A palavra, pedra rolada


Lisa, sem asperezas, sem pontas, sem fios cortantes, sem ameaça. Esse modo de ser redondo e pacífico da pedra rolada decorre, porém, de uma multiplicidade incontável de choques passados, presentes. No corpo da pedra rolada, resta a imagem traçada, mas sem traços, desses choques múltiplos, mais ou menos intensos, incessantes, absolutamente contínuos, recíprocos, em meio a outras pedras roladas. Seu rolamento é ao mesmo tempo causa e efeito do rolamento das outras pedras.

Assim, também, se dá com as palavras. Sob a aparente não-violência da sua ordem discursiva (ou política), em sua institucionalização, nós, a quem é facultado tomar a palavra, permanecemos inquietos: “a inquietude de pressupor as lutas, as vitórias, as feridas, as dominações, as servidões, por meio de tantas palavras, cujo uso, há tanto tempo, reduziu-lhes a aspereza.”*





(*) FOUCAULT, Michel. L’ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971. P. 10.

Destradição

A meu perceber, eu só escrevo bem (quer dizer, legivelmente) no presente. No futuro, o que escrevo hoje vai se tornar um passado cuja leitura terá, para mim, um gosto extremamente desagradável.

Cenas eróticas de rua

Uma massa de pessoas se reúne, se acumula, e perdura ali suspensa de suas tarefas cotidianas, como que fascinada, em torno do cadáver de um homem estirado no chão da rua.

Essa fascinação é a vertigem abismal, produzida na massa, diante da “imagem do seu [próprio] destino”*.




(*) BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2013 [1957]. P. 68.

Tradição

No vigor da tradição, o passar do tempo é suspenso, porque ela reúne no presente o sentimento da certeza de que o passado será repetido no futuro.

Prazer e fricção

Já percebi várias relações pouco evidentes entre o surgimento do prazer (como aliás também da dor) e a fricção. O prazer nas festas, por exemplo, deve-se ao fato de que “as pessoas não se movem com as outras, mas por entre as outras”*.






(*) CANETTI, Elias. Massa e poder. 4ª reimpressão. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 [1960]. P. 61. Grifo meu.

Primitivo contemporâneo II


Na sua versão linguística, a crença no primitivo contemporâneo, a crença na origem imperante, se dá como etimologia.


Primitivo contemporâneo


Em Freud, em Canetti, em Darwin, em Bataille, em muitos etnólogos, parece existir a crença de que podemos conhecer melhor a humanidade do presente se conhecemos a humanidade nas suas formas primitivas, pois o humano primitivo ainda viveria nas profundezas mais fundamentais dos contemporâneos.

O primitivo não teria sido negado ou definitivamente superado no contemporâneo, mas apenas denegado, reprimido, posto em suspenso, e, nessa suspensão, ainda seria atuante.



O poder de sugestão de uma bela narrativa

Freud é, entre outras coisas, um grande contador de histórias de vidas humanas a partir de testemunhos. Histórias tão envolventes, na sua análise, que, depois de ler um certo número delas e estabelecer algum tipo de hábito com ela, tendemos irresistivelmente a desconfiar do sentido manifesto de tudo aquilo que nos contam nossos amigos e conhecidos, ou que nos contamos a nós mesmos, e a procurar, segundo as vias da análise, o verdadeiro sentido, originário e inconsciente, latente em tudo o que eles nos dizem, ou que nos dizemos. Lendo Freud, vamos nos tornando, como ele, analistas. E, quando disse “irresistivelmente”, quis dizer de modo automático e involuntário.

Creio que não haja o risco de que esse poder de sugestão (de ascendência mental), em mim, se prolongue por muito tempo. Bastará eu ouvir outros contadores, e dar-lhes um pouco de atenção, para que esse poder se dissipe. A minha sugestionabilidade, provocada por motivos mais estéticos do que intelectuais, não chega ao ponto de eliminar meu senso crítico em relação a Freud, como ocorre na hipnose em relação ao hipnotizador.

De todo modo, esse poder de sugestão de uma narrativa bem construída, na sua proximidade com a hipnose, me faz pensar no cinema.


A comunidade filosófica como fã-clube

Os amantes da Verdade, originalmente rivais, ao invés de se dilacerarem mutuamente na tentativa de possuir a Verdade individualmente só para si, como objeto exclusivo de seu amor, devido ao seu número elevado, terminam por substituir os ciúmes que sentem uns pelos outros, por meio da identificação no sofrimento, com um sentimento de rebanho.

“Lembremos o bando de mulheres e garotas que, num entusiasmo amoroso-sentimental, cercam o cantor ou o pianista após um espetáculo”.*





(*) FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Obras completas. Vol 15 (1920-1923). Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 82.

Palavrão freudiano II


O “novo” caminho-interpretativo que passava por Freud já não nos leva adiante. Percorrê-lo nos traz de volta, sabemos agora – depois da destruição do complexo de Édipo* –, sempre ao mesmo lugar. Isso não quer dizer que devemos sem mais descartá-lo, para seguir adiante. Mas, sim, que devemos, radicalmente, perguntarmo-nos: _que necessidade temos de ir adiante? _E o que ir adiante significa?



(*) DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L’Anti-Oedipe: Capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 1973.

Palavrão freudiano


Quando então chegarei a dizer: _eu sou um “filho da puta”? E reconhecer meu desejo de puta e meu amor de mãe como um só e mesmo desejo-amor.

Antes de mais nada, descrever. Mas como?

A posição ou atitude científica de Freud: “Toda tentativa de explicação deve ser precedida pela descrição daquilo a ser explicado”*. 

Mas, a ciência não se limita à anterioridade da observação-descrição. Ela, antes de observar-descrever, pensa. Sem pensar e inventar suas funções, ela sequer poderia descrever. O pensamento funcional prepara e, nisso, antecede a observação.




(*) FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Obras completas. Vol 15 (1920-1923). Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 17.