Pontes entre planos intelectuais

“Dispositivo” de Foucault como configuração coletiva do “cupiditas” (desejo) de Spinoza.

Em Spinoza: de “cupiditas” (desejo) a “conatus” (esforço).

Jihad” de Abedi (esforço para agradar a Deus) como pré-configuração e acolhimento do “conatus” em um certo “dispositivo”.

Hedonismo

O hedonismo é apenas aparentemente a razão de nossa sociedade (ratio societatis).

Afinal, vivemos juntos para o prazer? Essa questão tem dois sentidos:

(1) Nos juntamos para obter prazer dessa junção? Acho que não, não fundamentalmente (a sociedade também é causa de mal-estar).

(2) Nos juntamos para obter prazer com objetos que são fruto dessa junção, e que sem ela não viriam a ser? Apenas parcialmente. Não há como que duas etapas: junção e, depois, produção de objetos de prazer. Tudo acontece de uma só vez. De modo que a junção já é objetiva, já toma a forma do objeto que ela produz. Por isso, penso: nossa ratio societatis é objetal, dispositiva, se funda no objeto social (produto-mercadoria) e não no prazer.

Nossa ratio societatis dispõe e constitui, apresenta e impinge as formas de prazer que podemos gozar.

Engano com a pureza

Acontece-nos debater com nossa própria vida, por ela não ser só poesia, só beleza, só inteligência. Acontece-nos desejar a pureza como o mais desejável. Desejar só a beleza, a poesia pura, as ideias claras e distintas sozinhas, sem nenhuma mancha, sem nenhum atrito, sem nenhuma confusão, sem nada ao lado.

Mas não há, para nós, não haverá jamais, a beleza sem feiúra, a clareza sem as manchas das cores, a pureza sem mistura. Ao menos não podemos perceber, ou ser conscientes de um sem o outro. Não podemos apreciar o infinitamente puro sem imaginá-lo e misturá-lo com tantas outras coisas, nem o celestial absoluto sem estarmos vivos, nem o eterno sem durarmos.

Embora, de certa maneira, na verdade, tudo seja puro e perfeito, para nós, não pode haver o puro sem o impuro, o perfeito sem mistura de imperfeição.

Intimidade

O que se chama de intimidade tem diversos limites (extensíveis ou ao contrário compressíveis).

A intimidade é como um círculo que se retrai ou se esparrama na relação que mantém com o que não pertence a si mesma, a esta intimidade mesma.

Entretanto, diferentemente do círculo e dos círculos circunscritos, a intimidade não tem um centro, sequer encerra em si e por si uma área de continuidade.

Na relação com o que não lhe é íntimo, a intimidade se mostra descontínua, fragmentada, múltipla.

O castelo

Dada a definição de castelo como o que domina, controla ou conduz, do alto e de dentro, nossas vidas, determinando nosso desejo, poderíamos apresentar-lhe incontáveis sinônimos, ou seja, substituir este signo por incontáveis outros, por exemplo: Deus, a morte, o sexo, o gene, o pai, o Estado, a instituição, a mercadoria, o espetáculo...

Assim castelo pode ser considerada uma função de dois valores: verdadeiro (V) ou falso (F).

C(x) = V, se somente se x, a variável questionada, adequa-se à definição de castelo, isto é, se somente se x domina, controla...; senão, C(x) = F.

Castelo como uma função é então uma relação entre um domínio de variáveis e um conjunto-imagem de dois elementos apenas.

Mas, mudemos um pouco a natureza deste conjunto-imagem. Entre V e F, coloquemos uma infinidade de elementos que, por definição, tenham um pouco de V e um pouco também de F, em infinitas proporções ou razões.

Assim se diria que C(x) –> V, se somente se x tende mais a dominar, controlar... do que tende a não dominar, a não controlar... nossas vidas...; senão, C(x) –> F.

O pensamento conceitual tende a trabalhar com o operador funcional [=], o princípio do terceiro excluído. O pensamento espiritual, o pensamento por aproximações e transformações de estilo ético, tende ao operador funcional [–>].

Leibniz e a razão suficiente

Leibniz, sobre a razão suficiente, diz algo muito próximo àquilo que dissemos, embora de uma forma como que inversa*.

Ele diz, como nós, que todo fato tem uma razão suficiente. E que, para um fato ser considerado verdadeiro, há que estar lá (adesse) uma razão suficiente aposta ou, no mínimo, suposta.

Contudo, ele não vai, como nós gostaríamos de ir, da razão suficiente ao fato, mas do fato à razão (e nisso ele entra no castelo kafkiano).

(*) Cf. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Monadología: Edición trilingüe. Trad. Julian Velarde. Olviedo: Pentalfa, 1981. §32. P. 102.

Razões óbvias, razões ocultas

Coisas sistemáticas, pressupõe-se, têm razões suficientes evidentes, por isso, não seria preciso mencioná-las junto com as coisas.

Assim, os sistemas, uma vez ou outra, aproveitam-se dessa suposta obviedade para nos ocultar a razão da coisa.

[Isso é um pouco do jogo de Kafka]

Serviços supérfluos

Há sempre uma razão suficiente para explicar o que acontece. Entretanto, ela nos é, na maioria das vezes, se não em todas, oculta.

Muitas vezes, então, os sistemas nos apresentam as coisas sem nos dar, ao mesmo tempo, a razão que as faz ser como são. Esse serviço lhes parece desnecessário.

Fruto do acaso

– Ocasião para um pequeno desespero – ocorreu-lhe – se estivesse aqui por acaso e não intencionalmente*.

Isso não quer dizer que sempre nos sentimos desesperados se tomamos a ocasião presente como fruto do acaso e não como fruto de nossa intenção; mas que, em certas ocasiões, mas em outras não, nos desesperamos se imaginamos que isso que vivemos é fruto do acaso e não da nossa vontade.


(*) KAFKA, Franz. O castelo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [1922]. P. 21.