Um mundo cujos habitantes não possam senão copiar ou fotografar...


A projeção de um mundo composto exclusivamente de imagens – um mundo absolutamente virtual – não é uma conjectura recente:
Se nós supomos um mundo, cujos habitantes não possam senão copiar ou fotografar os objetos sem ter a possibilidade de tocá-los, eles não conseguiriam, senão com muita dificuldade, se fazer uma ideia exata da sua forma. O conhecimento dessa forma, acessível somente a um pequeno número de sábios, não apresentaria senão um interesse muito fraco*.
Aparente no texto de Le Bon, essa projeção parece derivar da desconfiança, historicamente enraizada, em relação às “foules” (termo que significa, em Le Bon, uma “potência unicamente destrutiva”**, e que costuma ser traduzido por “massas”, mas precisamente designa as classes populares, que o autor considera “pouco aptas ao raciocínio”***). Já discutimos aqui como essa desconfiança pode estar associada a uma miopia, que leva à indistinção entre massa e plebe.

O mundo das imagens é o mundo das aparências dominantes. Tão dominantes que, de fato, sob esse domínio, só as imagens importam; um mundo em que as verdadeiras formas, acessíveis apenas a uma minoria esclarecida (a única potência capaz de construir as civilizações – “até agora, as civilizações foram criadas e guiadas por uma pequena aristocracia intelectual, nunca pelas foules”**), já não possuem qualquer efetividade. Isso prenuncia a “era das massas”****, a iminência de uma época de “transição e anarquia”****, resultante da “transformação progressiva [das classes populares] em classes dirigentes”****.

Nessa projeção, trata-se ainda de uma atualização da alegoria platônica da caverna, em que as modernas “cópias e fotografias” substituem as antigas sombras.





* LE BON, Gustave. Psychologie des foules. Paris: Félix Alcan, 1905 [1895]. Disponível em: . Acesso em: 04.04.2015. P. 8.

** LE BON, Gustave. Psychologie des foules. Paris: PUF, 1963 [1895]. Disponível em: . Acesso em: 04.04.2015. P. 12. Trata-se de uma outra versão da mesma obra, com um prefácio diferente. Essa versão foi traduzida para o alemão em 1912. Foi a ela que teve acesso Freud.



*** Versão Alcan. P. 11.

**** Versão PUF. P. 11.


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