Perdemos todos os nossos guias!


Sem guias, sentimo-nos perdidos? Atenção, pois será uma perdição ainda maior clamar por um líder! O perigo não é viver perdido, mas não saber viver sem um guia.

Leiamos o que escreveu, em 1931, o jornalista Hans Zehrer, fundador do Círculo Tat (Tatkreis) de intelectuais e outras pessoas da classe média alemã:
O anseio por este indivíduo [o líder, der Führer] está latente no povo há mais de uma década. Nós não queremos nos iludir: no momento em que a primeira palavra de comando severa, mas justa, de uma vontade realmente pessoal atingir o povo alemão, as pessoas entrarão em formação e cerrarão fileiras [...] e este respirará aliviado, pois saberá novamente para onde está indo.
H. Z. apud KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa. Trad. Carlos Eduardo Jordão Machado, Marlene Holzhausen. São Paulo: Cosac Naify, 2009. P. 132.



A era da pós-verdade e as imagens


A noção de pós-verdade pressupõe uma certa concepção de verdade: a concepção científica da verdade objetiva, em que o objeto é o ob-jeto, separado, vivo-morto.

A era da pós-verdade, na verdade, quer dizer: a era da pós-verdade-objetiva, em que restam apenas imagens. Ninguém dispõe, ao modo da verdade científica, das naturezas dos objetos separadamente das suas próprias naturezas e portanto dos seus desejos.

Na era da pós-verdade, ninguém dispõe da verdade, ou se interessa por ela, mas alguns controlam as imagens.

Esse controle pode indicar uma situação de dominação extrema, que chega até o controle das ideias imaginativas, ao controle das opiniões, da imaginação... a hegemonia...

Mas nem tudo está perdido:
Se fosse tão fácil imperar sobre as almas como [é imperar] sobre as línguas [censurando-as], cada um [dos imperadores] reinaria em segurança, e não haveria qualquer império violento. Com efeito, cada um viveria segundo o engenho dos imperadores e apenas segundo o seu decreto julgaria do verdadeiro e do falso, do bom e do mau, do justo e do injusto. Mas isso é impossível, que o ânimo de alguém esteja absolutamente sob o domínio de outrem!*
Nesse caso: a violência dos impérios aparece como índice das resistências, não exatamente como um mal.





(*) SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres III: Traité théologico-politique. Paris: PUF, 2009 [1670]. XX, §1. P. 632. Livre-tradução. Grifo meu.


Ratio VIII


Nós redefinimos a razão pela liberdade, propositalmente, pois a razão também se definiu historicamente pela subjugação da natureza externa e interna:
A luta começa com a perpétua conquista interna das faculdades “inferiores” do indivíduo: as suas faculdades sensuais e apetitivas. A sua subjugação é considerada, pelo menos desde Platão, um elemento constitutivo da razão humana, a qual é, assim, repressiva em sua própria função. A luta culmina na conquista da natureza externa [...].*

Isso nos coloca então em presença de uma má razão e de uma razão boa ou, em outros termos, de uma razão parcial e de uma razão comum?







(*) MARCUSE, Herbert. Eros e civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Trad. Álvaro Cabral. 8 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1999 [1955]. P. 107.



Imagem e objeto


Duração
ou vida
ou potência imaginativa
ou imagens.
A imagem é o não separado.
O objeto não é uma imagem.


Vida e morte dos objetos da ciência


A ciência cria seus próprios objetos, separando-os do fluxo contínuo da vida (a “duração”). Essa separação é a condição da estabilidade desses objetos. Estabilidade que, por sua vez, é um critério científico – é preciso que o ob-jeto da ciência separe-se do sujeito que o conhece, numa oposição, num jazer diante. Na sua permanência, na sua repetição requerida, o objeto científico está separado da vida, isto é, morto. Só assim ele pode se repetir para todo e qualquer sujeito a que se oponha. Na forma de conhecimento científica, os objetos emergem da imersão não objetiva. Eles vêm à luz, separando-se da vida contínua, interligada, do real. A ciência dá à luz seus objetos e, ao mesmo tempo, num certo sentido, os mata. A separação do objeto (em relação à realidade viva – ou natureza – e em relação ao sujeito) é a condição de possibilidade de sua manipulação e dominação.



Ou é polícia, ou é ladrão!


Naquela brincadeira de crianças, só há dois modos de ser: ou se é polícia, ou ladrão. Entramos nessa brincadeira?




Disposição índia XVI


“Trabalhar [o] menos [possível] e determinar suas próprias necessidades e satisfações”* – esse é o lema da disposição índia e do singular heterogêneo fora da massa.






(*) MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Trad. Álvaro Cabral. 8 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1999 [1955]. P. 99. Com intervenções...


O Pai ou o Leão?


De um jeito ou de outro, a obediência às ordens imperiais constitui a essência do império (Spinoza):
O poder do imperadores não está contido apenas nisso – poder coagir os humanos por medo –, mas em tudo isso absolutamente que eles possam fazer para que os humanos se submetam (obsequantur) ao mandatos dos imperadores*.
Assim, todo império será uma manifestação do Pai primevo (Freud) ou do Leão que proclamou a ordem primeva (fuja! – fugir é obedecer à ordem primeva para não morrer) (Canetti)?



(*) SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres III: Traité théologico-politique. Paris: PUF, 2009 [1670]. XVII, §2. P. 537. Tradução livre.


Ex labore proclives ad libidinem


“Para fora do labor, os humanos inclinam-se ao prazer”*.

Em Spinoza, esta fórmula latina não é uma máxima com finalidade moralista, mas uma descrição da verdade efetiva.

O labor é a quantidade de energia ligada ao esforço que cada um faz para a conservação do império, enquanto parte componente – isto é, enquanto parte de um determinado regime de relações de poder que garantem uma determinada distribuição dos bens produzidos em comum.

A fórmula latina manifesta que o labor e, por conseguinte, o império se contrapõem ao prazer... e os humanos, por natureza, tendem ao prazer e a se afastarem do labor, à medida que o labor e o que dele resulta, a conservação do império, resultem em dor.

A grande maioria das formas imperiais (sobretudo as mais hierárquicas, que propiciam uma desigualdade acentuada na distribuições dos bens e, portanto, dos prazeres) são regimes de dor, que envolvem, na sua constituição e na sua manutenção, o labor dolorido.

Inclinar-se naturalmente ao prazer – na preguiça ou na libertinagem –, nessas situações, é o princípio do não-agir ou do agir-não, pelo qual se expressa a resistência natural das partes aos regimes imperiais.






SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres III: Traité théologico-politique. Paris: PUF, 2009 [1670]. XVII, §4. P. 541. Livre-tradução.


Dois modos de ser “os muitos”


Entre o homogêneo e o heterogêneo, se podemos distinguir uma política de massa de uma política de multidão, também podemos distinguir uma cultura de massa de uma cultura de multidão.


177


Toda fotografia é fotografia de um existente.
Mas, o que seria do existente, numa inversão,
se só fosse existente o que pudesse ser fotografado?


Se nossos problemas são comuns, também precisamos de soluções comuns


Nossos problemas são comuns. Isso quer dizer pelo menos duas coisas:

(1) Os problemas que nós individualmente temos não são parciais, mas comuns a outras partes, que compõem conosco o que nos é comum. Os problemas que eu experimento, outras partes do comum também experimentam. Nossos problemas são comuns nesse sentido.

(2) Somos individualmente partes em relação com outras partes. Nossos problemas parciais são problemas nessa relação comum. Nossos problemas são comuns também nesse sentido.

Na solução dos problemas, os neoliberais defendem que a solução seja parcial, que cada parte resolva por e para si os seus problemas (de saúde, de educação, de segurança, de desemprego e pobreza, por exemplo). No entanto, a atitude parcial enfraquece o comum, o tecido de relações que constituem a totalidade aberta de que somos partes. E o enfraquecimento do comum, ao invés de diminuir, só aumenta nossos problemas, que são comuns.

Os republicanos, por sua vez, entendem que cabe ao estado resolver nossos problemas comuns (de saúde, de educação etc.). As partes devem apenas se entregar aos seus cuidados, como partes governadas. No entanto, isto enfraquece a relação entres as partes, comprometendo a constituição do tecido comum. O estado não é o comum, mas uma parte que deseja dirigir o comum, como totalidade fechada.

A solução dos nossos problemas, que são comuns e não parciais, precisa ser produzida em comum, com a intensificação da participação das partes, democraticamente, isto é, racionalmente, na superação das perspectivas parciais, numa abordagem comum.

Se nossos problemas são comuns, as suas soluções também precisam ser comuns nos dois sentidos destacados acima.




A supressão do pensamento crítico-filosófico

...(ou, o que dá no mesmo, seu confinamento a um círculo aristocrático)...

PECs, MPs do ensino no Brasil temeroso: as 1001 maneiras de repetir a morte de Sócrates.



Fluxos de decisões II


Mesma coisa para as organizações partidárias (partidos de partidos). A lógica de partido: nada de mais antidemocrático. Impede o pensamento. Não pense, faça parte de um partido que pensa. Ou que você pensa que pensa.


Fluxos de decisões


Os fluxos das tomadas de decisão nas organizações sindicais (sindicatos de sindicatos), com triste frequência, são inversões dos fluxos democráticos. Não se alimentam das decisões tomadas, em situação, por seus componentes, numa conveniência, mas, ao contrário, procuram determinar os comportamentos de seus componentes em situação, decidindo por eles.


O cinema do real, a filosofia e os “efeitos”


– Nada de “efeitos especiais”, proclama o cineasta-estudioso* da realidade-verdade (aquele que a busca, que se aplica pelo real sem truques).

Neste ponto, ao modo do cinema do real, a filosofia também é uma ciência dos “efeitos”, não apenas no sentido causal do termo, mas no sentido ótico, no sentido do reconhecimento visual-mental daqueles acréscimos de realidade que terminam por encobri-la (uma estranha fumaça que, apesar de ser um efeito de realidade, é também um truque, que lança um véu sobre o real, tal qual uma fantasia dominadora)**.

Que a filosofia seja uma ciência dos efeitos quer dizer que ela se esforça em revelar os efeitos – que são, ao mesmo tempo, índices e velamentos da verdade efetiva das coisas –, para desfazê-los.





(*) Conferir o uso que Barthes faz do termo latino studium. In: A câmara clara: Nota sobre a fotografia. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015 [1980]. P. 29.

(**) Para Aristóteles, a ciência é conhecimento das causas. Para Hobbes, dos efeitos. Mas Deleuze relembra que “efeito” tem ainda um sentido diferente, para além da causalidade. Conferir: DELEUZE, Gilles. Spinoza: Philosophie pratique. Paris: Minuit, 2003 [1981]. P. 18.

O parcial e o comum

A partir das leis do apetite, cada um é atirado em divergência (ex legibus appetitus unusquique diverse trahitur
SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres III: Traité théologico-politique. Paris: PUF, 2009 [1670]. XVI, §5. P. 509.

A lei do apetite de cada um é a lei do desejo de uma parte (da natureza, da sociedade), quando ele é determinado exclusivamente pela relação da parte com o real, que, aliás, é o real comum a todas as outras partes (da natureza, da sociedade).

Como os apetites parciais (o modo pelo qual cada um é determinado pelo real, enquanto uma parte sua) são heterogêneos, as ações baseadas nos apetites tendem a apartar as partes umas das outras.

Ora, é essa parcialidade do apetite diante do comum que marca o aspecto irracional do apetite.

O desejo não desaparece, porém, quando a parte supera a sua parcialidade, e elabora a sua relação com o real comum desde uma consideração comum, isto é, que leva em conta os desejos das outras partes que estabelecem uma relação com o real comum.

Superar a parcialidade na direção do comum, isso é a elaboração racional do pensamento. Ela não exclui o desejo, mas o orienta para o eixo comum, o que constitui um acréscimo de realidade.

Com certeza, vale lembrar, o comum não é o homogêneo.


Má democracia


Se você insiste, digamos, então, isto é uma democracia! Porém, você há de concordar comigo, nem toda democracia é boa; também existem más democracias.



Ratio VII

Dispomos de duas reflexões sobre a razão: a que a determina pela liberdade e a que a determina pelo comum (pela superação-manutenção do perspectivismo do ponto de vista, isto é, dessa inserção parcial no real que é a imaginação).

Então, se o racional é consistente com o racional, então a liberdade deve estar ligada ao comum; e o comum, à liberdade.

(Tendo-se em mente que o comum não é o homogêneo, constituído pela redução do real a um único e mesmo ponto de vista, mas a multiplicidade, constituída pelo processo indefinido de multiplicação dos pontos de vista).


Comum ≠ homogêneo

Pensemos o comum não como pensamos o massificado

O senso comum, por exemplo, não é o senso, o juízo, a percepção, a disposição para agir, idênticos em todos os indivíduos que entram na constituição do comum. O comum não é o idêntico e homogêneo senso de massa, que não é mais do que ausência ou suspensão do senso próprio.

Spinoza afirma: “Nemo dubitet, commune hominum ingenium varium admodum esse...”* (Ninguém duvida que o engenho comum dos humanos seja extremamente variado). O comum não exclui a variação.








(*) SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres III: Traité théologico-politique. Paris: PUF, 2009 [1670]. XIV, §9. P. 473.

Genealogia

Foucault, novamente.

Genealogia é o estudo do vir a ser de um objeto, seja uma noção (um modo de pensar), seja uma prática (um modo de agir), por meio do estudo das lutas, dos enfrentamentos e das alianças dos diversos poderes, forças e resistências, historicamente envolvidos na sua gênese ou produção.


Continuidade-descontinuidade


A propriedade última do pensar, para Platão, seria traçar descontinuidades no real: ideias ou essências. E o bem (e o um?), para ele, estaria para além das essências. Podemos pensar o um, em Platão, como contínuo? Parece que não.

Para Bergson, a propriedade última do pensar seria compreender a continuidade do real, na própria intuição imediata. A continuidade seria o fundo ontológico sobre o qual as descontinuidades que somos (e todas as imagens) se constituem. Viver seria estabelecer, para fins utilitários, no agir, descontinuidades acidentais na matéria: os corpos. Acidentais quer dizer: necessárias apenas para a vida...

Em Freud, o Eu surge do Si – o Si: a força de existir, afirmativa e indeterminada, porque não conhece a sua negação. O Si seria o contínuo; o Eu, o descontínuo. A realidade se distribuiria entre ambas as instâncias. A máxima realidade do Eu: a ideia da morte. A morte seria a meta da vida. A máxima fantasia do Eu: a imortalidade, a permanência indefinida na descontinuidade. A tarefa do Eu (a sua ética em vida): colocar-se ali mesmo onde estava o Si.

Em Bataille: o erotismo seria a aposta, o lance, do descontínuo no contínuo, a afirmação da vida até na morte.

[sem enfeixamentos]






Atração pelo modo imperativo do discurso


“Distancie-se de um ponto de vista.”

O modo imperativo (possivelmente, o modo de discurso originário; a linguagem seria inicialmente a instância de uma ordem, a afirmação de um comando) exerce sobre os nossos ouvidos (e, na sequência, sobre o restante do nosso corpo) uma estranha atração. Damos mais ouvidos a um comando (mesmo na resistência) do que a uma descrição.

Bom, a novidade talvez nos pareça estranha. Mas parece-me que o estranho remete sempre, ao mesmo tempo, a algo muito antigo, quase totalmente esquecido.



“Distancie-se de um ponto de vista.”*


Um corpo/um olho é um ponto de vista para o real; ao mesmo tempo, porém, faz parte dele. Sente-se-percebe-se-pensa-se numa distância; no entanto, é imanência. A superação-manutenção (a denegação) dessa inserção pontual no real, por meio da re-consideração-flexão de outros corpos (isto é, de outros pontos de vistas), intensifica a inserção de um corpo no real. Esse é o engajamento da razão.





(*) MAYSLES, Albert. Manifesto do documentário. Trad. Fábio Bonillo. In: LABAKI, Amir (Org.). A verdade de cada um. São Paulo: Cosac Naify, 2015. P. 128.


A pulsão para a verdade


Vivemos em um mundo de inverdades (abandonados no deserto? sim, mas também com um adicional de liberdade). Isso nos constrange, nos impede, nos limita, nos entristece? Por isso, nossa pulsão para a verdade pode ser dita erótica (ou melhor, a força erótica assume a veste de uma potente vontade de verdade). Obviamente, isso comporta um perigo: abraçar-se à “verdade” a qualquer custo, por não suportar a visão abismal e a vida abandonada no deserto, sem heróis que nos guiem (sem Moisés). Um mundo de inverdades se mostra, no momento, como a condição da multidão livre – por isso, aproveitemos do sol, do ar, da água, dessas verdades, no deserto do real.



Sob controle


O objetivo do imperium é o controle (na medida do possível). Controle da variação incontrolável dos ventos da fortuna, ora favoráveis, ora desfavoráveis. O desejo de segurança e comodidades, de felicidade do corpo mole portanto, é honesto. A honestidade desse desejo indica sua viabilidade-componibilidade no conjunto dos outros desejos e dos desejos dos outros. O controle é honesto, nesse sentido.

Viver sob controle é a vida consciente, que é uma vida social, na linguagem. A linguagem trata do geral (mesmo no nome próprio). Ter tudo sob controle, isso é uma técnica. Na fotografia, por exemplo. A fotografia como espelho do real. A consciência fotográfica mostra o real como ele é. O real-como-ele-é da consciência, no entanto, é o real profundamente elaborado, transformado, mediado pela sua apreensão linguística, em vista da reação pragmática, do controle, do desejo de felicidade ou de não-infelicidade. Sob controle, aprendemos mais a evitar a infelicidade do que nos arriscar na felicidade.

Ter tudo sob controle na fotografia é dominar a técnica, pela repetição, quando a vida não se repete nunca.


Fotografia: conhecer e conhecer totalmente


Um é conhecer; outro, conhecer totalmente.

Conhecer totalmente responde a duas condições: conhecer a essência toda da coisa conhecida, e conhecer a coisa sem nada de nós misturado nela.

Não há conhecimento total de coisa nenhuma, concordo. Mas isso não que dizer que não conheçamos as coisas que imaginamos/fotografamos.

O conhecimento de qualquer coisa é inesgotável. São inesgotáveis o conhecimento da coisa mesma e o dos aspectos da coisa, das nossas relações com ela.





O real é fotografável


Propriedade do filósofo, mas não do profeta:

– “Quem ouve o filósofo torna-se filósofo. Quem ouve o profeta, por sua vez, não se torna profeta” (Spinoza).

O real tem a seguinte propriedade (tal como o filósofo, o real comunica, “dá do seu espírito”):

– Tudo que vem do toque/resvalo, da estima, do pensamento, da percepção, da escuta, da fotografia do real se soma ao real e o modifica. Logo, toda foto é e modifica o real.


Camponeses e bandidos II


O camponês: é o regime da consciência: um mecanismo de memória e antecipação constantes em relação ao presente: o passado vivido projetado no vivido por segurança e proteção. Ele nos faz rir (a nós, camponeses ou bandidos).

O samurai: a ação é ligada à compleição inteira, complexa e singular do agente. Por isso, ela é séria (diria Bergson). Não é ação da consciência (não é refletida), nem da inconsciência (nada ignora, nem a sua própria tragédia).

E o bandido? Ele gesticula automaticamente, inconsciente do todo que é. Dá espadadas para quaisquer dos lados. Seus gestos, ora querem proteger desesperadamente uma parte do seu corpo, essa ou aquela, ora atacar na esperança de uma vitória. Estimam-se mestres e bravos, atuam como covardes e escravos. Sua mão porta à frente um sabre, seu corpo aponta para a retaguarda. Essa inadequação (Bergson) é o que os torna cômicos. Neles também, rimos de nós mesmos.

Restaram os governados e os governantes. 




Diário de Berlim _ inflexio


Nossa dificuldade com o cinema é artística (técnica): é fazê-lo, não pensá-lo. Isso não ocorre com a fotografia.


Camponeses e bandidos


– Os sete samurais (Kurosawa, 1954) –

Três tipos humanos (três disposições afetivas): o camponês, o samurai, o bandido. Destes, os dois primeiros são puros:

O camponês é o humano submetido às paixões cativantes: mediocridade, superstição, medo, esperança, humildade, mesquinharia, espírito de poupança, contenção, vingança, coletivismo, trabalho e reprodução – aliado à natureza vital, é o alimento e a condição do humano animal.

O samurai é o individual virtuoso, livre: ambição (amor à honra), gosto do risco e da arte da guerra, coragem frente à morte, grandeza da alma, tragicidade (em todas as situações, sempre sai perdendo, e se sabe assim; por isso, desaparecerão), amor do expoente – é capaz do sacrifício da condição natural da qual depende.

O bandido é o revoltado covarde: preguiçoso, desregrado demais para aceitar a condição camponesa, mas pequeno e vicioso demais para se tornar um samurai.

No filme: Kikuchiyo, nascido camponês, se torna samurai e morre. Mantém, num só, a animalidade camponesa, a determinação e o individual samurai; por isso é cômico, tanto para camponeses, como para virtuosos.

Os samurais desapareceram desde então (século XVI).
Restaram os camponeses e os bandidos que somos.


174


A filosofia: uma atividade no impensado.
(avançar através da fronteira, ou retraçá-la em uma experiência-limite)





Liberdade e razão


Procuremos não definir a liberdade a partir da razão (dizer livre todo aquele que age segundo ideias racionais).  Mas, pelo contrário, a razão a partir da liberdade (são racionais todos aqueles meus pensamentos que tendem a produzir no real a minha liberdade; irracionais, os que tendem a reproduzir a minha catividade).


Riso: atenção e distração


Para Bergson, rimos do distraído, porque nele a vida se distrai, e isso lhe faz padecer os eventos mais impensados.

O contrário da distração é a vida atenta a si mesma: isso é a vida livre. A atenção à vida é seriedade, liberdade.

Porém, o que há de mais discutido, hoje em dia, entre os pedagogos, do que a constatação de que vivemos distraidamente e incapazes de aprender?

Vivemos desatentos, somos cômicos. Riria de nós aquele que nos prestasse a sua atenção. No entanto, no mundo da distração completa (uma imagem do pedagogo), ninguém prestaria atenção a nada e, assim, não haveria ocasião para o riso.

Mas, há o riso. Então, há atenção? Para Bergson, o atento, por meio do riso, corrige a distração da vida. “O riso é a própria correção. O riso é um certo gesto social, que sublinha e reprime uma certa distração especial dos homens e dos eventos”*.

Curioso parece, então, que o riso seja considerado o sinal de uma distração também naquele que ri. Afinal, não é verdade que quem ri se distrai? Quem ri deixa de prestar atenção à vida, mas, por isso, se torna cômico?





(*) BERGSON, Henri. Le rire. Paris: GF Flammarion, 2013 [1900]. P. 113.



Até que ponto é verdade que não rimos do que é sério?


O que é sério, por definição, não nos faz rir. Nossos atos de liberdade, por exemplo, são profundos, criadores, artísticos, espirituais, admiráveis, aumentam a nossa autoestima e, por isso, são sérios.

Kkk... Tomados do exterior, porém, podemos (enquanto cínicos debochados) ter uma outra visão sobre nossos supostos atos livres... Nos orgulhamos de nossa liberdade, quando, de fato, estamos submetidos à necessidade da natureza e alheios a nós mesmos! Aparece ao cínico como cômico esse nosso orgulho, fruto da ignorância de nossa própria situação. O que é interiormente sério e admirável pode ser, portanto, exteriormente cômico e vexaminoso!

Assim, se, como diz Bergson, “tudo o que é sério na vida vem da nossa liberdade”*, então o cínico debochado estaria a rir o tempo todo.

No entanto, contrariando o cinismo, e fisgando o que há de Spinoza em Bergson, seria possível, na natureza, ser livre verdadeiramente. A verdadeira liberdade é o desdobramento no real (ou na vida) da necessidade da sua própria natureza, exclusivamente.

Ok, o que é livre é sério. Mas, como não somos inteiramente livres, podemos, livremente, rir de nós mesmos. Já o escravo enquanto escravo não pode (pode apenas deplorar a sua situação e impasse). Rir de si mesmo – olhe como eu faço o que faço, automaticamente, mecanicamente, como possuído; isso é engraçado, porque poderia ser diferente – já é um ato da liberdade, por envolver alguma autocompreensão e vislumbrar um outro modo de ser. O escravo enquanto escravo permanece sempre sério, nunca ri de si mesmo.

Nesse sentido, rir de si mesmo é um gesto de liberdade. Surge do livre-conhecimento do que é trágico em nós e se crê livre (e por isso é cômico).

Por sua vez, o riso do cínico debochado é um riso escravo (ele não ri de si mesmo; para rir, precisa dos outros).






(*) BERGSON, Henri. Le rire. Paris: GF Flammarion, 2013 [1900]. P. 108.


A cidade organizando a vida


A racionalização da vida – a coordenação eficaz e repetida de nosso espírito e de nossos gestos com os instrumentos e aparelhos dispostos pela cidade para os mais diversos fins, de tal modo que os fins da cidade acabam por se substituir aos fins do espírito – é “o mecanismo superposto à vida”*. E isso é, para Bergson, o cômico (le comique), o que nos faz rir.

No entanto, a vida racionalizada, ela mesma, quase não ri de si própria; porque, eficaz e repetida, já não é vida, já que “a lei fundamental da vida é a de não se repetir jamais!”**.

Assim, à medida que a racionalização da vida envolve mais e mais os corpos, ela deixa de ser risível. Ela chega então a nos fazer querer chorar?




(*) BERGSON, Henri. Le rire. Paris: GF Flammarion, 2013 [1900]. P. 88.
(**) P. 80.




Golpe e revolução


Ortega y Gasset pensou a revolução como o transbordamento das forças sociais sobre o “poder público”, que é a força estatal, a força que o Estado possui para reprimir o levante social.

Para ele, o poder público, atualmente (ele escrevia em 1927), é muito superior às forças sociais, de tal modo que a revolução tornou-se impossível, pelo menos na Europa. “¡Adiós revoluciones para siempre! Ya no cabe en Europa más que lo contrario: el golpe de Estado”*.

Assim, com o excesso do poder público, as únicas variações possíveis nos regimes políticos ocorrem por meio de golpes de Estado. Uma troca de figuras comandantes. O comando do poder público passa para as mãos daqueles que, com maior facilidade, ou seja, com a menor violência possível, podem garantir o controle das forças sociais.





(*) ORTEGA Y GASSET, José. La Rebelión de las Masas. P. 84.




Objetos do desejo imbecil


Até que ponto estamos, de fato, nesta disposição do nosso modo de ser?

Falo desta:

Não poder mais se privar no imediato de nenhum pequeno prazer. Não poder mais experimentar o desprazer da menor privação, sequer temporariamente. Tudo tem de ser imediatamente satisfeito. Tudo que se propõe virtualmente ao nosso desejo como objeto, transforma-se, de imediato, em falta, em carência essencial.




Maioria mínima

Problema da maioria simples: por exemplo, 50,5% contra 49,5% dos votantes; digamos, com uma “pequena” abstenção de 20%. Uma minoria, aí, decide.


Luta pelo reconhecimento


Certamente: há aí um desejo... mas quanto não há, nesse desejo, de dominado (de não livre, de determinado pelo outro, de alterius juris)? quanto não há de despojamento do direito, nessa luta por direitos? Quanto não há, na luta pelo reconhecimento, de desejo de ser [bem-]dominado?




Salus


Bartleby, postado ante a janela que se abre para uma parede cega de um outro prédio. A 2 ou 3 metros do seu nariz. E, a uma altura praticamente infinita. Diante do muro. Perceber (enfatizar, ou poduzir) distinções.


Extrema lucidez e alucinação


A extrema lucidez afinal não enxerga as sombras que a sua luz intensa projeta (historicamente). A sua luz, que há, sobra por sobre as sombras. Isso é a alucinação.



Incertitude jurídica e alucinação: Kafka


As leis de natureza são por natureza fixas. As leis jurídicas (que querem imitá-las no crédito), porém, sofrem em nosso momento de uma instabilidade alucinante. Como a maré, entram em vigor, e em seguida se retiram, para voltar no instante. Então, como ficamos? De tal maneira que já não sabemos o que está juridicamente vigente e o que não está. Sem lei, com lei. Ou com lei, sem lei?




A massa vem depois III - a “autêntica” filosofia


Vejamos o exemplo de OyG, na sua crítica ao “hombre-masa”.

“la masa... necessita referir su vida a la instancia superior, constituida por las minorias excelentes [...] los hombres excelentes [...] sin ellos [...] la humanidad no existiria en lo que tiene de más essencial [...] El día que vuelva a imperar en Europa una auténtica filosofía – única coisa que puede salvarla – se volverá a caer en la cuenta de que el hombre es, tenga de ello ganas o no, un ser constitutivamente forzado a buscar una instancia superior”.
ORTEGA Y GASSET, José. La Rebelión de las Masas.: 1936. P. 82.

A massa vem depois II


...Assim, alguns dos críticos da massa inclinaram-se para líderes supostamente enobrecidos. Com o desejo de evitar a massa, desviaram-se para o lado da sua causa: os nazismos, os fascismos, os personalismos, as ditaduras, os regimes de heróis virtuosos... (como, em pista viciada de boliche, as bolas, para a canaleta).

Foucault já nos alertara sobre isso, inclusive a respeito de críticos do capitalismo, na ideia de que “o capitalismo produz a massa” [...] “Vocês encontram em Sombart [o sociólogo do primeiro nazismo]  de fato, desde os anos 1900, esta crítica que vocês bem conhecem e que se tornou, hoje em dia, um dos lugares-comuns de um pensamento do qual não sabemos ao certo qual é a articulação e a ossatura, crítica da sociedade de massa, sociedade do homem unidimensional, sociedade da autoridade, sociedade de consumo, sociedade do espetáculo etc. É isso o que dizia Sombart. É disso que os nazistas se apropriaram...”*




(*) FOUCAULT, Michel. Naissance de la biopolitique: Cours au Collège de France, 1978-1979. Paris: Seuil/Gallimard, 2004 [1979]. P. 117.

A massa vem depois


A crítica à massa funciona mais ou menos assim:

– A massa é indolente, inobediente, quer governar, mas não se governa. Ela precisa da liderança do nobre (do ser humano destacado) para governá-la, para que se mantenham as medidas, e ela chegue a algum lugar.

No entanto, essa crítica toma o efeito pela causa, pois é a liderança, a dominação, que produz a massa e não o contrário.

Isso é o que nos diz Freud, se o lermos com atenção (isto é, com tempo): “...ele [o líder] os compeliu, por assim dizer, à psicologia da massa. Seus ciúmes sexuais e sua intolerância vieram a ser, em última análise, as causas da psicologia da massa”*. O líder é a causa da massa, não o efeito. A massa vem depois.





(*) FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu [1921]. Trad. Paulo César Lima de Souza. In: Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Obras completas. Vol. 15 (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 87.



Disposição índia XIV, ainda OyG


Frequentemente, a plebe é alvo de um preconceito: dizem-lhe massa: ela é não mais que plebe ou o desejo de cada um de levar a vida ex suo ingenio.

A massa enquanto massa (homogênea, impensante, imbecil, recessiva) provavelmente existe, mas temos de prestar atenção no que dizem aqueles que se atacam à massa. Não estariam, na verdade, atacando a plebe, na defesa da nobreza hierárquica, contra os exercícios democráticos?

Ortega y Gasset, em seu “livro lúcido”*, por exemplo, fala mal do “hombre-masa”: “el hombre vulgar, [que] antes dirigido, ha resuelto gobernar el mundo”...

E, logo em seguida, para mostrar que a vida fácil, a vida de gozo, a disposição índia, leva a “su irremediable degeneración”, ele escreve [segurem o estômago, Calibãs!]:

Así, para referirme a una dimensión muy concreta de la vida corporal, recordaré que la espécie humana ha brotado en zonas del planeta donde la estación caliente quedaba compensada por una estación de frío intenso. En los trópicos el animal hombre degenera, y vice versa, las razas inferiores – por exemplo, los pigmeos – han sido empujadas hacia los trópicos por razas nacidas después que ellas y superiores en la escala de evolución”** .





(*) HUISMAN, Denis. Dicionário de obras filosóficas. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2002 [1993]. P. 475.

(**) ORTEGA Y GASSET, José. La Rebelión de las Masas: 1936. P. 71 - 74.

Ética da excelência e ética da diferença


Tomamos a ética [por um momento] como processo de individuação. E a individuação, como relação a grupo. Na individuação, o singular destaca-se. Mas a relação a grupo pode ser de dois tipos (indicados por preposições diferentes).

Na ética da excelência, o singular destaca-se no grupo. É o mesmo, mas destaca-se como o melhor do mesmo. Virtude como excelência. Entre os músicos, o bom músico (o bom tocador de lira...). Entre um grupo de humanos, trata-se de ser o melhor entre eles, o excelente.

Na ética da diferença, o singular destaca-se do grupo. É o outro, destaca-se pela diferença em relação ao grupo do qual emerge. Entre um grupo de humanos, trata-se de outro modo de ser, de não mais fazer parte deste grupo.Virtude como diferença.







Escuridão



[luzes/visão][está difícil pensar][as poucas palavras saem como bolhas de ar desde a profundeza][seguir em f...]


Ontologia política


O nosso regime ontológico[-ético]-político[-econômico] goza (sem silêncio), quando afirmamos que o nosso grande problema é a corrupção sistêmica dos políticos.

Ontologia aqui é a história da constituição do sistema dos nossos modos de ser.


Político-psicanálise V: – o nosso grande problema: a corrupção?


Certa relação de causa sistêmica a efeito de superfície funciona desse jeito: se eliminamos um efeito, a causa produz, repete, o efeito seguinte numa série indefinida. Um efeito deixa de ser, outro, outros ocupam seu lugar.

O nosso problema político, portanto, não é a corrupção, não é uma questão moral, de fraqueza moral dos políticos profissionais. Tomar a corrupção como o nosso problema por excelência encobre a realidade do real político. Toma o efeito pela causa.

A corrupção é apenas um dos derivados, e não o mais importante, do regime dos modos de ser, do modo de funcionamento do ser político historicamente constituído, da nossa ontologia política, da história da constituição dos nossos modos de ser politicamente entre os outros.

Nosso atoleiro, nossa repetição compulsiva, isso em que ainda nos eternizamos, ainda é a escravidão – ou seja, um tipo de relação política de produção. Uma fixação histórica. Na repetição, o tempo não passa.







Ética como individuação e o grupo



Pensar (por um momento) a ética como processo de individuação. 

A ética, ainda assim, pode remeter ao grupo. A individuação é um processo de singularização. O indivíduo que se singulariza, a partir de uma elaboração, de um aperfeiçoamento, de um trabalho que efetua sobre si mesmo, é alguém que faz de si um indivíduo singular, destacando-se de um grupo. Mas destacar-se de um grupo de pertença, fazer de si mesmo um indivíduo de destaque, alguém de destacado, pode ter como finalidade o ingresso em um outro grupo, que é um grupo seleto. Isso quer dizer um grupo escolhido.




20 centavos bastam, por um momento



A favor dessa colocação, noto que a minha relação ergonômica a objetos transformou-se desde que eu deixei crescer, apenas 2 ou 3 mm além do habitual, as unhas dos dedos da mão direita (salvo a do mindinho). Com isso, apresentou-se também uma leve mudança em minha disposição mental (estado, capacidade afetiva, personalidade, engenho).