto sujeitos, cuja vontade (isto é, cujo desejo, cuja inclinação afetiva) concorda com as leis da razão – as quais, para Hobbes, são as leis divinas ou de natureza. Segundo estas, é dever de todo ser humano, em suas ações, e para o seu próprio bem, buscar a paz (desde que tenha a esperança de obtê-la). Deste princípio fundamental decorre o dever do assujeitamento político, da obediência ao soberano. Esse dever é um vínculo pré-político do ser humano com Deus ou com a razão (sendo a razão o meio mais acessível para ouvirmos a voz divina).

A liberdade civil, que é a liberdade em uma comunidade política, é uma restrição virtual (e não material) da liberdade natural, total, pré-política. Em nome da paz, o sujeito ordena-se à lei civil, e inscreve-se no campo de virtualidades, tal qual ele é desenhado pelo soberano.

O governo (a condução da conduta dos sujeitos pelo soberano) em Hobbes é, na sua essência, uma gestão jurídica da força de todos, e tem dois objetivos básicos: reunir poder suficiente para garantir a segurança e a paz no interior do território e para defender este território contra inimigos externos. O soberano, na sua face interior, é portanto legislador, juiz e executor das leis. Na sua face exterior, o soberano é o generalíssimo, comandante dos comandantes do exército.

A paz no interior do território, em Hobbes, é um estado de justiça, uma situação em que as promessas pactuadas são cumpridas, em que se abdica do uso privado da violência para garantir seu ganho, segurança e reputação. O pacto fundamental do poder soberano é resultado da vontade daqueles que se assujeitam, isto é, do seu medo de morrer, do seu desejo de uma vida cômoda e da sua esperança de alcançar tal patamar pela atividade industriosa, pelo processo civilizatório. Tal pacto se concretiza pela força das paixões, servindo ao desígnio fundamental da razão de buscar a paz. Tal situação de justiça, em que as paixões mais fortes concordam com a razão, só pode ser atingida em uma comunidade política, em que o uso da violência é monopólio daquele que faz executar a lei. Se os homens pudessem governar a si mesmos, controlar suas paixões e agir conforme a razão, não haveria necessidade de governo do soberano.

A soberania é a garantia do estado de justiça. O poder soberano será tanto mais eficaz, quanto mais irresistível e incontestável for o seu poder. Mas o soberano não dispõe naturalmente, em sua pessoa natural, de um tal poder. Como, aliás, é o caso de Deus, que, devido a seu poder irresistível, obriga todo sujeito à lei natural e moral da razão. O soberano só alcança um poder grandioso mediante o convênio de poderes da multidão de sujeitos. Sem esse convênio, o poder do soberano é praticamente nulo, quer dizer, semelhante ao poder natural de qualquer outro indivíduo.

Fazer com que os contratos sejam cumpridos, punindo quem não os cumpre, é o encargo do soberano. A justiça deve ser igual para todos. O povo deve ser instruído a respeito das leis. De forma semelhante ao Deus de Moisés: o soberano deve fazer com que o povo aprenda os dez mandamentos da soberania, divididos em duas tábuas. Na primeira tábua, o sujeito aprende a obrigação de amar a seu soberano; na segunda, de amar a seu próximo como a si mesmo. A obediência a essas duas máximas é a única garantia da prosperidade de um povo. O soberano tem, na política, em parte, o papel de Deus na religião. Mas o soberano de Hobbes não é um pastor. O soberano não visa às individualidades. Todos são iguais perante à justiça. Diante do soberano, está a grande massa homogênea dos sujeitos. O poder soberano não é um poder individualizante. Ele não produz a diferença entre os sujeitos.

Deus é capaz de pereber a singularidade de cada uma das ovelhas de seu rebanho. Enquanto que, diante do soberano, só há uma subjetividade, a do povo unido sob seu jugo.

Hobbes (7)
Hobbes (6)

Hobbes (7) – o soberano no sujeito

O medo e a esperança da efetiva realização do campo de virtualidades (promessas e ameaças do soberano) tornam-se a presença virtual, quer dizer, imaginária, do soberano no processo de deliberação subjetiva. Mas, embora pareça um truísmo, vale chamar a atenção para isso – o soberano no sujeito ainda não é o sujeito sendo soberano (governante de si).

Hobbes (1)