Casuística II

Chovia. Lembro-me infinitamente de quando caminhávamos, durante alguns segundos tão breves, compartilhando o mesmo guarda-chuva, com nossos corpos próximos, como se possuíssemos a intimidade de velhos amantes.

Casuística I

Sua esposa que pergunta:
– Estou preparando um nhoqui, você gostaria de preparar o molho?
E ele que responde:
– Eu preferiria não.
Quer dizer, ele preferiria não preparar o molho.
Não há aqui desobediência, como houve apenas uma proposta, uma insinuação, e não uma injunção, um imperativo.

Viver o sonho de alguém

Todo brasileiro leitor de Spinoza acaba se identificando com aquele brasileiro negro e sarnento, de quem ele teve a visão viva de um presságio, apesar de falso.

Uma manhã, quando já clareava o céu, ao acordar de um sonho muito penoso, as imagens que se tinham apresentado a mim no sonho, ofereceram-se a meus olhos com a vivacidade de objetos reais, em particular, aquela de um certo brasileiro negro e sarnento, que eu jamais havia visto”*.

Se não estivéssemos tão distantes dele, no tempo, poderíamos nos subjetivar como realização de um presságio de Spinoza, em 1664. O próprio Spinoza nos adverte, porém, que uma das condições do presságio é: “que o momento em que este evento se produzirá não esteja muito distante [do momento em que foi pressentido]”. Como se nos dissesse: – você, caro leitor brasileiro de 2009, não é a realização de um tal pressentimento.

(*) SPINOZA, Benedictus de. Oeuvres IV. Trad. Charles Appuhn. Paris: GF Flammarion, 1966. Carta XVII, pg. 176.

A metafísica do fim da metafísica

Dizer o fim da metafísica é como dizer o fim do pensamento. Então a metafísica não acabou, pois o pensamento é pensamento, mesmo quando pensa seu fim.

Pensamento é sempre pensamento do pensamento (a mente é também sempre, ao mesmo tempo, ideia da mente, ideia da ideia da mente e assim ao infinito). É sempre reflexivo, sempre desdobramento de si; nunca liso, nunca de um só estrato, nunca monoestratificado.

E pensar o pensamento é a metafísica.

Parciais IV – E tudo isso, consciência de si, alma e corpo...

Tenha-se em mente o comentário de Guéroult, ao qual, no mesmo viés, acrescento (sem nada somar):

A alma é ideia do corpo. Mas ela não conhece o corpo em si mesmo. Apenas percebe o que ocorre no corpo, suas afecções, isto é, o efeito no corpo da relação entre a natureza do corpo e a natureza dos outros corpos, a natureza em geral.

A ideia da alma está para a alma como a alma está para o corpo. Ela percebe a alma, embora não a conheça em si mesma. Ela percebe a alma, mas apenas na medida em que a alma é ideia do corpo, isto é, apenas na medida em que a alma percebe o corpo na sua relação com outros corpos.

A alma é ao mesmo tempo percepção de si mesma e percepção do corpo, ou seja, através dele, percepção dos outros corpos.

E tudo isso, consciência de si, alma e corpo, além de se darem simultaneamente, são, ontologicamente, expressões da mesma coisa, sob diferentes aspectos.

Suprimida a natureza ou o suprimido o corpo, na sua duração e existência, suprime-se a alma enquanto ideia deste corpo, e enquanto consciência de si mesma, mas não se suprime o ser da alma, como não se suprime o ser do corpo. Pois ser e existir não estão, na coisa singular, necessariamente vinculados – o ser da coisa não é causa do existir da coisa. A causa do existir da coisa é o encadeamento causal infinito da existência das outras coisas. A existência da coisa em relação ao seu ser é contingente, isto é, dado o ser da coisa, sua existência não se segue necessariamente. A causa do ser da coisa é Deus.

Assim, Deus é causa tanto do ser quanto da existência da coisa. A coisa é uma expressão de Deus. E a coisa se expressa simultaneamente como corpo que é e que existe, como alma que é e que existe.

Da alma e do corpo

No cumprimento de serviço público (contraparte pelos pequenas injustiças inesquecíveis que cometo), segue-se um trecho do comentário de Guéroult:

“A união da alma e de sua ideia se dá segundo o mesmo princípio que a união da alma e do corpo. Disto se segue – tudo aquilo que resulta para a alma devido à sua união com o corpo vale, ipso facto [por isso mesmo], para a união da alma com a ideia da alma: [1] a ideia da alma percebe a totalidade das afecções da alma e não percebe outras; [2] a alma se sente como ela sente seu corpo, e nada pode sentir de si que não seja sentimento de seu corpo e das afecções de seu corpo; [3] ela só sente que existe na medida em que ela sente seu corpo e sente que ele existe; [4] ela não pode duvidar mais da sua existência que da existência de seu corpo; [5] nem tampouco duvidar que seu corpo existe quando ela se sente existir, porque ela não poderia se sentir existir, se ela não sentisse que seu corpo existe”*.



(*) GUEROULT, Martial. Spinoza II: L’âme. Paris: Aubier-Montaigne, 1974. P. 247 in fine.

O diagrama como imagem do conceito II

Spinoza escreve, na sua carta sobre os presságios endereçada a um amigo: “[...] nada podemos entender, sem que imediatamente a imaginação não forme disso uma imagem qualquer”*.

Logo que captamos um conceito, automaticamente, espontaneamente, o diagrama se revela. π


(*) “[...] nihil possimus intelligere, de quo imaginatio non aliquam e vestigio formet imagem.”
SPINOZA, Benedictus de. Epistolae. In: Opera Posthuma. –: –, 1677. Pp. 393-614.

Quem pensa

Digamos todo o corpo e todo corpo ser um cérebro, isto é, capaz de pensamento. Desse modo, a natureza inteira pensa. Pensa infinitamente os arranjos infinitos de seu corpo infinito.

O diagrama como imagem do conceito

Para que o intelecto alcance um conceito, podemos nos servir de um diagrama, de uma imagem, de um exemplo. De tal modo que, no pensamento, a imaginação preste auxílio ao intelecto.

O problema ou desvio acontece quando tomamos o diagrama, a imagem, o exemplo, no lugar do conceito (isto é, como se fosse um conceito), e pretendemos deduzir dele as propriedades do conceito ou outros conceitos. π

Em que medida existe e não existe o sujeito?

Assim como a negação de uma vontade livre não nega a existência de uma vontade, assim também a negação de um sujeito a priori, constituinte da experiência, não nega a existência de um sujeito, constituindo-se na experiência.

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Paradoxalmente, sonhar ser 'alguém na vida' pode significar 'viver o sonho de alguém' e não o seu.

Reexplicando a origem da ideia de beleza humana

Reexplicando...

Como se forma a ideia de um belo ser humano, quando consideramos o belo como o incomum, como o perfeito, como o divino?

O belo humano forma-se com a própria ideia de humano.

A ideia de um ser humano se forma, por indução, da relação entre dois entes humanos, do que há de comum entre esses dois entes. Será tanto mais ideal, quanto mais entes forem considerados nessa indução do comum a todos os entes considerados.

A verdadeira ideia de um ser humano corresponde, então, ao que é comum a todos os entes humanos, sem exceção. Esta ideia está entre todos os entes humanos, mas em nenhum em particular. Como não está em nenhum ente em particular, considerados todos os entes, esta ideia é dita incomum.

Apesar de ter sido formada, por indução, do comum a todos – numa inversão do pensar –, esta ideia é dita causa da humanidade, é posta no princípio e divinizada, apesar de ter surgido no final.

Como incomum é dita divina, bela e perfeita – tudo isso sendo uma só coisa. O belo é dito incomum, divino, perfeito, quando, de fato, é o que há de mais comum, humano, vulgar.

Ao invés: "Com efeito, a não ser respectivamente à nossa imaginação, as coisas não podem ser ditas belas ou disformes, ordenadas ou confusas"*.


(*) SPINOZA, Benedictus de. Opera Posthuma. –: –, 1677. Carta XV a Oldenburgio, p. 439.

O conceito do filósofo, o percepto do poeta


Do alto da falésia, com a alma diante do mar grego, elevado ao infinito, Tales pensa-diz:
_ água, água, tudo é água.

Da mesma posição, no mesmo lance, pensa-canta o poeta:
_ azul, azul, tudo é azul.